É senso comum, máxime entre os estudiosos
contemporâneos do direito das famílias, que as entidades familiares estão
"além dos numerus clausus" [1]. A assertiva é decorrência da constitucionalização do direito
privado, que tem concepção "associada a um efeito expansivo das
normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com
força normativa, por todo o sistema jurídico" [2]. À vista disso, a interpretação do artigo 226 da Constituição
permite concluir sobre a implementação "de um explícito poliformismo
familiar em que arranjos multifacetados são igualmente aptos a constituir esse
núcleo doméstico" [3], não havendo qualquer espécie de hierarquia.
Diante de tal panorama, o foco do presente
arrazoado está vinculado aos institutos do casamento e da união estável,
perpassando pela análise da natureza jurídica, a fim de apreender os elementos
fundamentais de composição específica. Vicente Ráo já alertava: "a
antiga teoria dos fatos e, pois, dos atos jurídicos [...], apesar de suas
deficiências, excedeu de há muito o campo restrito do direito contratual, para
penetrar no do direito privado em geral" [4]. O propósito, ao fim e ao cabo, é averiguar a adequação de alguns
modelos de aplicação analógica, que têm repercussões nas rotineiras atividades
negociais da família.
Ao seu turno, o casamento, por extenso
período estimado como a única forma de constituição de família, inclusive
considerando como singularmente institucional, hoje — para parcela da
doutrina contemporânea — está amoldado à noção de negócio jurídico
bilateral, contabilizando "características de um acordo de vontades
que busca efeitos jurídicos" [5]. Ou melhor: seria um "negócio jurídico bilateral sui
generis, especial" [6].
A propósito, revigorando a teoria dos
fatos jurídicos, o casamento está bem atrelado à categoria de ato
jurídico latu sensu, visto que o "suporte fático prevê como seu
cerne uma exteriorização consciente de vontade, que tenha por objeto obter um
resultado juridicamente protegido ou não proibido e possível" [7]. E dentre as espécies da categoria, muito embora a flagrante
dificuldade da doutrina em ver reconhecida a modalidade de ato
jurídico stricto sensu bilateral, não parece razoável puramente
alocar o casamento como negócio jurídico, porquanto — nesta classe —
a vontade está direcionada à criação de efeitos jurídicos concretos, inclusive
havendo livre espaço à regulação dos próprios interesses dos envolvidos, desde
que obedecidas as fronteiras legislativas. Nesse passo, não são à toa as
afirmações de que o casamento "é um contrato todo especial, que muito
se distingue dos demais contratos meramente patrimoniais" [8], ou de que detém a condição de "contrato especial de
Direito de Família" [9].
De outro lado, a união estável,
ressalvadas posições divergentes, tem sido majoritariamente classificada como
ato-fato jurídico, visto que "não necessita de qualquer manifestação
de vontade para que produza seus efeitos jurídicos. Basta sua configuração
fática, para que haja incidência das normas constitucionais e legais cogentes e
supletivas e a relação fática converta-se em relação jurídica" [10]. Todavia, a própria natureza eminentemente fática é suscetível de
tornar a questão ainda mais polêmica, porque, mesmo havendo documento escrito,
seja particular ou público, tal registro será apenas declaratório, e não
constitutivo da relação. A compreensão, aliás, encontra eco na jurisprudência,
servindo como exemplo a posição alinhada no julgamento da Apelação Cível nº
70076137819, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que
dispara: "a escritura pública de declaração de união estável não
possui força probante absoluta acerca do relacionamento que se pretende
reconhecer como entidade familiar, podendo seu conteúdo declaratório ser
desconsiderado quando não retratar a verdade dos fatos [...]" [11].
Em contrapartida, revisando posicionamento
que categorizava a união estável como ato jurídico stricto
sensu compósito, Marcos Bernardes de Melo reflexiona acerca da necessidade
de acatar o enlace público, contínuo e duradouro, observado o objetivo de constituir
família, como "exercício de um poder de escolha de uma categoria
jurídica", consubstanciado no "poder de autorregramento da
vontade, o que por si já caracteriza o negócio jurídico" [12]. Seja como for, é forçoso afirmar que casamento e união estável
não contabilizam a mesma natureza jurídica, até porque não haveria razão alguma
para proceder à conversão daquilo que contém a mesma gênese, como preceitua o
artigo 226, §3º, da Constituição.
De mais a mais, não obstante o
reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil por
intermédio dos Recursos Extraordinários nº 878.694/MG e 646.721/RS, que
equipararam os efeitos sucessórios do casamento e da união estável, válido
consignar que o Supremo Tribunal Federal deixou clarividente que tais arranjos
familiares são figuras juridicamente díspares. A título ilustrativo, calha
notar excerto do voto articulado pelo ministro Luís Roberto Barroso, que
expressamente sustenta que, "à luz do texto constitucional, casamento
e união estável são, assim, organizações familiares distintas" [13].
Além do mais, no ponto que interessa à
presente reflexão, e partindo da ideia de que "o legislador pode
adotar regimes jurídicos diversos para o casamento e a união estável", a
relatoria também invoca a necessidade de "separar as situações em que
a diferenciação de regimes jurídicos é feita de forma legítima daquelas em que
é feita de forma arbitrária". E arremata: "será arbitrária toda
diferenciação de regime jurídico que busque inferiorizar um tipo de família em
relação a outro, diminuindo o nível de proteção estatal aos indivíduos somente
pelo fato de não estarem casados". Nesse passo, seguindo o raciocínio
alinhado pelo julgador, factível concluir que a diferenciação será plenamente
legítima se estiver fundamentada em circunstâncias inerentes às peculiaridades
do modelo familiar.
Logo, com apoio no entendimento acima
ventilado, e ponderando que a legislação infraconstitucional é muitas vezes
omissa quanto à expressa aplicabilidade de algumas normas à união estável, a
questão é buscar saber se a hermenêutica proveniente do artigo 4º da Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro está acertada, ou promove alguma
espécie de arbitrariedade na aplicação da analogia. A esse respeito, inviável
perder de vista a lição de Norberto Bobbio sobre o mais típico e importante
artifício interpretativo, que sustenta ser o "procedimento pelo qual
se atribui a um caso não regulado a mesma disciplina de um caso regulado de
maneira similar" [14]. Em suma, o objetivo é catalisar uma autointegração do sistema
jurídico, tendo em vista motivações relevantes de paridade. De todo modo,
recordando Miguel Reale, "cumpre advertir que ela não tem emprego em
todos os domínios do Direito, sendo inadmissível, em princípio, [...] se as
normas forem restritivas de direitos" [15].
Feitos os devidos esclarecimentos, eis alguns
pontos discutíveis: a) a restrição de compra e venda
instituída pelo artigo 496 do Código Civil pode ser empregada por analogia aos
companheiros? b) a vedação de contratação de sociedade
instituída pelo artigo 977 do Código Civil é passível de ser utilizada para os
casos de união estável? c) o regime da separação obrigatória
de bens por conta da idade, regulado pelo artigo 1.641, inciso II, do Código
Civil, pode ter aplicação estendida à união estável?
As respostas às duas primeiras indagações
parecem ser singelas, pois não seria coerente distender a eficácia de normas
restritivas, sobretudo quando ausente a similitude relevante. Especificamente
quanto ao artigo 496 do Código Civil, a intenção legislativa está direcionada a
evitar a burla ao instituto da legítima, sopesando a possibilidade de o
negócio ter como precípua finalidade a ocultação da real intenção de doação,
contrato benéfico. Verdade seja dita, inclusive revolvendo aos termos dos
recursos extremos e suas repercussões, a linha de discussão trafega pelo
cenário de consideração do companheiro como herdeiro necessário, perspectiva
que descortina tonalidades de inadequação, visto que certo extrato da
literatura, mesmo que de forma minoritária, vaticina que "quem assim
interpreta está tolhendo a liberdade das pessoas de escolherem esta ou aquela
forma de família" [16]. Além disso, Mário Delgado envereda luzes sobre a correta
interpretação do artigo 1.845 do Código Civil, que revela "nítida
norma restritiva de direitos, pois institui restrição ao livre exercício da
autonomia privada e, conforme as regras ancestrais de hermenêutica, não se pode
dar interpretação ampliativa à norma restritiva" [17].
De igual sorte, os desdobramentos do
assunto estão conectados ao tema da outorga uxória, de previsão constante do
artigo 1.647 do Código Civil e tida como condição de validade para a celebração
de alguns negócios jurídicos, salvo no regime da separação convencional de bens.
O dispositivo legal em testilha, que faz expressa alusão apenas aos cônjuges,
não poderia ter expansão ipsis litteris às situações de união
estável, sob pena de estampar desarmonia no sistema jurídico. Para tais
situações, servindo de precedente, é apropriado examinar o Recurso Especial nº
1.424.275/MT, do qual se extrai a ideia de que "os efeitos da
inobservância da autorização conjugal em sede de união estável dependerão [...]
da existência de uma prévia e ampla notoriedade" [18]. Com efeito, soa plausível a exigência somente nos casos de
registro da convivência marital nos moldes do Provimento nº 37 do Conselho
Nacional de Justiça, a ser efetuado perante o Registro Civil das Pessoas
Naturais, conferindo publicidade, ou quando instaurado o condomínio imobiliário
na aquisição do patrimônio.
A mesma abordagem é feita no Recurso
Especial nº 1.299.866/DF, de sorte que a relatoria preconiza que "a
exigência de outorga uxória a determinados negócios jurídicos transita
exatamente por aquele aspecto em que o tratamento diferenciado entre casamento
e união estável se justifica". Trocando em miúdos: não havendo falar em
distender a incidência da Súmula nº 332 do Superior Tribunal de Justiça [19] à união estável, "hão de ser dispensadas as vênias
conjugais para a concessão de fiança" [20].
Em tempo, é prudente sublinhar que não se
desconhece o recente julgamento do Recurso Especial nº 1.663.440/RS.
Entretanto, a indicada decisão, além de contemplar concentrada singularidade em
virtude do conhecimento inequívoco da credora fiduciária sobre a união estável
do devedor, dispõe que a outorga uxória, como regra geral, é dispensável na
união estável. Afora isso, o entendimento da relatoria — vencedor por
maioria — ressalva, "como condição adicional de validade da
garantia dada apenas por um dos conviventes, o fato de haver condições de o
terceiro de boa-fé ter ciência da existência da união estável" [21], razão pela qual não pode ser indistintamente empregado como
paradigma.
Ao depois, notadamente quanto à
inviabilidade de associação empresária, o mesmo caminho é traçado pela doutrina,
uma vez que, "por mais que se outorguem direitos e deveres aos
conviventes, não se cogita de uma equiparação total, absoluta e
irrestrita" [22], pelo que a restrição não se apõe à união estável. Aliás, recordando
a supressão dos "dois fundamentos jurídicos em que se lastreava a
tese da proibição", basicamente o antigo poder marital e a superada
imutabilidade do regime de bens, Alfredo de Assis Gonçalves Neto expressa que,
estando caracterizado um preceito restritivo à liberdade de contratar, a norma
apenas tem incidência na hipótese de casamento, "não sendo possível
aplicá-la à união estável e a qualquer outra forma de convivência
comum" [23].
Em último lugar, mas não menos importante,
está o tópico relacionado ao regime separatório imposto pela legislação,
que vem catalogado no artigo 1.641, inciso II, do Código Civil, e sujeita
os septuagenários a uma espécie de redução de autonomia. Em outras palavras, "além
da sua inconsistência moral e inconstitucional, a norma [...] cria uma
incapacidade de exercício de direito, sem o devido processo legal" [24]. De outro giro, quiçá seja possível aventar a ideia de que a
norma, em verdade, esteja direcionando a proteção aos sucessores da pessoa
idosa envolvida em relacionamento amoroso, de modo que a restrição à autonomia
privada tem renovado o seu contorno inconstitucional, focalizando a salvaguarda
à uma mera expectativa (direito de herança) em detrimento do pleno exercício da
liberdade de escolha, do projeto de vida.
Em que pese o uníssono discurso
doutrinário acerca da inconstitucionalidade da imposição, ainda não sobreveio
relevante movimentação no sentido de sua declaração como tal. Por outro lado, e
talvez revelando ainda mais obstáculos ao desiderato, o que se vê é a
persistência da aplicação analógica da cominação à união estável ao argumento
de que "a ratio legis foi a de proteger o idoso e seus herdeiros
necessários dos casamentos realizados por interesse estritamente econômico,
evitando que este seja o principal fator a mover o consorte para o
enlace" [25].
[1] A expressão é adotada pelo autor Paulo Lôbo no artigo
Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do numerus clausus.
[2] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional
Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4ª ed.
São Paulo: Saraiva, 2013, p. 379.
[3] SALOMÃO, Luis Felipe. Direito Privado: teoria e
prática. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 372.
[4] RÁO, Vicente. Ato Jurídico: noção, pressupostos, elementos
essenciais e acidentais, o problema do conflito entre os elementos volitivos e
a declaração. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 37.
[5] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família.
10ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, 26.
[6] TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito de família. 12ª
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, v. 5, p. 51.
[7] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico:
plano da existência. 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 208.
[8] SANTOS, J. M. de Carvalho. Código Civil Brasileiro
Interpretado. 7ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1961, v. 4, p.
10.
[9] GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo
Curso de Direito Civil: direito de família. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, v.
6, p. 117.
[10] LÔBO, Paulo. Direito Civil: famílias. 8ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2018, v. 5, p. 167.
[11] TJRS, 8ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 70076137819, des.
Ricardo Moreira Lins Pastl, j. 12/4/2018.
[12] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico:
plano da existência. 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 232.
[13] STF, Tribunal Pleno, Recurso Extraordinário nº 878.694/MG,
ministro Luís Roberto Barroso, j. 10/5/2017.
[14] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 2ª
ed. São Paulo: EDIPRO, 2014, p. 142.
[15] REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 24ª ed.
São Paulo: Saraiva, 1998, p. 300.
[16] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Companheiros são herdeiros
necessários ou facultativos? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-set-30/processo-familiar-companheiros-sao-herdeiros-necessarios-ou-facultativos. Acesso 13/10/2020.
[17] DELGADO, Mário Luiz. Diferenças Entre União Estável e
Casamento: quando a desigualdade é (in)constitucional. In: Famílias e
Sucessões: polêmicas, tendências e inovações. Rodrigo da Cunha Pereira e Maria
Berenice Dias (coord.). Belo Horizonte: IBDFam, 2018, p. 387.
[18] STJ, 3ª Turma, Recurso Especial nº 1.424.275/MT, ministro
Paulo de Tarso Sanseverino, j. 4/12/2014.
[19] Súmula nº 332, STJ: A fiança prestada sem autorização de um
dos cônjuges implica a ineficácia total da garantia.
[20] STJ, 4ª Turma, Recurso Especial nº 1.299.866/DF, ministro
Luis Felipe Salomão, j. 25/2/2014.
[21] STJ, 3ª Turma, Recurso Especial nº 1.663.440/RS, ministra
Nancy Andrighi, j. 16/6/2020.
[22] DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Comentado: doutrina e
jurisprudência. Anderson Schreiber, Flávio Tartuce, José Fernando Simão, Marco
Aurélio Bezerra de Melo e Mário Luiz Delgado. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p.
659.
[23] GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de Empresa:
comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 9ª ed. São Paulo: Thomson
Reuters Brasil, 2019, p. 111 e 114.
[24] LÔBO, Paulo. Direito Civil: famílias. 8ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2018, v. 5, p. 328.
[25] STJ, 4ª Turma, Recurso Especial nº 1.689.152/SC, ministro
Luis Felipe Salomão, j. 24/10/2017.