Após 13 anos de um casamento em
que apanhava constantemente do marido, a analista financeira Ana Cristina
Thomaz, 38, reuniu coragem para entrar com o pedido de divórcio na Justiça.
A gota d´água foi uma agressão
física que a deixou com cicatrizes, em 2019, depois da qual ela decidiu que
deveria terminar a relação de uma vez por todas para seu bem e de seu filho, na
época com 10 anos. Começava ali um caminho difícil até a separação, que levou
quase dois anos: seu marido, para evitar o divórcio, passou a se esconder dos
oficiais de Justiça, mudando constantemente de endereço e, assim, evitar a
citação —momento em que é notificado da existência do processo e entra como
parte na ação judicial.
"Sofri todos os tipos de
violências que você possa imaginar. Tinha muito medo, e toda essa demora me
fragilizou muito", contou Ana a Universa. "Ele não aceitava o
término, inventou que eu tinha outro, entre muitas outras coisas."
Naquele ano, Ana também denunciou
o ex-marido por violência doméstica pela primeira vez. "Ele dizia que iria
conversar com as suas advogadas, mas nunca aparecia para a Justiça, para
resolvermos o divórcio. O processo foi se estendendo", relembra.
Ela conta que sabia que o ex
estava evitando se apresentar de propósito. "Ele dava desculpa dizendo que
estava viajando, mas eu sabia que ele estava na cidade porque ainda dividíamos
a mesma casa. Apesar de tudo o que passei, não tinha para onde ir. E ele ainda
me dizia que ele não responderia às intimações porque não queria se separar."
As advogadas de Ana entraram com
um pedido de medida protetiva. Após a decisão, ele fugiu para um endereço
desconhecido em Manaus. A par do caso, a juíza à frente do processo decidiu
autorizar o divórcio, mesmo sem as respostas de seu ex-marido, por meio de uma
citação por edital —quando a informação é publicada em veículos de grande
circulação e em documentos públicos, como o Diário Oficial.
A advogada Bruna Sillos, mestre
em direito de família pela USP (Universidade de São Paulo), explica que o
mecanismo utilizado pela juíza só ocorre em casos extremos, quando todas as
formas de encontrar a pessoa já foram usadas.
Sillos explica que essa pode ser
uma saída para situações como a de Ana, em que o réu se oculta e atrasa
deliberadamente o divórcio.
Nesses casos, explica que
recolher provas de que o companheiro está deliberadamente tentando se esquivar
da citação, como testemunhas, ajuda juízes a decidirem conceder a citação por
meio de edital.
"O divórcio não é uma
escolha da outra parte. Se uma das duas partes quer se separar, a outra não tem
como se opor. Não é possível dizer 'não aceito me divorciar', apesar de
acontecer. Mas a Justiça não abre espaço para que o outro se oponha,
diferentemente da discussão da guarda de um filho e a partilha dos bens."
Divórcio unilateral ainda não é
regulamentado
Há dois tipos de divórcios no
Brasil: o consensual e o litigioso. O primeiro pode ser feito em cartórios, de
maneira extrajudicial, na presença de um advogado, quando o casal não tem
filhos ou não há discussão de bens. Já quando a separação envolve conflitos por
esses ou outros temas, o divórcio ocorre por meio de processo no Judiciário.
Em maio de 2019, uma decisão do
Tribunal de Justiça de Pernambuco abriu precedente no estado para facilitar o
chamado divórcio unilateral no caso de separações consensuais. Ou seja, o
procedimento poderia ser feito em cartório por apenas um dos cônjuges,
independentemente da presença ou anuência do outro. "Nesse caso, a outra
parte só seria notificada. Já não é uma citação para responder", explica a
advogada Bruna Sillos.
Logo após a decisão favorável ao
divórcio unilateral em Pernambuco, o ministro Humberto Martins, da Corregedoria
Nacional de Justiça, fez uma recomendação contrária à prática. Com isso, não é
possível realizar o processo sem a citação do cônjuge, por enquanto, no país.
Já no divórcio litigioso, por ser
uma ação judicial, deve necessariamente ter o comparecimento das duas partes.
Mas ainda assim, há maneiras de realizar o divórcio unilateral nesses casos —seja
com a citação ou com a concessão antecipada do divórcio pelo juiz, que primeiro
reconhece a separação e deixa o conflito do casal para se resolver em um
segundo momento.
"Nos casos de divórcios na
Justiça, o processo só se completa com a sentença. Mas, às vezes, um processo
litigioso pode durar quatro ou cinco anos e a pessoa, por diversos motivos,
quer se divorciar o quanto antes para poder seguir a vida dela ou mesmo em
casos de violência doméstica", afirma a advogada.
Em 2010, a Emenda Constitucional
66 colocou fim à chamada imputação no processo de divórcio, ou seja, a
discussão sobre a qual dos ex-parceiros cabia a culpa pelo término do
relacionamento. "A partir daí, nenhuma das partes precisa justificar os
motivos pelos quais quer se divorciar. Então é até contrário ao ordenamento
jurídico que uma pessoa seja obrigada a se manter em um vínculo matrimonial.
Ninguém, desde essa emenda, precisa se justificar porque quer sair desse
vínculo."
"Dois anos para uma citação,
por exemplo, não é um tempo razoável para um processo. O judiciário deve olhar
para essas durações de um ato, já que isso não pode prejudicar uma das
partes", finaliza Sillos.
Em processos envolvendo violência
doméstica, arrastar uma separação por tanto tempo pode ser, segundo especialistas,
uma maneira de manter a mulher no chamado ciclo da violência, agindo de maneira
que a afete psicologicamente, mesmo após o fim da relação.
Prática pode facilitar ocultação
de bens
Luana Soto, advogada de direito
de família e mestranda em Direitos Humanos pela USP, explica que a
flexibilização dos divórcios unilaterais pode ajudar mulheres a sair de
relações abusivas mais facilmente. Mas ela diz que, por outro lado, o divórcio
unilateral pode ser usado para ocultar bens.
"Se a pessoa consegue, por
exemplo, voltar ao nome de solteiro, pode ocultar bens que deveriam ser dividos
entre o casal", diz.
Segundo ela, o tema é
controverso. "Por mais que a outra parte não precise dar a concordância,
deve ser comunicada e estar ciente", afirma.
Uma forma recente para se
contornar casos em que a pessoa deliberadamente foge da citação são os canais
digitais. "E-mail e WhatsApp começam a ficar comuns e já são aceitos pelo
Judiciário", conta Soto.
Quase dois anos depois de tentar
encontrar o ex-marido, Ana finalmente conseguiu seu divórcio em março de 2021.
Para ela, ter o papel reconhecendo a separação foi um alívio. "Até eu
pedir o divórcio, não tinha muita noção da situação de violência que estava
vivendo. Só fui perceber o peso da minha história quando me separei e consegui,
finalmente, que meu ex não estivesse mais na minha vida", conta ela.
"Me senti liberta. Foi
gratificante. A primeira coisa que eu fiz foi mudar meus documentos e
reconstruir minha vida."
Fonte: Portal UOL