Divisão de bens em outros países tem sido levada em
conta em inventários e divórcios
Tribunais
de Justiça têm aberto exceções em inventários e divórcios. Apesar de bens
situados em outros países não poderem ser partilhados em processos no Brasil,
os desembargadores têm entendido, com base em precedente do Superior Tribunal
de Justiça (STJ), que pode ser feita uma “compensação”, levando-se em
consideração como foram divididos os ativos no exterior.
Essas
decisões chamam a atenção porque, nos últimos anos, houve um boom de
investimentos no exterior - não seria um movimento apenas de “multimilionário”.
Especialistas em direito sucessório alertam, contudo, que ativos no estrangeiro
podem trazer surpresas aos herdeiros.
Segundo
dados do Banco Central, o total de capitais brasileiros lá fora cresce a cada
ano, ao menos de 2007 até 2020, com a única exceção do ano de 2018. Em 2020, os
ativos de empresas e pessoas físicas brasileiras no exterior chegaram a US$
558,387 bilhões. Na comparação com 2019, o crescimento foi de 5,5%. Somente
entre janeiro e agosto de 2021, os investimentos no exterior somaram R$ 61,6
bilhões.
“No
passado, investimento no exterior era um movimento de grandes fortunas, mas
passou a ser algo mais corriqueiro”, diz a especialista Maria Amélia Araújo,
fundadora do MAA Advogados. “As pessoas estão investindo fora e nem sabem quem
são seus herdeiros, o que pode gerar mais discussões no divórcio ou inventário,
resultando em uma confusão sem fim.”
A
compensação foi aplicada pela primeira vez no divórcio de um casal com ativos
no Brasil e no Líbano. No Líbano, o tribunal entendeu que os bens adquiridos em
nome dos cônjuges no casamento ficariam com o titular, beneficiando a esposa.
No Brasil, porém, o STJ, ao analisar o caso em 2003, considerou todo o
patrimônio do casal na partilha, compensando o marido para haver uma divisão
igualitária (REsp 275985).
Embora
o precedente do STJ seja antigo, com a crescente internacionalização de ativos,
tribunais passaram a aplicar a compensação com mais frequência. Em setembro, a
8ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) adotou
a medida, citando decisão de 2020 da 1ª Câmara (apelação nº 2012466-60.
2021.8.26.0000). Em Minas Gerais e no Distrito Federal também há entendimentos
similares.
“Inobstante
a determinação no sentido de que a partilha dos bens do casal localizados no
exterior deve ser realizada, em princípio, perante a autoridade estrangeira,
nada há a obstar a possibilidade de que, na presente partilha, referente aos
bens situados no Brasil, sejam aqueles valores considerados, de modo a
equalizar as cotas patrimoniais de cada uma das partes”, afirma o acórdão do
TJ-SP.
Maria
Amélia diz que, se houver um testamento lá fora, o impacto de uma eventual
compensação é menor. Uma cliente dela, casada e sem filhos, vai fazer
testamento nos Estados Unidos, onde mora. A maioria do seu patrimônio é herança
e inclui uma conta em banco americano. Ela deixará os recursos vinculados a
essa conta para os sobrinhos.
Nos
Estados Unidos, não existe a obrigação de deixar 50% do patrimônio para os
herdeiros legítimos, como no Brasil (artigo 1.829 do Código Civil). “Pode ser
que o cônjuge da minha cliente tente aplicar a compensação com bens dela no
Brasil, mas, com um testamento nos EUA, certamente os sobrinhos terão mais
facilidade para levantar esses valores”, afirma.
Especialista
e sócio da banca Freitas Leite Advogados, Raul Leite destaca que o testamento
acelera a liberação da herança no exterior para os herdeiros. Ele lembra de uma
jovem cliente divorciada, sem testamento lá fora, que morreu de maneira
repentina e tinha duas filhas menores. “A maior parte da liquidez dela estava
no exterior e os herdeiros chegaram à situação de falta de caixa para suprir
necessidades básicas, como supermercado e farmácia”, diz.
Sem
testamento, segundo Leite, nas jurisdições estrangeiras mais usualmente
utilizadas pelos brasileiros, a liberação da herança demora, em média, de oito
meses a um ano. “Havendo testamento, o tempo médio para a liberação da herança
é reduzido pela metade.”
Leite
afirma que a demanda de planejamento com ativos no exterior é crescente. “A
pandemia trouxe senso de urgência para a questão sucessória, pelas muitas
perdas. Mas outro motivo é o advento de uma série de plataformas fintechs que
simplificam o investimento”, diz.
Mesmo
na banca do tipo boutique Guimarães Bastos Advogados, muito conhecida por
representar famosos casais e ricas famílias em longas disputas, o planejamento
familiar e sucessório prevalece. “Cerca de 60% das nossas demandas se
relacionam a planejamento e 40% a conflitos de família”, afirma a
sócia-fundadora Renata Mei Hsu Guimarães.
A
advogada se assusta, porém, com o fato de alguns acreditarem que, mantendo
ativos no exterior, se resolve o problema sucessório. “Um juiz brasileiro não
pode partilhar uma sociedade nas Bahamas ou um imóvel em Nova York”, explica.
“Ao mesmo tempo, a sucessão se opera sobre o patrimônio como um todo.”
Renata
diz que a compensação é uma jurisprudência relativamente recente. “Se o bem em
questão é um apartamento na França, por exemplo, o inventário deve ser feito de
acordo com a lei francesa”, afirma. “Só que se o proprietário é brasileiro
residente no Brasil devem ser respeitados os herdeiros legítimos, conforme a
lei brasileira, ou poderá ser aplicada a compensação.”
A
especialista diz que, pelas regras brasileiras, a lei que vai reger a sucessão
é a de onde a pessoa que morreu residia. “Se morava aqui e tem bens fora,
aplica-se a lei brasileira”, afirma ela, acrescentando que a situação é
diferente se a pessoa morava fora.
Quem
vive no exterior tem usado muito, no planejamento sucessório, a offshore ou PIC
(do inglês Private Investment Company), segundo a também fundadora da banca
Guimarães Bastos Advogados, Alessandra Rugai Bastos. São sociedades em
jurisdições como Bahamas, Ilhas Virgens Britânicas, Cayman, Dellaware (EUA),
entre outros locais com legislação tributária vantajosa.
“Eu
diria que 90% dos nossos clientes hoje tem essa estrutura”, diz Alessandra.
Nesse caso, acrescenta, sempre será preciso fazer um inventário externo na
sucessão. Só o trust libera os herdeiros do inventário.
Para
quem mora fora, algumas jurisdições são mais ou menos complicadas. “Países da
comunidade europeia seguem o Código Europeu de Sucessões (Regulamento EU 650,
de 2012), que estabelece que a lei sucessória aplicável é a do último
domicílio. Existe a opção pela lei da nacionalidade, mas isso tem que ser feito
via testamento”, afirma Alessandra.
Para
o brasileiro que vive em Portugal, por exemplo, pode ser aplicada essa exceção.
Se os herdeiros são brasileiros e se a lei brasileira for mais benéfica,
segundo Alessandra, podem invocar a lei brasileira. “Mas o juiz português pode
dizer que só permitirá a aplicação da lei brasileira, a depender do
testamento”, diz.
Parecerista
e integrante do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Daniele
Teixeira Chaves afirma que a aplicação da compensação pela Justiça ainda é uma
exceção. Contudo, ela faz um alerta: não existe dinheiro escondido. “Hoje em
dia, se segue o dinheiro fácil, mesmo em offshores.”
Fonte:
Valor Econômico