A confiança é um dos elementos que unem
os indivíduos em sociedade. Em especial as relações comerciais, que exigem a
confiança de que as partes vão cumprir o avençado. Hoje, essa confiança decorre
principalmente do maior ou menor acesso à informação e da capacidade de
compreendê-la. Quanto mais difícil obter informações e menor seu entendimento,
maior o lapso de confiança entre os indivíduos.
Nas palavras de Katherine Maher, CEO da
Wikimedia Foundation, "o mundo vive uma crise de confiança. E essa crise
não é apenas de proporções sem precedentes, é também uma ameaça existencial
para a humanidade, pois ela é transversal a vários mundos, e que afeta desde o
jornalismo até os órgãos de governo".
Assim, podemos afirmar que entre os
indivíduos sempre houve certo grau de dissonância da noção de realidade. Hoje
essa dissonância está cada vez maior. Quando buscamos informações relevantes
para a tomada de decisões, captamos o mundo através de uma lente digital que
pode mudar nossa percepção dos fatos.
O digital os reflexos sobre a confiança
Os algoritmos, em razão da dataficação
de nosso comportamento, nos termos do conceito cunhado por Viktor
Mayer-Schönberger e Kenneth Cukier, nos conhecem melhor do que nós mesmos.
Câmeras reconhecem nossa face, celulares seguem nossa localização, relógios
captam nossos dados de saúde, redes sociais registram nosso histórico, e todos
esses dados são cruzados e interpretados para, ao final, escolherem a que
informações seremos submetidos.
Formam-se, então, universos individuais.
Uma espécie de realidade retroalimentada, na medida em que normalmente esses
algoritmos não são escritos para desafiar o observador, mas sim para agradá-lo,
de sorte que cada busca por informação é personalizada e planificada.
Neste passo, constata-se que hoje há um
processo de crescente desconfiança em relação ao mundo digital, gerado também
por uma causa estrutural pouco estudada. Falo do analfabetismo digital. Não
aquele causado pelo não acesso ao mundo digital, mas sim o que decorre da transformação
que o mundo digital causou na representação do pensamento humano. Explico: o
atual ambiente de desconfiança generalizada atinge o próprio suporte das
informações que recebemos. É que as pessoas têm percebido que aquilo que veem
nas telas necessariamente não é o que efetivamente ficará registrado.
O pensamento humano necessita de
códigos para ser externado e compreendido pelos destinatários. E mais: em
situações complexas, de efeitos duradouros, precisa de suporte material que o
perpetue.
O raciocínio se externa de códigos
organizados em regra com o objetivo de permitir que o interlocutor entenda a
ideia, a fala. Já no que toca à preservação da informação, o ser humano, há
milhares de anos, desenvolveu outra série de códigos, a escrita.
Neste milênio, um novo código de
linguagem passou a ser predominante na transmissão das informações ao
transformar a linguagem escrita em código mediato de transmissão, não gerando
grau de confiança que outrora gerava nas interações humanas. A linguagem de
programação passou a servir de suporte intermediário para a escrita a causar,
por vezes inconscientemente, um sentimento de estranheza naqueles que interagem
por meio desse novo suporte, mantido por códigos/linguagens que não entendem.
Tanto que alguns países já introduziram o ensino obrigatório da programação
desde o ensino fundamental, como é o caso de Coreia do Sul, Inglaterra e
Austrália. Agora somos analfabetos em uma nova linguagem.
O papel do Estado na recuperação da
confiança
Essas duas causas da crise de confiança
da sociedade moderna exigem trazer ao debate um ator que se manteve até o
momento distante dessas questões: o Estado, única realidade imaginada que ainda
possui mecanismos de legitimação democrática e jurídica para pacificar a
sociedade e evitar o rompimento do tecido social gerado pela desconfiança
generalizada.
Há a necessidade de que o Estado
participe, juntamente com a sociedade civil e as empresas, desse debate na
construção de uma regulação equilibrada da atuação desses algoritmos, na medida
em que vemos que a autorregulação das empresas não tem se mostrado suficiente.
Há necessidade também que o Estado lidere as ações de alfabetização digital das
pessoas, para que paulatinamente possam se tornar autossuficientes nesse novo
suporte do pensamento. Essas soluções demandam um tempo de que não dispomos.
Portanto, até que possamos devolver aos
indivíduos a capacidade de interpretar as informações, devemos imediatamente
encontrar mecanismos de atenuação da desconfiança. Primeiro, constata-se que já
enfrentamos crise de confiança nas informações, no início da massificação das
relações comerciais.
Os notários e sua credibilidade na
dataficação da sociedade
As praças de comércio eram locais de
enorme insegurança e conflito causado pelo fato de que os atores desconheciam
os códigos da linguagem escrita. Imperava a oralidade e a memória humana como
forma de perpetuação dos negócios firmados.
Na impossibilidade de alfabetizar os
indivíduos, surgiram nas praças de comércios pessoas que, dotadas de
conhecimento nas artes da escrita e credibilidade entre os cidadãos, que
ficaram incumbidas de presenciar e registrar as relações negociais. Esse
mecanismo não apenas conferiu a possibilidade de facilitação na solução de
litígios, como também serviu de desestímulo a questionamentos infundados. O
atuar nessas áreas fez com que esses atores se tornassem peritos nas regras que
regulavam as relações humanas, ou seja, passassem a conselheiros jurídicos.
Essa atividade, que recebeu o nome de
função notarial, consiste justamente na direção imparcial da vontade dos
particulares, formalizando-as de acordo com a lei para que atinjam sua
finalidade e possam servir de prova eventual.
O desenvolvimento milenar dessa
atividade, fez com que a função notarial conquistasse grau elevado de
credibilidade e presença na cultura dos povos. Assim como criou um arcabouço
jurídico legal que faz com que a função notarial seja revestida de atributos
que conferem maior confiança às relações negociais e aos fatos que presenciam.
A atestação dos suportes digitais,
pelos notários, pode reduzir as dúvidas decorrentes do desconhecimento da
linguagem de programação e da veracidade das informações. Vejamos o caso de
informações inseridas em uma rede blockchain. Em decorrência da criptografia e
do consenso de rede, elas serão imutáveis. Contudo uma informação inverídica
será imutavelmente inverídica. Assim, caso haja desconfiança em relação à
veracidade da informação matriz, o notário pode, com a fé pública gerada por
sua credibilidade e regime jurídico, atestar sua veracidade, suprindo o lapso
de confiança entre as partes.
A sociedade terá que encontrar
mecanismos de atenuação da desconfiança como o acima sugerido, pois tecnologias
que permitem a dataficação da vida e a inteligência artificial impactam de
forma inédita nossa forma de pensar, de decidir, de trabalhar e de educar, com
reflexos enormes em princípios e valores que são caros ao humanismo, tais como
liberdade, igualdade e privacidade. Nesse contexto, a humanidade depende de
suas escolhas políticas e pode se valer de instituições do passado para que as
mudanças sejam benéficas ao maior número de seres humanos.
Andrey Guimarães Duarte é tabelião e vice-presidente do
Colégio Notarial do Brasil — Seção São Paulo.
Fonte: ConJur