O Código Tributário Nacional (CTN), em seu
artigo 185, estabelece uma presunção de fraude que se caracteriza pela
objetividade de seus critérios. Diferentemente de outras modalidades de
fraude que exigem a demonstração do elemento subjetivo (dolo ou má-fé), a
fraude à execução fiscal baseia-se em critérios puramente objetivos.
O artigo 185 do CTN dispõe que “presume-se
fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por
sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário
regularmente inscrito como dívida ativa“.
O parágrafo único do artigo 185 do CTN
estabelece uma importante exceção à presunção de fraude: “O disposto neste
artigo não se aplica na hipótese de terem sido reservados, pelo devedor, bens
ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida inscrita“. O escopo
desta exceção é evitar que a presunção de fraude prejudique alienações
legítimas quando o patrimônio do devedor é suficiente para garantir o pagamento
da dívida tributária.
Ademais, o STJ, no julgamento do Tema
Repetitivo nº 290, consolidou entendimento segundo o qual “a terceiro de
boa-fé que adquire imóvel de devedor em débito para com a Fazenda Pública,
mesmo sem conhecimento da existência da dívida, pode ser oposta a presunção
absoluta de fraude à execução fiscal de que trata o art. 185 do CTN“.
No entanto, uma das questões mais
controversas relacionadas ao tema é a aplicação da presunção de fraude às
alienações sucessivas. O STJ tem entendido que a presunção se estende
automaticamente a todas as alienações posteriores, criando uma verdadeira “cadeia
de contaminação” (vide: REsp 1.820.873/RS, REsp 2.139.946/SP, REsp
1.833.644/PB, entre outros no mesmo sentido).
O STJ tem justificado este entendimento
com base em diversos fundamentos, entre eles: (i) o CTN, como lei especial
tributária, possui primazia sobre o Código de Processo Civil em matéria de
fraude à execução fiscal e; (ii) teoria da contaminação: o vício existente na
origem da cadeia sucessória contamina todas as alienações posteriores.
O tribunal superior, porém, não vem
analisando uma importante questão sobre a fraude à execução fiscal, qual seja:
existência de um prazo legal para o reconhecimento da ineficácia da alienação
e, por conseguinte, a desconstituição dos atos de registro e transferência dos
imóveis.
Usucapião
Entendemos que a resposta da questão está
no instituto da usucapião, previsto na Constituição (vide: artigo 183 e artigo
191) e regulado no Código Civil. Inicialmente, deve-se destacar que o artigo
185 do CTN não trata do tema e, portanto, não existe uma norma tributária
especial tratando da matéria, motivo pelo qual podemos aplicar as regras de
direito privado, nos termos do artigo 4º, §2º, da Lei nº 6.830/1980.
Como sabido, a usucapião constitui forma
originária de aquisição da propriedade fundamentada na posse prolongada,
acompanhada de determinados requisitos legais. O Código Civil brasileiro
estabelece diferentes modalidades de usucapião, com prazos variados conforme a
presença ou ausência de justo título e boa-fé.
Em outras palavras, trata-se de um marco
de estabilização definitiva das relações jurídicas patrimoniais. Esta
característica fundamental do instituto determina que, uma vez consumada a
usucapião, torna-se irrelevante discutir vícios que tenham maculado alienações
anteriores, incluindo-se aqui a fraude à execução fiscal.
É importante recordar que a Lei de
Registros Públicos não admite o reconhecimento da nulidade de ato registral
após a consumação da usucapião em favor de terceiro adquirente de boa-fé (“art.
214, §5º: A nulidade não será decretada se atingir terceiro de boa-fé que já
tiver preenchido as condições de usucapião do imóvel”).
O Superior Tribunal de Justiça tem se
mostrado sensível à aplicação da regra jurídica em questão:
DIREITO CIVIL. AGRAVO INTERNO. AÇÃO
DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE ATO JURÍDICO. PROCURAÇÃO. INCLUSÃO FRAUDULENTA DE
PODERES PARA CESSÃO ONEROSA DE BEM IMÓVEL. NULIDADE DO ATO. OCORRÊNCIA.
ARGUIÇÃO, COMO MATÉRIA DE DEFESA, DO IMPLEMENTO DOS REQUISITOS DA USUCAPIÃO
ORDINÁRIA. POSSIBILIDADE. NULIDADE QUE NÃO ATINGE TERCEIRO DE BOA-FÉ. USUCAPIÃO
COMO FORMA DE AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA DA PROPRIEDADE.
NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DOS REQUISITOS DOS ARTS. 520, 551 e 552, DO CC/2016.
AGRAVO NÃO PROVIDO.
1. As
razões do agravo interno não enfrentam adequadamente o fundamento da decisão
agravada.
2. O
STJ possui o entendimento de que a usucapião “(…) é o instrumento jurídico
próprio para a erradicação do vício de inexistência do negócio jurídico” (REsp
n. 1.106.809/RS, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, Relator para acórdão
Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 3/3/2015, DJe de 27/4/2015).
3. Caso
concreto em que houve a cessão onerosa de bem imóvel por meio de procuração
adulterada – com a inclusão fraudulenta de poderes para a realização do negócio
-, gerando prejuízo aos herdeiros.
4. O
§ 5º do art. 214 da LRP expressamente dispõe que “(…) a nulidade não será
decretada se atingir terceiro de boa-fé”.
5. Usucapião
que, como forma de aquisição originária de propriedade, não depende da
procuração fraudulenta que amparou a cessão onerosa do bem, devendo ser
analisados, no caso concreto, os requisitos dos arts. 520, 551 e 552, todos do
CC/16 (vigente à época dos fatos), porquanto a usucapião foi invocada
tempestivamente como matéria de defesa.
6. Agravo
interno a que se nega provimento.
(AgInt no REsp n. 1.690.979/SC, relatora
Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 29/5/2023, DJe de
1/6/2023.)
Se mesmo a nulidade, sanção mais grave
imposta pelo sistema em defesa da ordem pública, não pode prevalecer contra a
usucapião, com maior razão se deve afastar a ineficácia decorrente da fraude à
execução se o terceiro de boa-fé já preenche os requisitos para usucapir.
A compreensão da usucapião como limite
temporal para o reconhecimento da fraude à execução fiscal produz efeitos
práticos de grande relevância para a segurança jurídica das relações
patrimoniais. Em primeiro lugar, estabelece marco temporal definitivo para a
estabilização das relações jurídicas, impedindo questionamentos indefinidos
sobre a validade de alienações pretéritas.
Em segundo lugar, privilegia a proteção
daqueles que, confiando na aparência de regularidade das transações, investem
recursos e estabelecem vínculos duradouros com o imóvel. Esta proteção
harmoniza-se com os princípios constitucionais da segurança jurídica e da
função social da propriedade.
Por fim, impede que o instituto da fraude
à execução fiscal seja utilizado de forma abusiva, criando insegurança jurídica
desproporcional aos objetivos de proteção do crédito tributário. A existência
de marco temporal definitivo para questionamentos contribui para o equilíbrio
entre os interesses fazendários e a proteção dos terceiros de boa-fé.
A ausência de marco temporal definitivo
para tais alegações criaria situação de insegurança jurídica incompatível com
os princípios fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro.
Neste contexto, a fluência do prazo
usucapional deve ser compreendida como elemento de estabilização definitiva das
relações jurídicas, tornando inadmissível a posterior alegação de fraude à
execução.
Logo, a análise sistemática dos institutos
da fraude à execução fiscal e da usucapião revela a existência de lógica
temporal coordenada, na qual a usucapião funciona como limite natural para o
reconhecimento da fraude à execução, o que se aplica integralmente à execução
fiscal, pois o CTN não tratou da questão quando regulou a fraude à execução
fiscal.
Fonte: Conjur