Nesta
seção da "Oficina Notarial e Registral" vamos tratar hoje de um tema
pouco estudado e que pode ocorrer nos processos extrajudiciais de usucapião,
adjudicação, execução extrajudicial etc.
É
possível que no curso desses processos ocorra a reiteração de pedidos de
suscitação de dúvida. No caso concreto enfrentado por nós tratava-se de
reiteração de dúvida já suscitada e julgada procedente anteriormente -
inclusive em grau de recurso, com trânsito em julgado.1
Vamos
lançar um breve olhar sobre a jurisprudência escassa que enfrentou raros casos
de reiteração de pedidos de suscitação de dúvida.
Formou-se,
ao longo do tempo, no Eg. Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, uma
orientação bastante consistente e que vale a pena rememorar para que se
iluminem as questões agitadas no caso concreto enfrentado por nós.
Sabemos
que a dúvida tem natureza administrativa (art. 204 da LRP). As decisões
prolatadas no processo de dúvida (art. 198 da LRP) não produzem eficácia
externa, típica da coisa julgada material - salvo se o interessado optar pela
via do processo contencioso, como posto na parte final do art. 204 citado.
Portanto, no processo de dúvida não ocorre a coisa julgada material.
Entretanto, com o trânsito em julgado (art. 203 da LRP), dá-se a coisa julgada
formal - na verdade um efeito preclusivo endoprocessual, com o esgotamento da
matéria neste âmbito.
Segundo
Ricardo Dip et al., de fato, não há coisa julgada material no processo de
dúvida, mas "pode cogitar-se, contudo, de formação de coisa julgada formal
(que melhor se denomina preclusão administrativa", vale dizer:
"imutabilidade nos mesmos autos em que proferida".2 A reiteração da
dúvida não é incondicionada no sistema registral pátrio, admite-se-a,
"desde que se supere motivo anteriormente reconhecido3 ou que se
tenha alterado a jurisprudência a respeito das questões tratadas".4
Nery
e Nery sustentam que a coisa julgada formal ocorre quando a sentença já não se
acha sujeita a recurso ordinário ou extraordinário, quando já se tenham
"esgotados todos os meios recursais de que dispunham as partes e
interessados naquele processo. Para a coisa julgada formal leva-se em conta,
principalmente, a inimpugnabilidade da sentença, vale dizer, o momento em que
se forma a coisa julgada".5
Tradicionalmente,
o CSMSP sempre entendeu viável a reiteração de suscitação de dúvida, desde que
"afastados os motivos e as irregularidades que justificaram as exigências
albergadas em anterior decisão de dúvida, mantendo-se, ou não, o reconhecimento
de procedência da recusa".6
Nem
mesmo os pedidos "de reconsideração" são cabíveis, justamente porque
no processo de dúvida a decisão terminativa tem caráter preclusivo. Encerrada a
via administrativa, não se pode conceber o revolvimento ou desfazimento das
decisões de primeiro e segundo graus. Não há qualquer previsão na lei de
regência (LRP arts. 198-204).7
Suscitação
de dúvida - obrigação do Oficial
Entretanto,
visto da perspectiva do interessado, nada impede que ele provoque nova
suscitação de dúvida, já que a sua eventual pretensão encontra guarida no art.
12 da LRP:
"Art.
12 Nenhuma exigência fiscal, ou dúvida, obstará a apresentação de um título e o
seu lançamento do Protocolo com o respectivo número de ordem, nos casos em que
da precedência decorra prioridade de direitos para o apresentante".
Feita
a reapresentação do título, que é protocolado e examinado, redundando na
reiteração de exigências, nada impede que o interessado requeira a suscitação
de dúvida. A suscitação é obrigação legal imposta ao registrador que se não
pode forrar à obrigação contida no comando legal, sob pena de responsabilidade
administrativa.8 Por fim, nem mesmo poderia ser prolatada sentença de
arquivamento sumário do pedido, já que tal decisão pode vir a ser anulada por
ferir o disposto no art. 199 da LRP.9
Parece
bem assentes, portanto, tais balizas para os casos ordinários. Entretanto, será
assim para os processos registrais complexos - como, por exemplo, a usucapião e
adjudicação extrajudiciais?
Processo
de usucapião e a coisa julgada formal
Homólogo
ao rito processual ordinário10, sem os efeitos da coisa julgada material, a
usucapião extrajudicial tramita na serventia com a obrigatória ultrapassagem de
todas as etapas intercorrentes do processo extrajudicial, culminando com o
saneamento e decisão final acerca do registro ou da rejeição da pretensão (§ 8º
do art. 216-A da LRP).
Tem-se
entendido que é o deferimento ou rejeição do pedido, devidamente fundamentado,
que pode ser objeto de dúvida - salvo decisões intercorrentes admitidas por
exceção. De fato, poder-se-ia acenar com a figura extravagante de agravo de
decisões intercorrentes no iter processual da dúvida. Depois do advento do
CPC/15, o seu art. 15 prevê que, relativamente às decisões administrativas, as
suas disposições serão aplicadas a elas supletiva e subsidiariamente,
incidindo, portanto, as normas do agravo de instrumento em todo processo
administrativo em curso nas serventias extrajudiciais.11
No
caso concreto examinado por nós (aresto já indicado na nota 1), não se
inaugurou uma nova sazão do processo registral. A parte é a mesma, a prenotação
idem, o Oficial do Registro e os órgãos judiciários são os mesmos; em suma, o
processo registral é o mesmo, e o tema sobre o qual se controverte é o mesmo. A
decisão terminativa do Oficial nada mais fez do que encerrar o processo pela
rejeição do pedido, com fundamento nas razões já explicitadas e apreciadas no
curso do processo em seus vários graus de recursos.
Portanto,
teoricamente, a reiteração do pedido de suscitação de dúvida já não caberia no
curso de um mesmo processo extrajudicial. Caberia, se o caso, o ajuizamento da
ação ordinária de usucapião (§ 9º do art. 216-A da LRP) ou a via de escape
prevista na própria LRP (art. 204).
_________
1
Ap. Civ. 1114836-23.2024.8.26.0100, São Paulo, j. 13/11/2024, Rel. Des.
Francisco Loureiro. Disponível aqui.
2
DIP, Ricardo. RIBEIRO, Benedito Silvério. Algumas Linhas Sobre a Dúvida no
Registro de Imóveis. In Revista de Direito Imobiliário, n. 23, jan./jun. 1989.
3 É
o caso tratado pelo CSMSP quando o interessado trouxera a juízo "outros
elementos de embasamento para sua pretensão, tardiamente obtidos para
impulsionamento anterior da via recursal, quando, noutra dúvida, suscitada a
propósito do registro dos mesmos títulos, lhe foi adversa a R. decisão de
primeiro grau". Ap. Civ. 3.095-0, São Paulo, j. 27/12/1983, DOJ
11/01/1984, Rel. Des. Bruno Affonso de André. Disponível aqui.
4
DIP, Ricardo, op. cit. loc. cit. O exemplo mais impressivo é a hesitação
jurisprudencial acerca da exigibilidade da CNJ do INSS para os atos de
alienação ou oneração de bens imóveis.
5
NERY JR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. CPC Comentado. 17ª ed., São
Paulo: RT, 2019, p. 1.208, n. 17.
6 A
decisão proferida em sede de dúvida não faz coisa julgada (salvo formal - cf.
art. 204 da LRP). A reiteração de dúvida se admite, se superados os óbices que
ensejaram a recusa anterior ou que se altere a jurisprudência acerca da matéria
posta novamente em debate: Ap. Civ. 10.380-0/1, Americana, j. 27/8/1990, Dje
29/10/1990, Rel. Des. Onei Raphael Pinheiro Oricchio, disponível aqui. Há
inúmeros precedentes: Ap. Civ. 1018383-15.2014.8.26.0100, São Paulo, j.
2/12/2014, Dje 2/3/2015, Rel. des. Elliot Akel, disponível aqui. Ap. Civ.
1.559-0, São Caetano do Sul, j. 25/3/1983, DOJ 3/5/1983, Rel. Des. Bruno
Affonso de André. Disponível aqui. No mesmo sentido: Ap. Civ. 3.095-0, São
Paulo, j. 27/12/1983, DOJ 11/1/1984, Rel. Des. Bruno Affonso de André, disponível
aqui; Ap. Civ. 3.497-0, São Caetano do Sul, j. 18/7/1984, DOJ 15/8/1984, Rel.
Des. Marcos Nogueira Garcez, disponível aqui. Ap. Civ. 6.536,
7
Agravo interno 2054280-52.2021.8.26.0000/50000, Ribeirão Preto, j. 8/6/2021,
DJe 16/6/2021, Rel. des. Ricardo Mair Anafe. Disponível aqui. No mesmo se
pretendeu a rescisória de processo de dúvida, pedido julgado incabível.
Disponível aqui. STJ REsp 1.269.544/MG, j. 26/6/2015, Dje 29/5/2015, Rel. Min.
João Otávio de Noronha. Disponível aqui. No mesmo sentido: PASSOS, Josué
Modesto. BENACCHIO, Marcelo. A dúvida no Registro de Imóveis. São Paulo: RT,
2020, p. 103, n. 14.2.
8 O
CSMSP já decidiu que "é obrigação legal do Serventuário suscitar a dúvida,
nos termos do art. 198 dessa Lei, sempre que houver recusa sua para a prática
de atos de registro". Ap. Civ. 11.673-0/6, Agudos, j. 17/9/1990, DJ
31/10/1990, Rel. Des. Onei Raphael Pinheiro Oricchio, disponível aqui. Na
1VRPSP, Processo 100.09.135469-8, São Paulo, j. 30/11/2009, Dje 3/12/2009, Dr.
Gustavo Henrique Bretas Marzagão. Disponível aqui.
9 O
processo de dúvida "não comporta arquivamento puro e simples, sem
julgamento, frente ao disposto no art. 199 da Lei de Registros Públicos".
(...) "Mesmo em se tratando de nova apresentação do título, sendo
suscitada a dúvida, esta somente poderia findar-se por sentença, na forma da
lei, inadmitido o seu arquivamento, puro e simples". Ap. Civ. 6.507-0, São
Carlos, j. 15/12/1986, DOJ 15/12/1986, Rel. Des. Sylvio do Amaral, disponível
aqui.
10
As próprias NSCGJSP preveem no item 416.1: "O requerimento de
reconhecimento extrajudicial da usucapião atenderá, no que couber, aos
requisitos da petição inicial, estabelecidos pelo art. 319 do Código de
Processo Civil - CPC". Vide: Processo: 1008143-25.2018.8.26.0100, j.
6/4/2018, Dje 17/4/2018, Dra. Tânia Mara Ahualli, disponível aqui.
11
PASSOS e BENACCHIO, Op., cit. nota 7, p. 101, n. 13.2.3.
Fonte:
Migalhas