Questionável
a obrigatoriedade da partilha igualitária dos bens do espólio entre os
herdeiros em condomínio: Ainda serão judiciais os inventários que necessitem de
adequado planejamento patrimonial.
Atendendo
aos anseios da sociedade e alinhado com mudanças legislativas e
jurisprudenciais acerca da desjudicialização de procedimentos, visando maior
eficiência e celeridade na resolução de questões que não são necessariamente
conflituosas, o CNJ promoveu recentes mudanças no que tange à realização de
inventários e divórcios extrajudiciais.
Em
julgamento realizado no dia 20/8/24 durante a 3ª sessão extraordinária, o CNJ,
no julgamento do pedido de providências 0001596-43.2023.2.00.0000 formulado
pelo IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família, reconheceu
ser possível a realização de inventário - e divórcio - extrajudicial mesmo nos
casos em que estão envolvidos menores de idade e/ou incapazes.
Em
consequência, foi editada a resolução 571/24 para alterar a resolução do CNJ
que disciplina a lavratura dos atos notariais relacionados ao inventário,
partilha, separação, divórcio e extinção de união estável (35/07), a fim de
passar, entre outras alterações, a constar expressamente que o inventário
poderá ser realizado por escritura pública, ainda que inclua interessado menor
ou incapaz (art. 12-A) e que será possível o divórcio extrajudicial mesmo
havendo filhos comuns do casal menores ou incapazes (art. 34, §2º).
É
muito louvável a iniciativa do CNJ no sentido de afastar a necessidade do
processo judicial para a realização de atos entre indivíduos concordes tão
somente pela existência de menor e/ou incapaz. A desjudicialização1 é tendência
nacional - também internacional - e como bem ponderado pelo ministro Luis
Felipe Salomão, relator do pedido de providências,
Com
essa experiência já consolidada, é possível ampliar esses mecanismos que
envolvem interesses particulares sem conflitos, franqueados à atividade
extrajudicial, no sentido de diminuir o acúmulo gigantesco de processos
que impedem a finalização da prestação jurisdicional. É necessário que existam
mais mecanismos envolvidos na resolução dos conflitos em prol da rapidez com
eficiência e satisfação das pretensões, com menos custos para o Estado, para
que este possa se dedicar com mais afinco à administração da Justiça para as
demandas que efetivamente necessitem da tutela jurisdicional.
De
todo modo, não se pode deixar de analisar criticamente alguns aspectos da
resolução 571/24 do CNJ, especialmente acerca dos requisitos estabelecidos para
a realização do inventário extrajudicial.2
Inicialmente,
sabe-se que o CPC determina a realização judicial de inventário e divórcio nos
casos em que há interesses de menores e/ou incapazes envolvidos. Nesse sentido
são seus arts. 610 e 733.
Assim,
uma discussão acerca da (in)constitucionalidade da resolução 571/24 é
inevitável, eis que o CNJ, ao autorizar a realização desses atos de modo
extrajudicial, parece efetivamente legislar sobre a matéria, modificando - e
não apenas regulamentando - o tratamento previsto pelo legislador para as
hipóteses discutidas.
Sem
a pretensão de esgotar o debate, fato é que o STF, no julgamento da histórica
ADC 12, declarou a constitucionalidade da resolução 7/05 do CNJ que vedou o
nepotismo no âmbito dos órgãos do Poder Judiciário, reconhecendo que o CNJ
dispõe de verdadeira prerrogativa de expedir atos de natureza normativa
primária com vistas a preservar os princípios que estão presentes no caput do
art. 37 da CF/88, sendo de sua competência fazer a disciplinação dos princípios
insculpidos na CF/88 no que tange ao poder administrativo que detém no âmbito
do Poder Judiciário.3
Superada
a questão da (in)constitucionalidade da resolução editada pelo CNJ, no que
tange à regulamentação do inventário extrajudicial envolvendo menores ou
incapazes, faz-se necessário analisar os requisitos lá fixados.
Estabelece
o atual texto do art. 12-A da resolução 35/07 que o inventário poderá ser
realizado por escritura pública, ainda que inclua interessado menor ou incapaz,
desde que o pagamento do seu quinhão hereditário ou de sua meação ocorra em
parte ideal em cada um dos bens inventariados e haja manifestação favorável do
Ministério Público.
Nota-se
que restaram determinados 2 requisitos para que seja possível o inventário
envolvendo menor ou incapaz nos tabelionatos de notas do país: (i) manifestação
favorável do Ministério Público; e (ii) a partilha igualitária dos bens do
espólio entre todos os envolvidos, em condomínio.
Sobre
a participação do parquet, havia pontos controvertidos da resolução referentes
à competência e ao momento de sua manifestação, que acabaram sendo sanados
pelas resoluções 1.919/24 do MP estadual de São Paulo e 301/24 do MP Federal.
Acerca
da competência, sabe-se que por força do disposto no art. 48 do CPC, o foro
competente para o processamento do inventário judicial é o do domicílio do
autor da herança; contudo, tratando-se de inventário extrajudicial, sua escolha
é absolutamente livre, não se aplicando as regras de competência do CPC (art.
1º da resolução 35/07).
Logo
de início surgiram dúvidas sobre a promotoria competente4 para se manifestar no
inventário extrajudicial e até mesmo acerca da logística do tabelião de notas
eleito pelos envolvidos para lavratura do ato, mas no Estado de São Paulo, ao
menos, a questão restou definida, conforme previsto nos arts. 3º e 4º da
resolução 1.919/24: o tabelionato deve encaminhar via e-mail a minuta da
escritura para o Ministério Público estadual, que por sua vez remeterá o
procedimento eletrônico ao promotor de Justiça com atribuição para atuar nos
processos e procedimentos de sucessões da comarca do foro do domicílio do autor
da herança.
Outrossim,
outro ponto controvertido sobre a participação do Ministério Público no
procedimento dizia respeito ao momento em que promotoria interviria e se
manifestaria, vez que estabelece o parágrafo 3º do art. 12-A que "a
eficácia da escritura [...] dependerá de manifestação favorável do Ministério
Público".
Se a
cota do Ministério Público está no plano da eficácia do inventário - termo
utilizado pela resolução e relacionado com os efeitos do ato no mundo jurídico
-, a interpretação literal seria: o parquet deve manifestar-se em momento
posterior à lavratura da escritura. Esta situação seria capaz de gerar inúmeros
transtornos, por óbvio, vez que as partes, antes da manifestação do Ministério
Público, já teriam recolhido todos os emolumentos cartorários e o imposto de
transmissão causa mortis, sem qualquer segurança jurídica.
Não
obstante o teor do citado parágrafo do art. 12-A, o Conselho Nacional do
Ministério Público, disciplinando a atuação do parquet em procedimentos
oriundos de serventias extrajudiciais, editou a resolução 301 em 12/11/24,
determinando em seu art. 3º que o Ministério Público deverá "manifestar-se
favoravelmente à lavratura do ato ou impugná-lo", marcando posição no
sentido de que sua participação deve ocorrer previamente à assinatura da
escritura de inventário e partilha - estando a manifestação do parquet,
portanto, relacionada ao plano de validade do inventário, e não de eficácia do
ato.
No
mesmo sentido é a resolução 1.919/24 do Ministério Público do Estado de São
Paulo, que expressamente determina que o Tabelião de Notas "encaminhará a
respectiva minuta" ao Ministério Público, que, "ao receber a minuta
[...] instaurará procedimento eletrônico" para analisar o documento e
lançar sua manifestação (arts. 3º, 4º e 5º). Os principais aspectos
relacionados ao Ministério Público, portanto, parecem resolvidos.
No
entanto, a questão que causa maior preocupação na resolução do CNJ é a
obrigatoriedade de que todos os herdeiros recebam fração ideal de todos os bens
do espólio, permanecendo em condomínio. Há situações em que o condomínio já é
forçoso, vez que há, por exemplo, um único bem imóvel e vários herdeiros. Essa
não é a situação em análise neste breve estudo, todavia.
O
diligente advogado sempre tenta evitar a formação de condomínio em todos os
bens. Embora em um primeiro momento possa parecer adequado que os herdeiros não
tenham que pensar na divisão cômoda do patrimônio, superado o luto surgem
problemas em razão da existência de vários donos de coisa indivisível.
Não
são raros os casos nos quais um herdeiro/condômino quer vender o imóvel e o
outro não; um herdeiro reside no imóvel comum e não concorda em pagar qualquer
contraprestação aos demais coproprietários; um condômino não aceita o rateio de
despesas de natureza propter rem; dentre várias outras situações.
Eis
a razão pela qual, em existindo mais de um bem imóvel e mais de um herdeiro, é
adequado que as partes deliberem pela realização de uma partilha cômoda,
atribuindo tanto quanto possível a integralidade de cada bem a um único
herdeiro.
Ciente
dos conflitos que advêm da manutenção de condomínio entre dois ou mais
herdeiros, o CPC valida a realização da livre divisão dos bens deixados pelo de
cujus, determinando aos herdeiros que realizem a partilha dos bens dentro da
máxima igualdade possível, com o objetivo de prevenir litígios futuros e
observando "a máxima comodidade dos coerdeiros, do cônjuge ou do
companheiro" (art. 648, I, II e III).
Exemplificando:
em inventário com três herdeiros sem animosidade entre si e três bens imóveis
de valor aproximado, a partilha deve determinar que cada um deles receba a
integralidade de um bem imóvel para o pagamento do seu quinhão hereditário.
Para
os casos de inventário extrajudicial envolvendo menores ou incapazes, o CNJ
entendeu por bem não ser possível a partilha cômoda dos bens, facilitando a
avaliação do Ministério Público quanto à observância dos melhores interesses do
menor ou incapaz.
Assim,
nos termos da resolução 571/24 e na mesma situação hipotética acima mencionada,
havendo herdeiro menor ou incapaz - além de maiores e capazes -, todos os três
herdeiros receberiam em pagamento de seus respectivos quinhões hereditários 1/3
ou 33% de cada um dos três imóveis deixados pelo espólio, mantendo-os
obrigatoriamente condôminos. Como é vedada a prática de atos de disposição de
bens e direitos do menor ou incapaz, salvo nas situações excepcionais previstas
no art. 1.691 do CC, com autorização judicial, os herdeiros maiores acabam,
muitas vezes, amarrados aos menores até sua maioridade.
A
praxe forense mostra que a manutenção de imóveis em condomínio culmina em
litígios que se arrastam por anos no Poder Judiciário. A solução para a
resolução dos problemas envolvendo condôminos não concordes é a propositura de
ação judicial de extinção de condomínio, cuja tramitação, diante da necessidade
de avaliação do(s) imóvel(is), é demorada e muitas vezes custosa.
Soma-se
a isso o fato de que por vezes a alienação forçada do imóvel ocorre em hasta
pública, hipótese na qual poderá ocorrer a venda do bem por valor inferior ao
de mercado.
Significa
dizer que, a pretexto de retirar do Poder Judiciário o monopólio para os
inventários envolvendo menores ou incapazes, o CNJ acaba por criar alternativa
com alto potencial litigioso ao determinar a obrigatoriedade do condomínio e
sobrecarregar ainda mais o Judiciário.
Exatamente
essa foi a preocupação externada pelo juiz de Direito doutor Alberto Gentil de
Almeida Pedroso5 em palestra ministrada no dia 26/11/24 na sede do IASP em
evento que abordou o tema "inventário extrajudicial com menores incapazes:
primeiras impressões".
Diante
da certeza de que a partilha cômoda é o que melhor atende aos interesses dos
herdeiros, o Poder Judiciário continuará a ser procurado para a solução de
inventários com menores e incapazes, para que seja realizado o melhor
planejamento patrimonial possível.
______________
1
Sobre a desjudicialização, indica-se: RIBEIRO, Flávia Pereira.
Desjudicialização da execução civil. 3.ed. Curitiba: Editora Juruá, 2022.
2
Sobre o inventário extrajudicial, embora anterior à Resolução do CNJ: MODANEZE,
Jussara Citroni. Inventário extrajudicial na prática. 1. ed. Rio de Janeiro:
Editora Método, 2025.
3
STF. ADC 12. Plenário. Min. Rel. CARLOS BRITTO. j. 20.8.2008
4
Registra-se que a promotoria competente é a especializada em família e
juventude, e não àquela com atribuição correcional como se poderia cogitar.
Considerando que a participação do parquet no procedimento visa verificar e
assegurar a proteção integral do menor ou incapaz, não pode ser outro órgão
senão aquele especializado na defesa de seus melhores interesses.
5
Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Mestre e Doutor
em Direito. Autor de diversas obras jurídicas. Professor da EPM.
Flávia
Pereira Ribeiro
Pós-doutora
pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora e mestre em Processo Civil pela
PUC/SP. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade
Secovi/SP. Membro do IBDP, da ABEP, do CEAPRO e do IASP. Idealizadora da tese
da "desjudicialização da execução civil" que é referência ao PL
6.204/2019/SN. Sócia do escritório Flávia Ribeiro Sociedade de Advogados.
César
Augusto Costa
Graduado
em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo; Pós-graduado em
Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie;
Pós-graduado em Direito Imobiliário na Universidade SECOVI/SP; Integrante do 2º
grupo de estudos avançados em Processo Civil (GEAP) organizado pela Fundação
Arcadas. Advogado no escritório Flávia Ribeiro Sociedade de Advogados.
Fonte:
Migalhas