Com a entrada em vigor do atual
Código de Processo Civil em 2016, as discussões a respeito do “livre convencimento
motivado” deveriam ter ficado no passado. Isso porque, após longo trabalho
desenvolvido por parte da doutrina1 para demonstrar a inadequação de teses que
admitem a livre formação do convencimento por titulares de decisões jurídicas
com os paradigmas que sustentam o Estado Democrático de Direito, a palavra
“livre”, sustentáculo normativo das referidas teses, foi retirada do artigo 371
do projeto de Código de Processo Civil.
Para afastar quaisquer dúvidas a
respeito da superação da tese do livre convencimento pelo CPC de 2015, ou seja,
de que não é possível extrair do artigo 3712 autorização para que decisões
jurídicas sejam construídas no subjetivismo de quem decide, basta olhar a
justificativa da emenda que deu origem ao citado dispositivo. Embora se
reconheça que as justificativas de propostas legislativas, em regra, muito
pouco contribuem para a interpretação de dispositivos legais e que a tarefa do
hermeneuta é interpretar o que o legislador disse e não o que ele quis dizer,
no caso do artigo 371 é possível extrair da justificativa os paradigmas,
filosófico e jurídico, que sustentam a supressão do livre convencimento
motivado da lei processual civil, daí a importância de onsulta-la, como se
passa a fazer:
Embora historicamente os Códigos
Processuais estejam baseados no livre convencimento e na livre apreciação
judicial, não é possível, em plena democracia, continuar transferindo a
resolução dos casos complexos, enfim, a interpretação e aplicação do direito,
em favor da apreciação subjetiva dos juízes e tribunais. Na medida em que o
Projeto passou a adotar o policentrismo e coparticipação no processo, fica
evidente que a abordagem da estrutura do Projeto passou a poder ser lida como
um sistema não mais centrado na figura do juiz. As partes assumem especial
relevância. Eis o casamento perfeito chamado “coparticipação”, com pitadas
fortes do policentrismo. E o corolário disso é a retirada do ‘livre
convencimento’. O livre convencimento se justificava em face da necessidade da
superação da prova tarifada. Filosoficamente, o abandono da fórmula do livre
convencimento ou da livre apreciação da prova é corolário do paradigma da
intersubjetividade, cuja compreensão é indispensável em tempos de democracia e
de autonomia do direito. Dessa forma, a invocação do livre convencimento por
parte dos juízes e tribunais acarretará, a toda evidência, a nulidade da
decisão.
Diante disso, ao atribuir sentido
ao artigo 371, o intérprete não pode desconsiderar o fato de que o poder de
livre convencimento, que, conforme destaca Streck3, está ligado ao que se pode
chamar de privilégio cognitivo atrelado ao sujeito da modernidade e ao seu
autoritarismo, foi expungido do projeto de Código de Processo Civil de 2015
como resultado do processo democrático de produção do Direito. Entretanto, a
despeito da clareza da justificativa e da precisão redacional do referido
artigo 371, parte da doutrina e alguns setores da justiça seguem incluindo a
palavra “livre” na leitura do dispositivo, desconsiderando que o abandono da
tese do “livre convencimento motivado” não se deu por acidente, mas, isto sim,
tratou-se de um verdadeiro giro na forma de pensar a decisão jurídica, que não
pode ser desconsiderado pelos juristas.
A inadequação de tal postura no
âmbito do Poder Judiciário vem sendo amplamente denunciada por parte da
doutrina, motivo pelo qual o foco de ataque ao problema neste artigo se dará em
outro campo. Na senda dos que lutam pelo respeito à produção democrática do
Direito, este texto busca chamar a atenção da comunidade jurídica para a
“repristinação” da tese do “livre convencimento motivado” pelo Conselho
Nacional de Justiça – CNJ.
Em 15 de dezembro de 2017, mais
de um ano após a entrada em vigor do novo CPC, o CNJ editou o Provimento nº 65,
a fim de estabelecer diretrizes para o procedimento da usucapião extrajudicial,
que passou a existir no Direito brasileiro justamente com o CPC de 2015 (art.
1.071). O artigo 13, §4º, do referido provimento, ao tratar da análise que o
registrador de imóveis deve fazer dos documentos que instruem o requerimento de
usucapião extrajudicial, resgata a tese do “livre convencimento motivado”,
institucionalizando a discricionariedade no serviço público de registro de
imóveis, nos seguintes termos:
A análise dos documentos citados
neste artigo e em seus parágrafos será realizada pelo oficial de registro de
imóveis, que proferirá nota fundamentada, conforme seu livre convencimento,
acerca da veracidade e idoneidade do conteúdo e da inexistência de lide
relativa ao negócio objeto de regularização pela usucapião. (grifo nosso).
Antes de adentrar no problema
central do presente texto, cabe fazer um rápido nivelamento compreensivo acerca
da atribuição decisória dos delegatários dos registros de imóveis,
especialmente para os que estão chegando agora nas discussões que envolvem tais
serviços públicos4. Nesse sentido, é importante ter presente que a razão de ser
dos cartórios de imóveis é extraída do texto Constitucional. Conforme
estabelece o caput do artigo 5º, a garantia da inviolabilidade do direito de
propriedade é dever do Estado, que, para bem desempenhar a sua função,
inseriu/manteve no Brasil, no que toca à propriedade imobiliária, um sistema de
registro de direitos.
O sistema de registro de direitos
sobre imóveis – consagrado em diversos dispositivos legais que compõem o
ordenamento jurídico pátrio (e.g.: arts. 167, 169, 172 e 198, todos da lei
6.015/73; arts. 1.227 e 1.245, ambos do Código Civil) – atende a diretiva
constitucional prevista no citado artigo 5º. Isso porque, ao mesmo tempo em que
exige que os atos jurídicos envolvendo bens imóveis sejam registrados para
gerar os efeitos que deles se esperam, impõe que o registro só seja lavrado
após a realização da denominada qualificação registral5 pelo delegatário do
serviço, profissional do Direito que age em nome do Estado. É em decorrência da
atuação desse agente público que o Estado garante que os titulares de direitos
sobre a propriedade imobiliária só os perderão ou poderão deles dispor se os
instrumentos de formalização dos atos jurídicos estiverem de acordo com o
Direito, seja para a proteção dos proprietários, seja para a proteção das
demais pessoas envolvidas na relação jurídica em causa ou, ainda, de terceiros
que devam respeitá-la.
Dito de outra forma, para bem
desempenhar as suas atribuições, é dever do delegatário do serviço público de
registro de imóveis, antes de lavrar o ato que lhe foi demandado, analisar se o
título de formalização de direitos (escrituras públicas, instrumentos
particulares, atos judiciais e atos administrativos) está de acordo com o
ordenamento jurídico para, a partir dessa análise, proferir decisão
fundamentada acerca da sua registrabilidade. A formatação do sistema registral
imobiliário nos termos referidos coloca em destaque a importância da
qualificação registral para que a razão de ser dos ofícios de imóveis seja
alcançada, bem como evidencia aquela que é considerada pela doutrina6 a
principal característica da atividade: outorgar segurança jurídica às relações
sociais envolvendo direitos sobre bens imóveis.
Compreendido o alcance da decisão
jurídica proferida pelos oficiais de registro de imóveis, ou seja, que das
decisões oriundas da qualificação registral direitos poderão ser reconhecidos,
fica fácil constatar que toda a discussão a respeito da inadequação da tese do
livre convencimento motivado também se estende a tais serviços. E, analisando a
tese do livre convencimento sobre a perspectiva da decisão jurídica do
registrador, colocada em evidência pelo CNJ ao editar o Provimento nº 65,
deve-se ter presente que a importância da discussão vai muito além do problema
da apreciação das provas que instruem os pedidos de usucapião extrajudicial.
Seguindo a senda de Streck7, pode-se dizer que, no âmbito das práticas
jurídicas, essa discussão implica também a relação pretensamente livre que se
estabelece entre o julgador e a interpretação do Direito, bem como a concepção
equivocada acerca da independência do detentor da decisão jurídica.
Defender o equívoco em permitir
que o registrador possa decidir conforme o seu livre convencimento não
significa, de forma alguma, tolher a sua independência jurídica e tampouco
qualquer proibição interpretativa que o transforme em um exegeta do século XIX.
A autonomia de atuação do registrador imobiliário, no que se refere à qualificação
registral, está garantida nos artigos 198 da lei 6.015/73 e 28 da lei 8.935/94.
Contudo, como profissional do direito que exerce atividade jurídica em nome
Estado, pode-se dizer que o oficial não possui carta branca para
interpretar/decidir de forma livre, fazendo valer os seus pré-conceitos sobre o
mundo, pois toda a sua atividade interpretativa/decisória será voltada, e,
também, limitada pelo Direito (aqui entendido como conceito interpretativo
construído intersubjetivamente, e não pela vontade individual do aplicador).
Afastar o livre convencimento da
atividade jurídico-decisória não significa, portanto, restrição à autonomia dos
titulares da decisão jurídica no exercício das suas competências/atribuições.
Tal afastamento visa, isto sim, expurgar das práticas jurídicas tanto a ideia
de que o livre convencimento motivado é da natureza da decisão (uma espécie de
discricionariedade racionalizada) quanto o paradigma filosófico instituidor da
modernidade: o sujeito solipsista, que, ao se libertar do “mito do dado”,
seguiu rumo ao voluntarismo (a vontade de poder)8.
Assim, no que se refere aos
documentos que instruem o requerimento de usucapião extrajudicial, o
registrador deverá apreciá-los a partir de uma reconstrução baseada no sentido
intersubjetivo que exsurge da linguagem pública, e não na sua convicção
pessoal. E isso quer dizer que a atuação do registrador deve ser pautada pelo
interesse público, que, no âmbito do sistema jurídico, compreende justamente o
respeito à legalidade democraticamente construída e sua interpretação a partir
de critérios públicos.
Do exposto, é possível extrair
duas conclusões: a) a tese do livre convencimento motivado, seja do juiz ou do
registrador, é completamente incompatível com os paradigmas que sustentam o
Estado Democrático de Direito; e b) o Provimento nº 65 do CNJ comprova que,
mesmo nesta quadra da história, a doutrina ainda não conseguiu blindar o
Direito contra teses que remetem à aceitação de discricionariedades
interpretativas/decisórias. Veja-se que, mesmo após ter sido superada pelo
processo intersubjetivo/democrático de criação do Direito, a tese do livre
convencimento motivado, como uma espécie de Hidra de Lerna9 do Direito, insiste
em renascer.
Sendo essa a triste forma como o
Direito e a sua autonomia vêm sendo tratados no Brasil, a doutrina daqueles
que, ao levar os direitos a sério, consegue alcançar tais problemas tem se
mostrado cada vez mais importante. Assim como Hércules, que, a fim de cumprir o
segundo trabalho que lhe foi dado por Eristeu, jamais desistiu de matar a Hidra
de Lerna – mesmo quando, ao cortar uma das nove cabeças do mostro, nasciam-lhe
duas no lugar – a doutrina deve seguir denunciando propostas que, ao resgatar
teses como a do livre convencimento, afastam-se da produção democrática do
Direito. A tarefa é árdua. Contudo, se seguir apostando em travar o debate no
plano hermenêutico, que permite ao jurista se dar conta de que os elementos
interpretativos que fundamentam as decisões devem partir de critérios públicos
estabelecidos com respeito à legalidade, não tardará para que, a exemplo do que
fez Hércules com a Hidra de Lerna, se consiga decepar os argumentos que servem
de sustentáculo para tais teses e chutá-los para dentro de um buraco profundo
de onde jamais sairão.
1 Contra a tese do “livre
convencimento”, ver os verbetes 26 e 27 de: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de
hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da
hermenêutica do direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2020.
(Coleção LenioStreck de dicionários jurídicos).
2 Art. 371. O juiz apreciará a
prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido,
e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.
3 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário
de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da
hermenêutica do direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2020. P.
213. (Coleção LenioStreck de dicionários jurídicos).
4 Para aprofundar a temática,
ver: BOTTEGA, Jéverson Luís. Qualificação registral imobiliária à luz da
crítica hermenêutica do direito: equanimidade e segurança jurídica no registro
de imóveis. Belo Horizonte: Conhecimento editora, 2021.
5 A nomenclatura é extraída da
doutrina. Por todos, cita-se Silva, que analisou a origem e o sentido da
expressão nos seguintes termos: “este exame prévio e profundo dos documentos
que são apresentados constitui o que se chama de ‘qualificação’, palavra
oriunda dos vocábulos latinos “qualis” e “facere”, que significa dar qualidade,
dar aptidão aos documentos para serem admitidos nos lançamentos registrais”.
SILVA FILHO, Elvino. A competência do oficial do registro de imóveis no exame
dos títulos judiciais. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, n. 8, p. 52,
jul./dez. 1981.
6 Ao analisar a finalidade dos
sistemas registrais, Jardim identifica um traço comum em todos eles. Segundo a
autora, “o registo não é uma instituição natural, mas sim uma instituição
artificial: uma pura criação para atingir determinados fins do tráfico
jurídico. O objetivo de todos os sistemas registrais é o mesmo – garantir a
segurança jurídica dos direitos e a proteção do tráfico imobiliário”. JARDIM,
Mónica. Efeitos substantivos do registo predial: terceiros para efeitos de
registo. Coimbra: Almedina, 2015. P. 20.
7 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário
de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da
hermenêutica do direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2020. P.
212. (Coleção LenioStreck de dicionários jurídicos).
8 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário
de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da
hermenêutica do direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2020. P.
212-214. (Coleção LenioStreck de dicionários jurídicos).
9 GRENIER, Christian. Os doze trabalhos
de Hércules. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Pp. 87-101.
Jéverson Luís Bottega: Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC. Especialista em Direito Constitucional e em Direito Notarial e Registral. Professor de cursos de especialização no Brasil. Autor de livros e artigos jurídicos. Oficial de Registro de Imóveis no Rio Grande do Sul.
Fonte: Migalhas