A maternidade socioafetiva estabelecida por uma mulher com o sobrinho de
14 anos foi reconhecida pela Justiça de Goiás. Há sete anos, ela desempenha o
papel de mãe do adolescente, com quem vive na Espanha. No assento de
nascimento, deverá constar o nome da autora da ação, sem prejuízo da filiação
biológica já registrada. A decisão é da 2ª Vara de Família de Goiânia.
De acordo com os autos, desde o nascimento, o adolescente foi criado
pela tia materna e também pelos pais biológicos, que nunca se casaram nem
constituíram união estável. Após tantos anos de cuidado, tia e sobrinho
estabeleceram uma relação de mãe e filho. Em 2014, em acordo com os genitores,
o menino foi morar com a mãe socioafetiva em Barcelona, onde também tem ótima
convivência com o companheiro dela, cidadão espanhol.
Foi feito, então, um acordo verbal entre os requerentes em que a tia
materna ficaria responsável pela criação e ônus financeiro do sobrinho, sendo
assistida pela genitora, ora requerente. A discussão envolvendo a guarda e
alimentos é objeto de ação consensual própria. Foi pleiteado, portanto, o
reconhecimento da multiparentalidade, com a retificação de registro civil.
Em parecer, o Ministério Público de Goiás – MPGO manifestou-se pelo
julgamento antecipado da lide e pela procedência do pedido inicial. O órgão
argumentou que a relação já está consolidada há anos e não há indícios de que
tal reconhecimento pudesse representar algum prejuízo ao adolescente.
Filiação socioafetiva transcende vínculo genético
Ao analisar o caso, o juiz Wilson Ferreira Ribeiro explicou que, na
filiação socioafetiva, pai ou mãe não é apenas a pessoa que gera e detém
vínculo genético com a criança. “Ser pai ou mãe, antes de tudo, é ser a pessoa
que cria, instrui, ampara, dá amor, carinho, proteção, educação, dignidade;
enfim, a pessoa que realmente exerce as funções próprias de pai ou de mãe em
atendimento ao melhor interesse da criança.”
O magistrado frisou ainda que a realidade é abarcada pelo artigo 1.593
do Código Civil de 2002: “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de
consanguinidade ou outra origem”. E acrescentou: “O vínculo socioafetivo
decorre da convivência cotidiana, de uma construção diária, não se explicando
por laços genéticos, mas pelo tratamento estabelecido entre pessoas que ocupam
reciprocamente o papel de pai e filho, respectivamente”.
O relatório psicológico realizado por profissional na Espanha,
devidamente traduzido, relatou a total adaptação do infante ao núcleo familiar
da tia materna e do companheiro desta. O adolescente também mantém contato com
os familiares que vivem no Brasil, ciente da oportunidade de estar podendo se
desenvolver em um país europeu. Declarações de testemunhas também comprovaram a
realidade expressa pelos autores.
Doutrina e jurisprudência sobre multiparentalidade
O juiz também fundamentou sua decisão em doutrinas de especialistas do
Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. Na decisão, foram citados
trechos de obras dos juristas Rodrigo da Cunha Pereira (livro Direito de
Família: Uma Abordagem Psicanalítica), Cristiano Chaves de Farias e Nelson
Rosenvald (Direito das Famílias) e Flávio Tartuce (Manual de Direito Civil).
Foi ressaltada ainda a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF
e do Superior Tribunal de Justiça – STJ, com o reconhecimento da parentalidade
socioafetiva e da multiparentalidade. “Registra-se que não há óbice à
coexistência da paternidade biológica e socioafetiva (multiparentalidade), em
virtude da realização do princípio da dignidade humana, não havendo
hierarquização dos vínculos.”
“Desse modo, diante de todos esses fatos somados ao princípio do melhor
interesse da criança e do adolescente, bem como a par do parecer ministerial,
tem-se que a maternidade socioafetiva sustentada nos autos foi devidamente
comprovada e deve ser reconhecida judicialmente, sem prejuízo da filiação
biológica já existente”, concluiu Wilson Ferreira Ribeiro.
Princípios da afetividade e da dignidade da pessoa humana
Membro do IBDFAM, a advogada Chyntia Barcellos atuou no caso. Ela diz
que a decisão é um avanço, pois consagra os princípios da afetividade e da
dignidade da pessoa humana. “A criança mora na Espanha desde 2014 com a tia
materna, agora reconhecida como mãe socioafetiva. Terá, assim, duas mães e um
pai.”
“A possibilidade do reconhecimento da multiparentalidade mantendo o
vínculo biológico de origem e o reconhecimento àquele decorrente da
parentalidade afetiva permitem ao adolescente ter passado e presente. Amplia
seus direitos e preserva-os, em atenção ao seu melhor interesse”, comenta a
advogada.
Para Chyntia, a decisão revela que os valores com base no afeto são tão
importantes quanto os biológicos. “O Direito permite, assim, a conjugação
desses valores e, para além da posse do estado de filho, amplia
consideravelmente o bem-estar e o futuro do adolescente de 14 anos, que me
disse ter realizado um sonho. A tia, agora mãe, chorou de felicidade por poder
agora exercer de fato e de direito a maternidade, já conjugada para além dos
cuidados de tia há mais de sete anos.”
A advogada explica que a distância entre os países não repercutiu no
encaminhamento do processo. Com a pandemia da Covid-19, a audiência pôde ser
feita on-line. Apenas os documentos, em espanhol, tiveram que ser traduzidos,
já que toda a vida do menino está lá, incluindo escola, sessões de terapia e
outras atividades do dia a dia.
Fonte: Ibdfam