José
Renato Nalini, Marco Antônio Ribeiro Tura e Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro
A
teoria da perda de uma chance, desenvolvida inicialmente na doutrina francesa e
consolidada no direito brasileiro, busca tutelar situações em que o dano não
decorre da perda de um bem ou direito certo, mas da eliminação de uma
oportunidade real e séria de alcançar determinado benefício. Conforme leciona
Sérgio Cavalieri Filho, "a chance perdida é um bem jurídico autônomo, cuja
frustração gera dano indenizável quando demonstrada a probabilidade séria de
sucesso ou de obtenção de vantagem" (CAVALIERI FILHO, 2020, p. 103).
No
contexto dos concursos públicos, especialmente aqueles destinados à outorga de
delegações de serviços notariais e registrais, essa teoria assume contornos
específicos. A escolha de uma serventia extrajudicial por candidato
classificado implica manifestação inequívoca de vontade em assumir a delegação.
Entretanto, não é incomum que alguns candidatos, após escolherem determinado
cartório, deixem de entrar em exercício, sem justificativa plausível, gerando
grave descompasso no regular provimento das serventias.
Antes
de adentrar na análise sobre a perda de uma chance e seus reflexos na escolha e
não assunção de serventia extrajudicial, cumpre destacar o regime jurídico que
envolve a outorga, a investidura e a entrada em exercício nas atividades
públicas comparadas.
Na
classe notarial e registral, especificamente para os candidatos que já são
titulares de serventia, a investidura opera-se de forma automática com a
escolha da serventia, produzindo efeitos imediatos e implicando, inclusive, a
renúncia à delegação anteriormente exercida. A manifestação de vontade do
candidato, portanto, é suficiente para consumar o vínculo jurídico com a nova
delegação.
Já
para candidatos que ocupam cargos em outras carreiras jurídicas, como a
magistratura e o Ministério Público, a investidura pode ser postergada, não
havendo perda automática do cargo apenas pela escolha da unidade. Contudo, a
não investidura revela conduta incompatível com a deontologia aplicável aos
cargos e pode configurar falta disciplinar grave. Mais do que isso, comprovado
o dolo, pode configurar até mesmo ato de improbidade administrativa.
A
lei orgânica da magistratura nacional prevê em seu art. 56 até mesmo a
aposentadoria compulsória nos casos em que o magistrado age de forma a causar
desonra aos seus pares e à sociedade:
Art.
56 - O Conselho Nacional da Magistratura poderá determinar a aposentadoria, com
vencimentos proporcionais ao tempo de serviço, do magistrado:
(...)
II -
de procedimento incompatível com a dignidade, a honra e o decoro de suas
funções;
Essa
distinção evidencia (i) o caráter personalíssimo e de assunção instantânea da
delegação notarial e registral, reforçando a gravidade e a responsabilidade que
recaem sobre o delegatário de serviço notarial no ato de escolha; (ii) a
responsabilidade disciplinar do titular de cargo público, especialmente juízes
e promotores, na escolha, com posterior desistência de investidura e entrada em
exercício de forma dolosa.
Esse
comportamento produz uma série de prejuízos concretos e difusos. Primeiramente,
há o retardamento da outorga efetiva da delegação, pois, uma vez frustrada a
investidura, o procedimento administrativo precisa ser reiniciado, o que pode
levar até dois anos para que o cartório seja novamente ofertado e provido.
Durante esse período, a localidade correspondente permanece sem delegatário
titular, o que acarreta prejuízos à coletividade usuária dos serviços, que se
vê privada da plena eficiência e estabilidade que a atuação de um titular
assegura.
Além
disso, os funcionários e prepostos da serventia são diretamente afetados, uma
vez que ficam submetidos a administrações interinas ou precárias, sem as
garantias de continuidade e investimentos estruturais que um titular costuma
promover. Soma-se a isso o dano institucional causado à imagem da classe
notarial e registral, que sofre desgaste perante a sociedade e os órgãos de
controle, em razão da aparente instabilidade ou falta de comprometimento de
parte de seus integrantes.
Do
ponto de vista jurídico, a conduta do candidato que escolhe e não assume a
delegação configura violação dos princípios da boa-fé objetiva, da moralidade
administrativa e da eficiência (art. 37, caput, da Constituição Federal). A
boa-fé, como lembra Judith Martins-Costa, "exige uma conduta proba, leal e
coerente com a confiança legítima depositada pela outra parte e pela
coletividade" (MARTINS-COSTA, 2012, p. 87). Ao proceder de modo
contraditório - escolhendo uma serventia e, em seguida, deixando de ingressar
no exercício ou, pior, ingressando e abandonando a função poucos meses depois
-, o candidato frustra expectativas legítimas não apenas da Administração
Pública, mas também dos demais candidatos e da população local.
Sob
a ótica da responsabilidade civil, é possível vislumbrar a perda de uma chance
coletiva e institucional, conceito que, embora menos explorado pela doutrina,
encontra fundamento na função social da responsabilidade civil. Rui Stoco
observa que "a responsabilidade civil moderna não se limita ao
ressarcimento de danos individuais, mas estende-se à proteção de interesses
metaindividuais, quando a conduta lesiva afeta bens jurídicos de relevância
social" (STOCO, 2021, p. 75).
Nesse
sentido, a conduta omissiva do candidato que deixa vago o cartório escolhido
priva não apenas outro concorrente da oportunidade de assumir a delegação em
tempo razoável, mas também a sociedade da prestação adequada de um serviço
público essencial, de natureza continuada e personalíssima. Trata-se, portanto,
de uma perda de chance não apenas subjetiva (do candidato seguinte), mas também
difusa e institucional, afetando o próprio funcionamento do sistema notarial e
registral.
A
responsabilização sem culpa e o abuso de direito
Cumpre
ressaltar que a responsabilização pela perda de uma chance pode ocorrer
independentemente da demonstração de culpa, quando o comportamento do agente
caracteriza abuso de direito, nos termos do art. 187 do CC, segundo o qual
"também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo,
excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social,
pela boa-fé ou pelos bons costumes".
Assim,
ainda que o candidato alegue exercer legitimamente o direito de escolha e
desistência, sua conduta se torna abusiva quando viola os deveres anexos da
boa-fé e frustra a confiança legítima da Administração e da coletividade. Como
ensina Judith Martins-Costa, o abuso de direito "não se confunde com a
culpa, pois prescinde da intenção de causar dano, bastando a objetivação da
conduta contrária à função social e à confiança" (MARTINS-COSTA, 2012, p.
311).
As
circunstâncias fáticas que envolvem o funcionamento de uma serventia
extrajudicial não podem ser consideradas absolutamente imprevisíveis ou
excepcionais a ponto de justificar a não assunção do exercício após a escolha
da delegação. É inerente às atividades notarial e registral a possibilidade de
variações no quadro de pessoal e no volume de serviços, situações que devem ser
ponderadas previamente pelo candidato no momento da opção pela serventia.
Exemplificativamente,
é possível que, durante as visitas, funcionários tenham afirmado não pretender
deixar o cartório, mas posteriormente aceitem propostas de trabalho em outras
serventias ou, ainda, que possuam carteiras próprias de clientes e deixem o
trabalho levando consigo parte significativa da receita. Também se insere nesse
contexto a eventual propositura de ações trabalhistas por empregados em face de
direitos não honrados por antigos responsáveis pela serventia, circunstância
igualmente previsível e passível de avaliação prévia.
Do
mesmo modo, não é incomum que ocorram alterações conjunturais, como a redução
do envio de títulos a protesto em decorrência de fatores políticos ou
econômicos locais. Nenhuma dessas hipóteses, contudo, se reveste de álea apta a
configurar motivo justo para a não entrada em exercício, por se tratarem de
riscos ordinários e previsíveis da gestão de uma serventia.
De
modo semelhante, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho destacam que
"no abuso de direito, a ilicitude decorre da desconformidade da conduta
com os parâmetros da boa-fé e da função social, ainda que o agente não atue
culposamente" (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2021, p. 187).
Nesse
contexto, a súmula 37 do STJ, embora dirigida à cumulação de danos morais e
materiais, é ilustrativa por reconhecer a autonomia das espécies de dano
indenizável, permitindo, por analogia, o reconhecimento da perda da chance como
dano independente de culpa.
Exemplo
prático e precedente administrativo
O
próprio TJ/SP, no 11º Concurso Público de Provas e Títulos para Outorga de
Delegações de Notas e de Registro, por meio de Ata de Sessão Solene de Escolha,
Outorga e Investidura de 31 de janeiro de 2020, registrou de forma expressa:
(...)"para
o caso de prejuízos a terceiros - associados à má-fé, deslealdade, prática de
ilícito, desistência e renúncia imotivada e abusiva e ao proposital e
preconcebido não início do exercício da atividade notarial e de registro dentro
do prazo de 30 dias da investidura -, não se pode descartar, em princípio e em
tese, eventual reparação civil indenizatória a ser buscada, mediante processo
contencioso, pelo suposto ofendido" (TJ/SP, 2020, p. 4) (negrito nosso)
Tal
registro demonstra que a própria Administração reconhece a possibilidade de
responsabilização civil do candidato que age com abuso de direito, frustrando a
expectativa legítima de provimento da serventia e causando prejuízo
institucional ao serviço público notarial e registral. Trata-se, portanto, de
manifestação expressa da autoridade delegante em linha com os fundamentos
doutrinários da perda de uma chance e do abuso de direito.
Embora
se refira a uma ação de eventual ofendido, dando a entender como limitada à
esfera individual, certo é que, em razão da dupla dimensão dos direitos
fundamentais e do reconhecimento da coletividade como sujeito de direitos, o
"ofendido" mencionado pelo E. Tribunal pode bem estar em juízo por
meio da presentação do Ministério Público ou por substituição processual
promovida por associação.
Conclusão
A
aplicação da teoria da perda de uma chance à escolha e desistência
injustificada de serventia extrajudicial revela-se compatível com os princípios
da boa-fé, moralidade e eficiência administrativa. A conduta do candidato que
escolhe, não assume a delegação ou, assumindo, a abandona, produz danos que
transcendem o plano individual, atingindo a coletividade usuária, os
funcionários locais e a imagem institucional da classe notarial e registral.
Nessa
perspectiva, tanto o Tribunal de Justiça quanto as entidades de classe e até
entidades e órgãos com legitimação para a promoção da defesa da cidadania estão
legitimados a buscar a responsabilização civil e disciplinar dos agentes
causadores desse dano, em nome da preservação da confiança pública e da
integridade do sistema de delegações. O reconhecimento jurídico desse tipo de
conduta como ilícita com base na teoria do abuso de direito não apenas protege
interesses individuais, mas também fortalece a credibilidade e a eficiência das
serventias extrajudiciais como expressão do serviço público delegado.
Finalmente,
e tendo em vista que a eventual responsabilização por improbidade
administrativa deve ser colocada como "última ratio" nesse caso,
revela-se absolutamente pertinente refletir sobre a possibilidade de o CNJ
editar norma regulamentando a matéria, de modo a prevenir condutas que
comprometam a efetividade do sistema de delegações. Uma alternativa legítima
seria a previsão de sanção administrativa ao candidato consistente na vedação
temporária de inscrição em novos concursos públicos de serventias extrajudiciais
pelo prazo de dois anos contados da data da escolha (e não investidura).
Tal
medida, alinhada ao dever de boa-fé e à função pública dos serviços notariais e
de registro, visa desestimular comportamentos indecisos ou estratégicos (i.e.
em conluio com interinos) que frustram a confiança pública e geram prejuízos
coletivos e institucionais. Ao mesmo tempo, a norma reforçaria a seriedade do
certame e a responsabilidade inerente ao ato de escolha, contribuindo para a
estabilidade, previsibilidade e eficiência do sistema de escolha dos delegados
de serventias extrajudiciais.
Enquanto
o CNJ não edita normativa específica, admite-se que o Ministério Público, no
âmbito de acordos de não persecução civil previstos na lei de improbidade
administrativa, avalie a possibilidade de estipular compromissos destinados a
prevenir novas frustrações ao provimento regular das serventias extrajudiciais,
como por exemplo a obrigação de não se inscrever em novos certames por
determinado período.
Referências
bibliográficas
BITTAR,
Carlos Alberto. Responsabilidade civil nas relações de consumo e nas atividades
de risco. São Paulo: Saraiva, 2009.
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DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL.
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CAVALIERI
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GAGLIANO,
Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil -
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2012.
STOCO,
Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. 8. ed. São Paulo: Revista dos
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SUPERIOR
TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Súmula 37. "São cumuláveis as indenizações por dano
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TRIBUNAL
DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Ata da Sessão Solene de Escolha, Outorga e
Investidura relativa às delegações vagas integrantes do 11º Concurso Público de
Provas e Títulos para Outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de
São Paulo. São Paulo, 31 jan. 2020. DICOGE 1.1.
Fonte: Migalhas