Uma nova tese sobre o Imposto de
Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) vem sendo levada ao Judiciário.
Tributaristas argumentam que todas as cobranças feitas pelos estados sem
alíquota progressiva, prevista na emenda constitucional da reforma tributária (EC
132/2023), são indevidas. Juízes de São Paulo e Minas Gerais já
analisaram ações do tipo, e a revista eletrônica Consultor
Jurídico apurou que outras com a mesma tese estão sendo preparadas em
outros estados.
Embora varas de primeira instância do
Judiciário paulista e mineiro tenham rejeitado a tese, ela ainda pode chegar a
outras comarcas e aos outros seis estados que não se adaptaram à regra da
reforma.
O ITCMD, aplicado sobre heranças e
doações, é de competência dos estados e do Distrito Federal. A EC da reforma
tributária, promulgada em dezembro de 2023, determinou que esse imposto deve
ter alíquota progressiva “em razão do valor do quinhão, do legado ou da
doação”.
Isso significa que os estados devem criar
diferentes faixas de cobrança: a alíquota deve aumentar de forma gradativa
conforme o valor ao qual ela será aplicada, com um teto de 8% (estipulado em
uma resolução do Senado). Para isso, é necessária a aprovação de uma lei
estadual em cada um deles.
Um ano e quatro meses após a promulgação
da EC 132/2023, oito estados ainda não aprovaram leis para estabelecer o ITCMD
progressivo: São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul,
Paraná, Roraima, Bahia e Piauí. Nestes dois últimos, a alíquota atual é
progressiva para heranças, mas fixa para doações. Nos demais, é fixa para
qualquer situação.
Com isso, tributaristas começam a levantar
a tese de que tais estados não podem cobrar o ITCMD com alíquota fixa, já que a
reforma tributária passou a exigir alíquota progressiva. Em outras palavras,
como a alíquota atual desses oito estados não está de acordo com a
Constituição, todas as cobranças feitas por eles desde dezembro de 2023 seriam
indevidas.
Constituição x leis estaduais
Leonardo Aguirra de Andrade, sócio do
Andrade Maia Advogados, avalia que a EC 132/2023 “não é suficiente para dar
fundamento para tal cobrança” nos oito estados que não se adequaram a ela: “É
necessária uma lei estadual válida e eficaz para tanto.” A banca avalia mover
ações com essa tese a pedido de alguns clientes.
Segundo ele, se a Constituição determina
que o ITCMD seja progressivo e a lei estadual não estabelece uma alíquota
progressiva, há “uma falta de base legal para cobrança do tributo”, o que deve
ser enfrentado pelo Judiciário.
“Progressividade é coisa séria. Não é
apenas um método de calculo de um tributo, mas reflexo de uma escolha de como a
sociedade quer superar suas desigualdades”, diz o tributarista Paulo
Roberto Andrade, do escritório Madrona Advogados, responsável pelas ações
ajuizadas em SP e MG. “O contribuinte não é obrigado a pagar, por alíquotas
proporcionais, um imposto que a Constituição manda ser pago por alíquotas
progressivas.”
Na visão de Everton Lazaro da
Silva, advogado do contencioso tributário do Rayes & Fagundes, a
EC 132/2023 obrigou os estados a “internalizarem via legislação própria a
progressividade do ITCMD, sob risco de se verem impossibilitados de tal
cobrança”.
Para ele, “é factível” a cobrança do
tributo até 2024, já que a emenda constitucional foi promulgada nos últimos
dias de 2023. Mas em 2025, “a inércia dos estados que não alteraram suas
legislações internas não pode ser acobertada pelo manto de uma suposta
‘convalidação’, restando, portanto, inegavelmente indevida a cobrança do ITCMD
em alíquota única”.
“É necessário que os estados ajustem suas
legislações o quanto antes, sob pena de os contribuintes questionarem no
Judiciário o pagamento do ITCMD sob uma alíquota fixa”, afirma Juliana
Lemos, sócia da área tributária do Trench Rossi Watanabe.
Ela destaca que a EC 132/2023 “não confere
uma faculdade ao estado” e acredita que “há elementos para defender a
impossibilidade de cobrança legítima do ITCMD à alíquota fixa por ausência de
fundamento de validade da norma instituidora respectiva e clara
incompatibilidade com a Constituição”.
Chegando às cortes
As primeiras tentativas de emplacar a tese
foram malsucedidas. Em setembro do último ano, a 11ª Vara de Fazenda Pública do
Foro Central da capital paulista negou um pedido para que os autores —
representados pelo Madrona Advogados — não precisassem pagar o ITCMD na
alíquota fixa.
Na sentença, o juiz Henrique Geraldo
Campos Júnior considerou que “o processo legislativo não extrapolou tempo
razoável da elaboração da lei” estadual necessária para aplicação da alíquota
progressiva. Ele ressaltou que um projeto de lei com tal previsão foi
apresentado no Legislativo paulista um mês após a promulgação da EC 132/2023,
embora ainda não tenha sido aprovado.
Já no último mês de janeiro, o escritório
sofreu outra derrota, desta vez na 2ª Vara de Feitos Tributários de Belo
Horizonte. O juiz Marcelo da Cruz Trigueiro alegou que a alíquota progressiva
seria “uma faculdade”, ou seja, opcional.
A banca já apresentou embargos de
declaração contra a sentença, ainda não analisados. Paulo Roberto Andrade
argumentou, na petição, que a sentença desconsiderou a obrigatoriedade prevista
na emenda constitucional da reforma tributária.
Em fevereiro, a 1ª Vara de Feitos
Tributários de Belo Horizonte negou uma liminar e manteve a cobrança do imposto
a um cliente da mesma banca. Para o juiz Mauro Pena Rocha, “enquanto não houver
legislação estadual regulamentando a progressividade do ITCMD, a alíquota
vigente permanece válida e exigível”.
Apesar das decisões desfavoráveis até o
momento, Paulo Andrade acredita que, “quanto mais perdurar a inércia
legislativa dos estados, maiores as chances do Judiciário se sensibilizar com
esse argumento”.
De acordo com ele, em 2024 “ainda se podia
invocar o princípio da razoabilidade para justificar a inércia dos legislativos
estaduais”. Mas a partir de 2025, “essa razoabilidade não existe mais”.
O advogado ainda explica que estipular uma
alíquota progressiva não demanda alterações tão grandes na legislação estadual.
Por exemplo, São Paulo tem uma alíquota fixa de 4%. Se o estado criasse uma
única nova faixa de 3,5%, já haveria progressividade, pois qualquer variação já
é suficiente para cumprir a determinação da reforma.
Resistências
Nem todos os tributaristas são adeptos da
tese contrária à cobrança do imposto com alíquota fixa nos oito estados em
questão. “Apesar de a atuação do constituinte derivado apresentar eficácia
imediata, a determinação não torna a cobrança fixa do ITCMD inconstitucional”,
diz Leonardo Branco, sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia
Tributária (DDTax).
Ele lembra que, desde 1988, a Constituição
prevê a progressividade do Imposto de Renda (IR). Mas ela só foi instituída
para a tributação do ganho de capital em 2016, e nem por isso a
cobrança da alíquota fixa nesses casos foi considerada inconstitucional durante
o período de 28 anos entre as normas.
Para Branco, a inovação trazida pela
reforma tributária “é quanto ao critério”. A Constituição já previa que,
“sempre que possível”, quaisquer impostos devem ser “graduados segundo a
capacidade econômica do contribuinte”. Ou seja, a EC 132/2023 estipulou
uma “progressividade específica”, com base no “valor do quinhão, do legado ou
da doação” — e não em “sinais presuntivos de riqueza do herdeiro, legatário ou
donatário”.
Assim, a regra “não significa veto
automático à alíquota proporcional fixa”. O advogado recorda que a própria
Constituição prevê a”legalidade como forma legítima por excelência do
exercício da competência outorgada ao Estado”.
Já Lucas Babo, advogado associado da
área tributária do Cescon Barrieu, afirma que a intenção da reforma era
“instituir a progressividade do tributo de forma a aumentá-lo, e não
extingui-lo”.
Por isso, ele se opõe a “afastar a
exigência do tributo em um período de clara transição, sobretudo considerando
que as normas legais permanecem em vigor e muitos estados já iniciaram o
processo legislativo para alteração de suas leis”. Na sua visão, a
tese “não deve prosperar quando submetida à apreciação dos tribunais”.
Além disso, Babo entende que alguns
estados, como SP e MG, já aplicam a progressividade na prática, pois isentam
doações e sucessões de valores menores — o ITCMD só é cobrado quando uma faixa
inicial é ultrapassada.
Clique aqui para ler a sentença
de SP
Processo 1036518-70.2024.8.26.0053
Clique aqui para ler a sentença
de MG
Processo 5109884-27.2024.8.13.0024
Clique aqui para ler a liminar
de MG
Processo 1000139-49.2025.8.13.0024