A posse e a propriedade já não
ostentam mais o caráter individualista e inviolável de outrora.[1] Não
se vive o clássico iluminismo, ou a era do terror, ou os ventos
do laissez faire e do laissez passer. O domínio não é mais
sagrado. Bom que assim o seja. A propriedade obriga e sobre ela pesa uma hipoteca
socioambiental e livre de carbono. São tempos de mudanças do clima e de
catástrofes ambientais causadas por fatores antrópicos. Regulação inteligente é
necessária.
De outro lado, visões ultrapassadas de
coletivismos da posse e da propriedade, de nefastos resultados, esboroaram-se,
como é de notório saber, em face da realidade imposta pelas vicissitudes do
espírito humano. Banidos devem ser os freios que barram o desenvolvimento
ecologicamente sustentável, movido pelas hodiernas energias renováveis decorrentes,
na sua implementação, de visionários espíritos empreendedores, públicos e
privados, focados no longo prazo, característico de uma perspectiva
intergeracional verde, incompatível, relevante enfatizar, com as queimadas, os
desmatamentos e a indústria dos combustíveis fósseis.
Retornando as origens do tema
abordado, Pontes de Miranda, com maestria, referia, nos seus dias, que “todo
direito subjetivo é linha que se lança em certa direção. Até onde pode ir, ou
até onde não pode ir, previsto pela lei, o seu conteúdo ou seu exercício,
dizem-no as regras limitativas, que são regras que configuram, que traçam a
estrutura dos direitos e da sua exercitação. O conteúdo dessas regras são as
limitações. Aqui principalmente nos interessam as limitações ao conteúdo. O
domínio não é ilimitável. A lei mesma estabelece limitações. Nem é
irrestringível”.[2] Como
referido pelo eminente Ministro Fachin, neste quadrante histórico, o “absolutismo
no exercício da propriedade sofreu a intervenção de ideias que progressivamente
construíram a doutrina denominada função social da propriedade”.[3] Assim,
diante da “passagem do individualismo para a coexistencialidade”,
registra-se uma “virada de Copérnico”, cujas transformações se dão no tríplice
vértice, ou seja, do contrato, da propriedade e da família.[4] Inexiste,
ao contrário do defendido no passado, separação absoluta entre o público e o
privado, os “novos tempos traduzem outro modo de apreender tradicionais
institutos jurídicos, móvel que sinaliza para a solidariedade social e a
coexistencialidade”.[5] Igualmente,
Reale, ao comentar sobre a visão geral do Novo Código Civil, assevera que
é “constante o objetivo do Código no sentido de superar o manifesto
caráter individualista da lei vigente, feita para um País ainda eminentemente
agrícola”. A atual legislação acolhe, ao contrário do Código Bevilaqua, o
princípio da socialidade, juntamente com a eticidade e a operabilidade.[6]
Pode-se dizer que a posse e a
propriedade contemporânea contemplam não apenas direitos, mas também deveres
por parte do possuidor e proprietário, é dizer, a posse e a propriedade obrigam[7] socioambientalmente.
Há, pois, uma redefinição dos direitos reais, de modo que interesses
extraproprietários conformam o direito da posse e da propriedade, no contexto
da constitucionalização e personalização do Direito Civil. Pode-se afirmar, sem
rodeios, que a função social não é externa à propriedade, mas interna, como seu
elemento constitutivo.[8] É
acertado dizer, como bem referiu o Ministro aposentado Grau, que o princípio da
função social da propriedade “passa a integrar o conceito
jurídico-positivo de propriedade”, sendo que “justamente a sua função
justifica e legitima essa propriedade”.[9]
A função social da propriedade
encontra respaldo no atual texto constitucional, como se verifica nos artigos
5º, inc. XXIII, e 170, inc. III. O art. 182, §2º, da Lei Fundamental estabelece
que a “propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às
exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”. O
Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01), por seu turno, considera, no art. 39,
que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências
fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o
atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça
social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as
diretrizes previstas no art. 2º, muitas das quais relacionadas com a
sustentabilidade socioambiental das cidades.
Já o art. 186 da Constituição Federal
determina que a função social é cumprida quando a propriedade rural atende,
simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei,
aos requisitos do aproveitamento racional e adequado (inc. I), da utilização
adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente (inc.
II), da observância das disposições que regulam as relações de trabalho (inc.
III) e da exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores
(inc. IV).
Igualmente, o art. 6º da Lei nº
8.629/93 (que regulamenta os dispositivos constitucionais sobre reforma
agrária) dispõe que se considera propriedade produtiva aquela que, explorada
econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da
terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal
competente. A relação do cumprimento da função social com a tutela do meio
ambiente é reforçada no art. 9º desse mesmo diploma legal.[10] É
possível à União Federal, portanto, promover a desapropriação sancionatória
para fins de reforma agrária por descumprimento da função social da posse e da
propriedade (Lei nº 8.629/93, art. 2º e §1º[11]),
mediante pagamento de indenização por títulos da dívida agrária (art. 5º[12]).
A função socioambiental da posse e da
propriedade também está amparada no art. 2º da Lei da Política Nacional do Meio
Ambiente (Lei nº 6.938/81), que traz diversos e benfazejos princípios a serem
observados pelos possuidores e proprietários. O antigo Código Florestal de 1965
já previa que os direitos de propriedade deveriam ser exercidos de acordo com
as limitações da legislação (Lei nº 4.771/65, art. 1º).
O Código Florestal vigente (Lei nº
12.651/12) reitera essa disposição[13] e
estatui que, na “utilização e exploração da vegetação, as ações ou omissões
contrárias às disposições desta Lei são consideradas uso irregular da
propriedade” (art. 2º, §1º). Também prescreve que a referida Lei atenderá,
entre outros, ao princípio da “ação governamental de proteção e uso
sustentável de florestas, consagrando o compromisso do País com a
compatibilização e harmonização entre o uso produtivo da terra e a preservação
da água, do solo e da vegetação” (art. 1º-A, parágrafo único, inc. III),
bem como que “as obrigações previstas nesta Lei têm natureza real e são
transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de
domínio ou posse do imóvel rural” (art. 2º, §2º). Possuem as últimas,
evidentemente, o caráter propter rem, no mesmo sentido das legislações
ambientais nórdicas reguladoras da propriedade e da posse.
Os institutos da área de preservação
permanente e da reserva legal, disciplinados no Código Florestal, “concretizam
o princípio da função ecológica da propriedade e da posse, vinculando inúmeros
deveres de proteção ambiental ao exercício e fruição do direito pelo seu
titular”.[14]
O Novo Código Civil, como já referido,
acolhe o paradigma da socialidade no art. 1228, §1º, segundo o qual o “direito
de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades
econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o
estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o
equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a
poluição do ar e das águas”.
Referido diploma, conclui-se, inseriu
no conceito de propriedade, como já havia procedido o Constituinte originário
de 1988, uma preocupação direta e manifesta com a tutela do meio ambiente. A
propriedade e a posse devem ser garantidas dentro do Estado Socioambiental de
Direito. Estas garantias são essenciais para o desenvolvimento sustentável do
país. Todavia, para que os institutos da propriedade e da posse recebam
proteção do ordenamento jurídico devem os mesmos obedecer parâmetros
compatíveis com os direitos constitucionais fundamentais, prestacionais e
fraternais, inseridos nesta era de desigualdade social e de mudanças
climáticas [15] bafejada
por queimadas e desmatamentos criminosos realizados na Amazônia que ruborizam o
povo brasileiro e geram grande preocupação na comunidade internacional.
[1] De
modo mais aprofundado sobre o princípio da função socioambiental da posse e da
propriedade, ver: WEDY, Gabriel; MOREIRA, Rafael. Manual de direito
ambiental: de acordo com a jurisprudência dos Tribunais Superiores. Belo
Horizonte: Editora Fórum, 2019.
[2] PONTES
DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Tomo XI. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2012. P. 79.
[3] FACHIN,
Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea: uma
perspectiva da usucapião imobiliária rural. Porto Alegre: Sergio Antônio
Fabris, 1998. p. 17.
[4] Ibid.,
p. 57.
[5] Ibid.,
p. 57.
[6] REALE,
Miguel. Visão geral no novo código civil. Revista dos Tribunais, v. 808,
p. 11-19, fev. 2003.
[7] Nas
palavras de Grau, “o princípio da função social da propriedade impõe
ao proprietário – ou a quem detém o poder de controle, na empresa – o dever
de exercê-lo em benefício de outrem e, não apenas, de não o
exercer em prejuízo de outrem. Isso significa que a função social da
propriedade atua como fonte de imposição de comportamentos positivos –
prestação de fazer, portanto, e não, meramente, de não fazer –
ao detentor do poder que deflui da propriedade” (GRAU, Eros. A Ordem
Econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). 5. ed. São Paulo:
Malheiros, 2000. p. 259).
[8] SILVEIRA,
Domingos Sávio Dresch da. A propriedade agrária e suas funções sociais. In: O
direito agrário em debate. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 13.
[9] GRAU, op.
cit., p. 260.
[10] Lei
nº 8.629/93, art. 9º A função social é cumprida quando a propriedade rural
atende, simultaneamente, segundo graus e critérios estabelecidos nesta lei, os
seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos
naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das
disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o
bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. §1º Considera-se racional e
adequado o aproveitamento que atinja os graus de utilização da terra e de
eficiência na exploração especificados nos §§1º a 7º do art. 6º desta lei. §2º
Considera-se adequada a utilização dos recursos naturais disponíveis quando a
exploração se faz respeitando a vocação natural da terra, de modo a manter o
potencial produtivo da propriedade. §3º Considera-se preservação do meio
ambiente a manutenção das características próprias do meio natural e da
qualidade dos recursos ambientais, na medida adequada à manutenção do
equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e qualidade de vida das
comunidades vizinhas. §4º A observância das disposições que regulam as relações
de trabalho implica tanto o respeito às leis trabalhistas e aos contratos
coletivos de trabalho, como às disposições que disciplinam os contratos de
arrendamento e parceria rurais. §5º A exploração que favorece o bem-estar dos
proprietários e trabalhadores rurais é a que objetiva o atendimento das
necessidades básicas dos que trabalham a terra, observa as normas de segurança
do trabalho e não provoca conflitos e tensões sociais no imóvel.
[11] Lei
nº 8.629/93, art. 2º. A propriedade rural que não cumprir a função social
prevista no art. 9º é passível de desapropriação, nos termos desta lei,
respeitados os dispositivos constitucionais. §1º Compete à União desapropriar
por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não
esteja cumprindo sua função social.
[12] Lei
nº 8.629/93, art. 5º. A desapropriação por interesse social, aplicável ao
imóvel rural que não cumpra sua função social, importa prévia e justa
indenização em títulos da dívida agrária.
[13] Lei
nº 12.651/12, art. 2º As florestas existentes no território nacional e as
demais formas de vegetação nativa, reconhecidas de utilidade às terras que
revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País,
exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações que a legislação em
geral e especialmente esta Lei estabelecem.
[14] FENSTERSEIFER,
Tiago; SARLET, Ingo Wolfgang. Princípios do Direito Ambiental. São Paulo:
Saraiva, 2014. p. 109.
[15] Sobre
o desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas, ver: WEDY,
Gabriel. Desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas: um
direito fundamental. São Paulo: Editora Saraiva, 2018.
*Gabriel
Wedy é juiz federal, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(Unisinos) e na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe), pós-doutor em
Direito e visiting scholar pela Columbia Law School no Sabin Center for Climate
Change Law.
Fonte:
ConJur