Tente imaginar, caro leitor, que
um belo dia você se depara com vários eventos aleatórios e extraordinários e se
põe a pensar que absurdo seria se suspendêssemos as presunções no direito
civil, tornando regra as hipóteses de exceção e vice-versa. Neste estranho
mundo você testemunharia, por exemplo, a queda de um raio no seu terreno e daí
concluiria que naquele ponto não deveria construir porque outro corisco poderia
precipitar-se no mesmo local. Imagine, por hipótese, que você tivesse recebido
um mandado judicial para promover o registro de determinado título e logo outro
mandado ingressasse, ao mesmo tempo, determinando, sob pena de prisão, que se
não promovesse o registro daquele título. Ou ainda que recebesse duas
escrituras de hipoteca lavradas na mesma data, apresentadas no mesmo dia, que
determinassem, taxativamente, a hora da sua lavratura, nos termos do art. 192
da LRP.
A você ocorreria alterar todo o
processo de registro em razão destas exceções e em prejuízo das regras
ordinárias hauridas da praxe registral?
Pois bem. Foi isso que aconteceu
com o SERP - Sistema Eletrônico de Registros Públicos. Sob o pífio argumento de
que um ponto único na internet, com atribuições subdelegadas de protocolo (RTD,
RCPJ e RI - inc. V do art. 3º da MP 1.085/2021), se evitaria o risco de
conflito e contraditoriedade na constituição de garantias móveis e imóveis no
mesmo título e com registros em especialidades diversas. A
"prenotação" dos títulos, feita concomitantemente na plataforma
eletrônica do SERP, evitaria o risco de que um raio pudesse fulminar a eficácia
jurídica do negócio1.
Nunca entendi muito bem este
argumento que me soava simples subversão da ordinariedade dos processos
registrais em favor de hipóteses excepcionais, francamente cerebrinas. A
simples regulação uniforme, a cargo da Corregedoria Nacional de Justiça, seria
mais do que suficiente.
As teses que se multiplicam são
engendradas em razão da histórica ineficiência sistêmica dos registros
públicos, que não se modernizaram a tempo - malgrado o fato de, há mais de uma
década, termos apresentado à comunidade jurídica um modelo elegante de Registro
de Imóveis eletrônico2.
De outra banda, como compreender
que se encaminhe a um escaninho único demandas cuja natureza e interesses são
essencialmente diversos? Quem necessita de uma certidão de casamento, não vai
bater às portas eletrônicas do Registro de Imóveis, assim como quem busca
registrar a sua propriedade imobiliária não direciona seu pleito ao Registro
Civil. E assim sucessivamente. Se a ideia fosse levar o RTD para o âmbito dos
modelos sugeridos por organismos internacionais (OEA, UNCITRAL etc.)3, por qual
razão buscou-se tracionar nesta aventura temerária registros tão diversos como
o Registro Civil de Pessoas Naturais, de Pessoas Jurídicas e de Imóveis?
Este meltingpot registral
é regressivo e disfuncional; nos reconduz a modelos organizativos já superados
pela nova ordem constitucional, como procurei demonstrar em outro artigo4. A
menos que se pretenda não exatamente um retorno, mas simplesmente a
ultrapassagem dos modelos tradicionais de registração, confiando o mister
registral a entidades privadas.
A torção sistemática
experimentada pela reforma talvez respondesse a esses impulsos. A constituição
do SERP quadra no contexto da instituição de uma plataforma centralizada e
consolidada de registros públicos afinada com a Lei Modelo sobre Garantias
Mobiliárias5 e de outras iniciativas semelhantes.
GRANDINO RODAS traduz e defende a
medida de modo bastante claro:
"Registro central significa
uma base central a que se conectariam todas as unidades de serviços do país; ou
seja, cartórios, ofícios e centrais. Dessa forma, evitar-se-ia o duplo
registro. Em havendo acesso ágil e indiscriminado a certidões e informações,
qualquer interessado poderia fazer uso do sistema, inclusive o menos instruído"6.
O prestigioso jurista segue
desfiando uma série de vantagens - operação mais célere com registros
centralizados, barateamento dos custos de duediligence, padronização de
processos, interoperabilidade entre as centrais estaduais e cartórios etc. etc.
O tema não é recente.
Anteriormente houve uma defesa do modelo que a MP 1.085/2021 acabaria por
emular. Em relação ao registro de garantias mobiliárias, BAZINAS defenderia a
utilização de um sistema de registro baseado em "formulários",
espécie aperfeiçoada de extratos digitais, "registro
declaratório-negativo", que deveria ser realizado em sistema eletrônico e
com baixo custo, "estimado entre 5 a 10 dólares por registro".
Segundo ele, dever-se-ia substituir a modalidade de registro de títulos,
"o qual requer a verificação de formalidades sobre o título a ser
registrado pelo Serviço de Registro, como a legalização de assinaturas",
por um sistema mais simples e eficiente7.
FÁBIO ROCHA PINTO por seu turno
sustentaria que o sistema registral deveria ser "unitário, universal e
unificado", e que a tal unificação deveria levar à "centralização dos
dados de registro, com a possibilidade de consulta em uma única certidão
nacional"8. A síntese de sua proposta era: (a) unificação registral, (b)
sistema de formulário e (c) centralização eletrônica9. O mesmo autor vislumbrou
no SINTER (Decreto 8.764/2016) uma solução adequada:
"A unificação exige a
centralização dos dados de registro, com a possibilidade de consulta em uma
única certidão nacional. No exemplo apresentado pelo palestrante, a
centralização poderia ser realizada por meio do Sistema Nacional de Gestão de
Informações Territoriais - SINTER".
Compare essas ideias com as que
foram consumadas na MP 1.085/2021 e teremos uma boa antevisão que nos poderá
ajudar a iluminar e conduzir na compreensão da norma.
A detergência suavizadora de bits
e bytes
Antes de prosseguir, sinto-me
novamente no dever de registrar que a opção legislativa não é tão importante
quanto os seus pressupostos - ou sua inspiração mediata ou imediata. Que o
legislador (ou o Executivo) faça o que fez, não é tão importante; o problema
reside na subversão do regime da delegação pessoal em favor de entidades
registradoras centralizadas, entes personalizados que ainda não contam
com a competência plena e reconhecida pelo sistema legal na promoção de
registros com eficácia jurídica10.
Digo que ainda não contam com
essa competência, mas uma larga avenida se abriu com esta medida
provisória. É possível criar plataformas para-registrais, como o sugerido pelos
ilustres autores da medida provisória (e dos artigos anteriormente citados).
Certamente um sistema que poderá ser mais barato, eficiente, simples e
confortável (além de eletrônico), quando comparado com o que se tem hoje. Somos
conduzidos suavemente aos portais de um verdadeiro Eldorado Registral, ambiente
eletrônico ordenado, limpo, moderno e eficiente, mas que não será um verdadeiro
registro de direitos, cujo mister é objeto de delegação de funções públicas a
juristas especializados, provados por concursos públicos.
Além de outros aspectos
relacionados com os custos transacionais envolvidos na substituição do nosso
tradicional modelo de registro de títulos, como qualificado por BAZINAS,
é necessário enxergar o óbvio. Sacrificado o sistema de cariz jurídico, o único
obstáculo que, afinal, poderá remanescer será o elemento humano. Nesse
ecossistema digital, uma classe de juristas será convertida em afanosos
amanuenses vinculados ao sistema eletrônico de informações. A relevância dos
registradores tenderá a reduzir-se dramaticamente.
Notem que tudo isso nos é
apresentado sob o signo da modernidade - uma solução limpa, ordenada,
higiênica, econômica, em conformidade com os novos paradigmas da
"sociedade da transparência" - como se a trama registral representasse
uma aspereza sistêmica, cuja sujidade devesse ser expelida pela detergência
suavizadora de bits e bytes.
A qualificação registral
cingir-se-á ao preenchimento de meros campos pré-definidos no extrato
eletrônico (art. 6º da MP 1.085/2021) - ou em "formulários"
eletrônicos, espécie de algoritmo que pode embarcar inteligência artificial e
tecnologia de machinelearning. Os contratos serão automatizados (smartcontratacts)
e afinal, grandfinale!,codeislaw.
Neste ecossistema de redes e
centrais eletrônicas personalizadas, os nódulos ineficientes tendem a ser
eliminados por representarem custos e burocracia. A tendência avistável é a
abreviação dos tramos da infovia transiente que ainda liga o usuário a cada
unidade que compõe o sistema registral.
As infovias não têm semáforos
As operações tenderão a ser
realizadas pelos próprios interessados, atuando diretamente nas plataformas
digitais das entidades registradoras.
Vejamos um aspecto singular da
reforma. Suprimido o reconhecimento de firmas, a comprovação de autenticidade
(fixação de autoria) dos documentos privados submetidos a registro (artigos 127
e 129 da LRP) caberá "exclusivamente ao apresentante" (§2º do art.
130 da LRP). Vale reproduzir o texto legal:
"§ 2º O registro de
títulos e documentos não exigirá reconhecimento de firma, cabendo exclusivamente
ao apresentante a responsabilidade pela autenticidade das assinaturas
constantes em documento particular".
Até há bem pouco - parece que foi
há um século! - , a definição da autoria do documento era matéria muito
relevante para o direito (e para os Registros Públicos, em particular) e ela se
relacionava com a prova pré-constituída, um fator relevantíssimo no jogo
probatório:
"A indagação da autoria do
documento é de importância capital, tanto no aspecto teórico como do aspecto
prático, pois que diz respeito à proveniência do documento, e, portanto, à
verificação da fé que deva merecer. De tal relevo o assunto [...] que toda a
teoria do documento se acha dominada pelo problema de paternidade"11.
No texto da medida provisória
embaralha-se o ato material e o ato jurídico da formação do
título12, investindo qualquer apresentante dos poderes de autenticação e
certificação próprios de delegatários da fé pública - o que, afinal, já não
importa muito. Na lógica desta medida provisória, tal supressão não é tão
relevante quanto o fato de o documento, seja qual for o seu conteúdo, forma, ou
mesmo autoria, esteja arquivado ("registrado") nos repositórios
eletrônicos do SERP. Tão simples e rápido quanto um [enter] de permeio
entre um café e um cigarro na sacada.
A própria medida provisória não
deixará de reiterar (e agravar) a lógica do modelo de transubstanciação dos
registros de direitos (títulos) convertidos em meros registros de documentos
(ou cadastros privados, aka entidades registradoras), em que o controle
jurídico se dá ex post, por meio da intervenção jurisdicional. O art.
161 da LRP reza:
"Art. 161. As certidões do
registro de títulos e documentos terão a mesma eficácia e o mesmo valor
probante dos documentos originais registrados, físicos ou nato-digitais,
ressalvado o incidente de falsidade destes, oportunamente levantado em
juízo".
Nos termos do art. 428 do CPC,
cessa a fé do documento particular "quando for impugnada a sua
autenticidade e enquanto não se comprovar a sua veracidade". Ora, a simples
impugnação de autenticidade do documento faz cessar a fé do instrumento
particular. Justamente porque estes documentos não gozam de fé pública,
"a lei não exige o reconhecimento judicial de falsidade para que percam
seu valor probatório. Bastará a impugnação da autoria (autenticidade) ou a
impugnação do conteúdo (quando supostamente tenha ocorrido preenchimento
abusivo) para que se ponha em dúvida o seu valor"13.
Pouco se acrescentou ao quadro
normativo anterior a adição da expressão eficácia, pois, consequência
dependente da validade, impugnada que seja a autenticidade, suspende-se a plena
eficácia. A querela di falso desconstitui "a respectiva eficácia
probatória (= deixam de provar)"14.
Não se argumente que o
arquivamento de um instrumento privado num Registro Público converte-o, ipso
facto, em um documento "público". Tampouco se "reputam
instrumentos públicos as certidões que deem de sua existência e conteúdo os
oficiais do Registo de Títulos e Documentos", desde EDUARDO ESPÍNOLA15.
Quando se diz que a certidão terá
"a mesma eficácia e o mesmo valor probante dos documentos originais
registrados", tal disposição, mal compreendida, pode levar à
"monstruosidade" (sic) de que "qualquer documento falso,
uma vez registrado, tornar-se-ia válido e provado! ... Ora, isso não é
possível", como registrou a seu tempo AZEVEDO MARQUES16.
Este tema foi debatido e bem
resolvido ainda na década de 20 do século passado quando juristas, reunidos no
antigo Instituto de Advogados, discutiram a "Tese LIMA PEREIRA". As
certidões do RTD, disse o mesmo AZEVEDO MARQUES em passagem célebre, "têm
fé pública, não há duvidar, mas tão somente para provarem que o registro se
fez, e em data determinada, ficando sempre os documentos originais"
subordinados aos exames e provas posteriores". A comissão sufragou a
seguinte conclusão:
"A certidão extraída por
oficial do Registro de Títulos e Documentos Particulares, de transcrição
integral do documento, sendo impugnada, não contém, por si só, desacompanhada
do original, valor probante algum".
O documento público faz prova da
sua formação e dos fatos que o tabelião colher no ato por ele lavrado (art. 405
do CPC). Não há equivalência entre um (público) ou outro (privado) neste
aspecto; portanto, não se confundem as disposições dos artigos 427 e 428 do
atual CPC.
O elemento fundamental à produção
de eficácia probatória nos documentos particulares, avulta no conteúdo e na
autoria. É a presunção legal da autoria que torna autêntico o documento. Diz o
art. 411 do CPC que se considera autêntico o documento quando o "tabelião
reconhecer a firma do signatário" (inc. I). O simples reconhecimento das
firmas é um meio rápido, econômico, seguro e eficaz para fixar a autoria e
robustecer a prova de modo a premunir as partes na proteção e defesa dos seus
interesses. O mesmo ARAKEN DE ASSIS averba:
"Reconhecida a firma por
autenticidade, ou seja, subscrito o documento particular na presença do
tabelião, o art. 411, I, declara-o autêntico. Ao documento particular se
acresce o elemento público, ou seja, a fé do tabelião"17.
É evidente que as considerações
aqui lançadas se aplicam aos instrumentos particulares assinados com firmas
digitais. A assinatura digital da ICP-Brasil reúne em si os elementos
presuntivos de autoria18. O "processo de digitalização que empregar o uso
da certificação no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira
(ICP-Brasil) terá garantia de integralidade, autenticidade e confidencialidade
para documentos públicos e privados"19. Voltarei em breve ao tema
das assinaturas eletrônicas em virtude de recentes alterações legislativas.
O sumidouro registral e a
ineficiência do sistema
O progressivo esvaziamento dos
registros jurídicos se constata facilmente. A constitutividade do registro das
garantias fiduciárias sobre veículos automotores foi destruída por um argumento
que, no fundo, se assentava e legitimava pela ineficiência da arquitetura
analógica do registro de direitos.
O registro nos órgãos de trânsito
seria considerado pelo STJ "mais eficaz do que a mera anotação no Cartório
de Títulos e Documentos (RTD)", na dicção do ministro LUIZ FUX, em triste
precedente para a categoria. A exigência legal seria uma "odiosa
imposição", segundo ele, em afronta ao princípio da razoabilidade, "posto
impor desnecessário bis in idem, máxime à luz da interpretação autêntica
levada a efeito pelo novel artigo 1.361 do Código Civil"20.
Daí a se consagrar no STF a
constitucionalidade do § 1º do artigo 1.361 do Código Civil "no que revela
a possibilidade de ter-se como constituída a propriedade fiduciária de veículos
com o registro do contrato na repartição competente para o licenciamento do
bem"21.
Um típico exemplo de
transubstanciação de um registro administrativo (cadastro de veículos
automotores) em registro de direitos.
A ideia de que haveria um odioso bis
in idem na registração deve nos levar a refletir seriamente acerca desta
insinuante revolução de veludo: registro de gravames em registros imobiliários e
sucessivamente "registrados"em entidades registradoras (§2º do
art. 22 da Lei 10.931/2004); registro em plataformas digitais e nos
cartórios que compõem o círculo registral. Ou, o que é muito pior: na
fusão de ambos.
A "eficácia" trânsfuga
pode ser acolhida no "útero eletrônico" de uma entidade
para-registral22.
A verdade é que as coisas, nesse
ambiente das redes eletrônicas, fazem-se transparentes, líquidas, lisas e
qualquer rugosidade ou aspereza tende a ser expelida do sistema. Diz
BYUNG-CHUL, que os meios tornam os seus conteúdos transparentes quando
abandonam qualquer "negatividade", quando as coisas "se tornam
lisas e planas, quando são inseridas sem resistências na torrente lisa do
capital, da comunicação e da informação". E conclui:
"As ações se tornam
transparentes quando se fazem operacionais, quando se submetem aos processos de
cálculo, direção e controle. O tempo converte-se em transparente quando
nivela-se como sucessão de um presente disponível"23.
Aqui está o receituário da
conversão de um típico sistema de registro de direitos em um mero registro
de documentos a cargo de centrais digitais personalizadas privadas (§4º do
art. 3º da MP 1.085/2021).
Senhoras e Senhores, eis o
milagre da transubstanciação do vinho em água chilra.
Enfim, visto de modo ligeiro, a
solução há de soar bastante atraente e atenderá aos reclamos do capital
financeiro, pendendo "naturalmente" para tutela dos interesses da
parte mais poderosa da relação jurídica.
O registro jurídico rende-se ao
tropismo do capital financeiro, sem qualquer consideração sobre ideias
aparentemente ultrapassadas - como direito do consumidor, tutela pública de
interesses privados, pré-constituição de provas, fixação ex ante de
autoria nos instrumentos privados etc. etc.
O preenchimento de requisitos
formais, como outrora previstos expressamente na lei, eram exigências criadas
para premunir as partes na melhor defesa de seus direitos, sem que tivessem que
se socorrer do Poder Judiciário para sanar e estabilizar as suas relações
jurídicas.
Este sistema não reclama, para
sua efetivação, mais do que tecnologia e investimentos massivos - o que não
falta ao mercado de unicórnios tecnológicos e seus investidores.
Com essas medidas reformistas,
buscou-se superar as asperezas próprias do discurso jurídico, suprimindo-se os
pré-requisitos da registração e a própria qualificação registral, condenando o
sistema a figurar com destaque no elenco de meros cadastros administrativos, a
cargo de entidades registradoras personalizadas privadas.
Mais cedo ou mais tarde, todos
acabarão na contingência de disputar o mercado pela via da concessão ou da
licitação, sob fiscalização do Banco Central do Brasil. E poderão, enfim,
dormir em paz.
É possível fazer as coisas de
outro modo?
Sim, é possível. A saída seria
buscar soluções tecnológicas baseadas na descentralização e coordenação do
sistema registral em meios eletrônicos. A tendência que se verifica neste exato
momento, revelando o estado da arte da tecnologia, é justamente a descentralização,
fator de segurança e autonomia de iniciativas como bitcoin, da famosa blockchain,
de outros criptoativos e iniciativas congêneres.
Já tive ocasião de me manifestar
sobre o problema da centralização de dados:
"Todos sabem que penso ser
factível, como resposta aos desafios postos, conceber uma infraestrutura em que
se possa entrar e sair de todos os nós que compõem o grafo registral pela
reafirmação coordenada e arquetípica dessa maravilhosa máquina de
descentralidades representada pelo Registro Imobiliário brasileiro".
"Não é necessário esvaziar a
importância ou suprimir cada nó dessa imensa rede, eis que a rede somos nós!
Isto nos dá identidade, fortaleza e nos singulariza. Para este velho
registrador, a busca do Graal registral consiste, basicamente, em reencontrar e
reconhecer os caminhos que nos conectam com nossa essencialidade, formada do
conjunto de seus vários vértices (nós) que compõem o grande círculo
registral"24.
Sobre a questão da centralização versus
descentralização, sempre entendi ser esta uma questão subalternada a outra,
mais importante ainda, que é a natureza jurídica da delegação25.
A contraposição de conceitos e
modelos centralizados X descentralizados diz respeito à infraestrutura
tecnológica de base meramente instrumental. A suplantação do modelo de
delegação de uma função pública notarial e registral, exercida em caráter
pessoal e indelegável (art. 236 da CF), substituído por outro, muito diverso,
cria um cenário propício para que exsurjam, como têm despontado, entidades
privadas personalizadas a desempenhar atividades próprias de registradores
públicos - as tais entidades registradoras.
O SERP insinua uma tredestinação,
espécie de subdelegação de atividades notariais e registrais, de parcelas
significativas de funções públicas. As Notas e os Registros Públicos
brasileiros exercem uma função típica de Estado na tutela pública de interesses
privados. Esta configuração é reconhecida de modo uniforme pelo STF. Vale a
pena citar MOREIRA ALVES, em memorável voto:
"Os tabeliães e os oficiais
registradores - que são órgãos da fé pública instituídos pelo Estado e que
desempenham atividade essencialmente revestida de estatalidade - dependem, para
efeito de ingresso na atividade notarial e de registro, de prévia aprovação
em concurso público de provas e títulos [...]".
Os notários e registradores,
segundo o ministro, estão "incumbidos de velar pela segurança, registro,
publicidade e autenticidade dos atos jurídicos, além de investidos na
relevantíssima função inerente à tutela administrativa dos interesses privados
(JOSÉ FREDERICO MARQUES, "Manual. de Direito Processual Civil.", vol.
1, p. 259/264, itens 216-221, 13 ed., 1990, Saraiva; MOACYR AMARAL SANTOS, Primeiras
Linhas de Direito Processual Civil, vol. 1/134, item n. 103, 14ª ed., 1990,
Saraiva, v.g.)" [...]. E remata:
"Afigura-se-me inquestionável
que as Serventias extrajudiciais constituem instituições de direito público,
organizadas pelo Estado, em ordem a preservar a segurança das situações
jurídicas individuais. Os tabeliães e os oficiais registradores, nesse contexto
- e no desempenho de seu ofício público -, dispõem de uma prerrogativa
singular, ínsita à própria e suprema autoridade do Estado, consistente no
exercício do poder certificante, destinado a atestar a veracidade e a
legitimidade de determinados fatos e atos jurídicos".
"Essa circunstância só faz
acentuar a estatalidade que qualifica as atribuições dos serventuários
extrajudiciais, como enfatizou JOÃO MENDES JÚNIOR, em obra clássica (Órgãos
da Fé Pública, 2ª ed., 1963, Saraiva)"26.
Ao atrair e concentrar tais
funções (não somente dados, o que seria igualmente problemático) em entidades
para-registrais, mesmo aquelas criadas por registradores, damos um passo rumo a
um mundo incerto, dando ocasião a fenômenos disruptivos que podem levar ao
colapso instituições tão tradicionais como o são os registros públicos.
A mesma eficiência, agilidade,
comodidade e modicidade pode ser alcançada com o prestígio e valorização das
instituições tradicionais - pelos órgãos da fé pública, como referiu o
ministro.
Enfim, sobre a reconformação do
registro público em centrais personalizadas ser (ou não) mais eficiente, barata
e adequada às necessidades jurídicas e econômicas da sociedade brasileira, eis
uma questão que não foi suficientemente debatida entre nós,
registradores, e entre juristas de escol.
A consequência direta do fenômeno
de desinstitucionalização dos registros públicos, após sucessivas quebras
disruptivas, é que tanto as operações eletrônicas de registro, quanto os dados
albergados nas serventias, como consectário lógico do sistema de informações,
migrarão do seu locus tradicional (art. 22 e ss. da Lei 6.015/1973 c.c.
art. 46 da Lei 8.935/1994) para o ventre de entidades para-registrais, onde
serão centralizados e processados por máquinas coadjuvadas por amanuenses.
Deve-se diligente perquirir: isso
é bom? É ruim? Talvez não me caiba dar as respostas a estas e a tantas outras
perguntas que deixei espalhadas como migalhas nesta longa estrada pela qual já
não é possível retornar.
Tenho a impressão, baseada na
minha experiência pessoal, de que os "meios acabarão por transformar o
emissor, o conteúdo e o receptor", parafraseando McLUHAN. Ao final e ao
cabo, teremos outra coisa, que não tem história, tradição, nem destino, algo
que se não confunde com o Registro de Imóveis que a sociedade tão bem conhece,
confia e respeita.
O sarampão reformista pode nos
levar a caminhos sem volta. Você está preparado?
__________
1 O tema foi agitado na academia.
V. BODINI. Constanza. Registro de garantias mobiliárias: uma proposta para
sua modernização. São Paulo: FGV, 2019. Acesso aqui.
2 Falo do SREI - Sistema de Registro eletrônico
de Imóveis. Coordenado pelo CNJ, em parceria com a LSITec, a especificação do
modelo e sua prova de conceito foram avalizadas por juristas, cientistas e
registradores de escol. Para uma antevisão.
3 Lei Modelo Interamericana sobre
Garantias Mobiliárias da OEA, aprovada em 2002, pela Lei Modelo sobre Garantias
Mobiliárias da UNCITRAL, aprovada em 2016, pela Convenção sobre Garantias
Internacionais Incidentes sobre Equipamentos Móveis e pelo Protocolo à
Convenção sobre Garantias Internacionais sobre Incidentes sobre Equipamentos
Móveis Relativo a Questões Específicas ao Equipamento Aeronáutico, firmados na
Cidade do Cabo em 2001 e ratificados pelo Brasil em 2013, e pelo Protocolo MAC
(mineração, agricultura e construção). As referência firam hauridas da
monografia de CONSTANZA BODINI, citada na nota 1.
4 V. JACOMINO. Sérgio. SERP e
o Monstro de Horácio in MP 1.085 e o Monstro de Horácio. São Paulo:
Observatório do Registro, 2022. Acesso aqui.
5 "The Model
Registry Provisionshavebeendraftedtoaccommodateflexibility in registry design.
Thatsaid, the Registry shouldbeelectronic in thesenseofpermittinginformation in
registerednoticestobestored in electronicform in a single database
(seeSecuredTransactionsGuide.).[.]. Anelectronic registry
databaseisthemostefficientandpracticalmeanstoimplementtherecommendationoftheSecuredTransactionsGuidethatthe
registry recordshouldbecentralizedandconsolidated [.]". V. UNCITRAL
- Model Law onSecuredTransactionsGuidetoEnactment. Vienna: UN, 2017, pp.
49-50.
6 RODAS. João Grandino. Sistema
registral precisa favorecer a utilização de garantias mobiliárias. Conjur.
11/6/2020. Acesso aqui.
7 BAZINAS. Spiro. Encontro
CNF: Os instrumentos internacionais e o regime das garantias do crédito -
Perspectivas e propostas para um melhor ambiente de negócios no Brasil.
CNF, 2017, p. 23.
8 PINTO E SILVA. Fábio Rocha. Op.
cit. p. 34.
9 V. especialmente p. 37.
10 Sobre esta "compulsão
centralista" vide a série de artigos publicados no Observatório do
Registro. Brevitatis causa: O centro é marginal - viva a centralidade das
periferias! In JACOMINO. Sérgio. IRIB - até aqui viemos e daqui outros
haverão de partir. São Paulo: Boletim do IRIB em Revista n. 363, abril de
2021, p. 6. Acesso aqui.
11 SANTOS. Moacyr Amaral. Prova
Judiciária no Cível e Comercial. Vol. IV. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad,
1966, p. 42, n. 20.
12 A formação material de algumas
espécies de contratos está a cargo da máquinas ou de proponentes (agentes
financeiros etc.). Diz CARNELUTTI: "Avvertoquisubitoche per
formazionedel documento non intendo tanto l'attomateriale quanto
l'attogiuridicodella sua formazione; o, più, chiaramente, per formatore o
autoredel documento non indico tanto coluiche materialmente lo forma, quanto
colui, cuil'ordinegiuridico ne attribuiscelaformazione, cioèrispetto al quale
se verificanoglieffettidellaformazionemedesima [.]". CARNELUTTI.
Francesco. La Prova Civile. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1992, 144, n. 36.
13 ARENHART. Sérgio Cruz. Breves
Comentários ao CPC. WAMBIER. Teresa Arruda Alvim, et. al. Org. São Paulo:
RT, 2015, p.1.087.
14 ASSIS. Araken. Processo
Civil Brasileiro, 2ª ed. Vol. III, 2016, p. 792, § 1.944.
15 ESPÍNOLA. Eduardo. Manual
do Código Civil, Vol. III, parte 3ª. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro dos
Santos, 1929, p. 342.
16 Revista dos Tribunais n.
70/297. A lição seria repercutida na jurisprudência. V. Ag. Pet. 230.213,
Franco da Rocha, j. 4/10/1974, rel. des. MÁRCIO MARTINS FERREIRA. Acesso aqui.
17 ASSIS. Araken. Op. cit.
nota 14, p. 730.
18 Idem, ibidem, nota
14, p. 684, n. 1.916 in fine.
19 É a redação do inc. II do art.
18 da Lei 13.874/2019. Cfr. tb. § 1º do art. 1º da MP 2.200-2/2001; inc.
II do art. 411 do CPC.
20 STJ REsp 686.932-PR, j.
1/4/2008, DJ 10/4/2008, rel. min. LUIZ FUX.
21 STF RE 611.639- RJ, j.
21/10/2015, DJ 15/4/2016, Pleno, rel. min. MARCO AURÉLIO.
22 Deliciosa expressão do
advogado paulistano, Dr. ERMITÂNIO PRADO. JACOMINO. Sérgio. A SERPENTINA
REGISTRAL (aka Reforma Curupira). As bolhas da modernidade. São Paulo:
Observatório do Registro, 2022, acesso aqui.
23 "Matters prove
transparentwhentheyshedallnegativity, whenthey are smoothed out andleveled,
whenthey do notresistbeingintegratedintosmoothstreamsof capital, communication,
andinformation. Actions prove transparentwhenthey are madeoperational -
subordinateto a calculable, steerable, andcontrollableprocess. Time
becomestransparentwhen it glides into a
sequenceofreadilyavailablepresentmoments". HAN, Byung-Chul. The
Transparency Society. California: Stanford University Press, 2015.
24 JACOMINO. Sérgio. Até aqui
viemos - daqui outros haverão de partir. Op. cit. nota 10.
25 Daqui em diante reproduzo,
literalmente, o que se acha em JACOMINO. Sérgio. Agonia central - ou anomia
registral? São Paulo: Observatório do Registro, 23/10/2021. Acesso aqui.
26 STF, RE 189.736-8-SP, j.
26/3/1996, DJ 27/9/1996, pela 1.ª T. Rel. Min. MOREIRA ALVES. Acesso aqui. No mesmo sentido: ADI-MC
1.378/ES, j. 30/11/1995, DJ 30/5/1997, Rel. Min. CELSO DE MELLO. Acesso aqui. RE: 178.236 - RJ, j. 7/3/1996,
DJ 11/4/1997, Rel. Min. OCTÁVIO GALLOTTI. Acesso aqui.
*Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de
Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018
e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em
Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro
honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de
Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.
Fonte: Migalhas