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20/04/2016 - Artigo: O caráter indiciário da Ata Notarial para reconhecimento da Usucapião Extrajudicial - Franklin Maia

RESUMO: O objetivo do presente artigo, além de provocar o debate em razão do tema apresentado, busca compreender a real função ou condicionamento do uso da ata notarial como meio probatório da posse, demonstração do caráter indicioso que se baseia em fatos, circunstância ou sinal capaz de conduzir, por dedução ou suposição, à descoberta da verdade.
 
INTRODUÇÃO 
O Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), com sabemos, introduz na ordem jurídica brasileira, de forma opcional ao jurisdicionado, o instituto da usucapião extrajudicial, que se processará perante o registrador imobiliário. Tal procedimento alterou a Lei nº 6.015/73, carregando consigo grande inovação também para os notários, com a previsão da Ata Notarial como pré-requisito à obtenção da Usucapião Extrajudicial, favorecendo o exercício da atividade notarial.
Lei nº. 6.015/73 - Art. 216-A. [...]
I - ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias;   (Incluído pela Lei nº 13.105, de 2015)  
Assim, na hipótese da usucapião, a ata notarial será instrumento capaz de atestar a posse do requerente e de toda a cadeia possessória que configure o direito á aquisição da propriedade imobiliária pela usucapião[2].
Verifica-se uma tendência de maior utilização da ata notarial pela sociedade, não só para fins específicos da usucapião, é o que prevê o art. 384 do NCPC.[3]
Segundo o explicitado no texto do Novo Código de Processo Civil, em seu art. 384, a existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião. Poderão constar da ata dados representados por imagem ou som gravados e arquivos eletrônicos.
Não há uma definição em seu conceito, porém a doutrina nos permite estabelecer ata notarial como o documento lavrado pelo tabelião em seu livro de notas, a pedido de interessado, e que tem por objetivo a prova de um fato e de seu modo de existir.
Conceitua-se: “Ata notarial é o instrumento público pelo qual o tabelião, ou preposto autorizado, a pedido de pessoa interessada, constata fielmente os fatos, as coisas, pessoas ou situações para comprovar o seu existir, ou o seu estado (FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger; RODRIGUES, Felipe Leonardo. p. 112. 2010).”
O objeto da ata notarial é, portanto, um fato jurídico captado pelo notário, através de seus sentidos, e transcrito no documento apropriado; é mera narração de fato verificado, não podendo haver por parte do notário qualquer alteração, interpretação ou adaptação do fato, ou juízo de valor.
Conforme determina o inciso I, do art. 216-A, através da ata notarial o tabelião atestará o tempo de posse do requerente e seus antecessores, conforme o caso, e suas circunstâncias. Como podemos perceber, a ata notarial é a narração objetiva de uma ocorrência ou fato, presenciado ou constatado pelo tabelião. Mas, aí é que tá o questionamento, na medida em que o tempo é um acidente que não pode mais do que ser captado sensivelmente em sua presencialidade.
Este questionamento tem sido pouco debatido no meio notarial, pois ainda discute-se ser apropriada a utilização de ata notarial em declarações, que é uma manifestação de vontade do interessado. O fato é que optou o legislador pelo instituto da ata notarial, deixando de contemplar a lavratura de uma escritura declaratória, que a meu entender seria mais apropriada.
Superada esta questão, a recente normativa definitivamente abriu espaço para o juízo discricionário do Oficial Registrador, atribuindo-lhe certa margem de liberdade diante de um caso concreto, algo ainda pouco comum na seara do Direito Formal.
Levando em consideração o juízo discricionário do registrado imobiliário, busca-se compreender a real função ou condicionamento do uso da ata notarial como meio probatório da posse, demonstração do caráter indicioso que se baseia em fatos, circunstância ou sinal capaz de conduzir, por dedução ou suposição, à descoberta da verdade.
 
ATESTAÇÃO DO TEMPO DE POSSE
Em recente entrevista concedida à Academia Notarial Brasileira (ANB), excelentíssimo Desembargador Ricardo Dip[4], do Tribunal de Justiça de São Paulo, acerca da usucapião extrajudicial, refletiu com bastante pertinência e sabedoria a “atestação do tempo de posse” pelo notário. Tal reflexão, a meu entender, é de profunda sabedoria, motivo maior para elaboração do presente artigo, razão pela qual faço reproduzir para posterior reflexão: “(ANB): Como o Sr. vê o tema da “atestação do tempo de posse” pelo notário? RD: Ainda que se dê ao termo “atestação” um sentido menos próprio, alargado, o que se exige para bem entender os contornos desta “atestação do tempo de posse” é distinguir, de um lado, a fé pública notarial, e, de outro, a atividade do notário enquanto jurista privado.
A fé pública notarial é tributária exclusivamente do quanto captado pelos órgãos dos sentidos externos, mais exatamente pela vista e a audição, e percepcionado pelos órgãos dos sentidos internos, especialmente a memória e o senso comum. Ou seja, a fé pública do notário é uma potestas que opera no âmbito do conhecimento sensível. Nec plus ultra. O que refoge deste domínio não recebe o selo da fé pública, por mais possa produzir, na esfera probatória, uma eficácia indiciária. O tempo é um acidente que não pode mais do que ser captado sensivelmente em sua presencialidade.
O passado já não há, o futuro ainda não há. Aquele, o passado, pode ser apreendido intelectualmente, e o futuro pode ser conjecturado pelo entendimento e adivinhado até pela imaginação, mas um e outro, futuro e passado, não podem ser captados pelos órgãos dos sentidos externos. Por isso, não são suscetíveis de atrair a fé pública. (ANB):  Significa que não tem valor probatório essa atestação notarial do tempo de posse? RD: Não é bem isto. Ela tem valor indiciário, como é próprio de todas as provas que se produzem, tal o caso, fora de um processo e à margem do contraditório.
Tem valor privado, particular, mas não de documento público. Quer dizer, essa “atestação”, seja pela audiência de testemunhas, seja pela vista de documentos (de posse-encargo, p.ex.), valerá como um indício a considerar para a confirmação processual posterior. É só no processo e depois de instaurada a via defensiva e contraditória que poderá pôr-se “a prova à prova”. É com a potencialidade de reproduzir essa prova da “atestação” que ela adquire sua valia, de modo que não pode ser uma potencialidade frustrânea.” (grifo nosso).
A ata notarial valerá como indício a considerar para confirmação posterior, é um excelente instrumento como meio de prova, porém põe em debate a segurança inerente da fé pública notarial.
 
2.1. Fé Pública Notarial
A fé pública notarial é uma faculdade do Estado outorgada pela lei. A fé do notariado é pública porque provem do Estado e porque tem consequências que repercutem na sociedade.
O serviço notarial é uma delegação de fé pública do Estado a um particular, o notário, para que ele, intervindo nos atos e negócios privados, revista-os da qualificação técnica e da fé pública estatal.[5]
Para Vicente de Abreu Amadei, “o tabelião é aquele que existe na ordem social exatamente para dar fé pública à realidade da vida jurídica privada”.[6] O notário é, portanto, por excelência, o profissional de fé pública, ou seja, sua missão específica é testemunhar determinada realidade da vida jurídica, tendo o dever lhes dar forma escrita adequada e autenticá-las, infundindo a fé pública, que porta desde sua investidura na delegação do serviço público, correspondente, nos documentos que redige e nos quais lança o seu sinal.
Por sua própria natureza, a fé pública é uma instituição jurídico-pública, tendo, necessariamente, um sinal público autorizado pelo Estado, de maneira que o qualificativo de público compreende a fé, significando que o notário é uma autoridade da sociedade nesse setor vindo a garantir a certeza e autenticidade naquilo que exara. A fé pública do notário recai apenas nos elementos de testemunho do tabelião (o que o notário colher pelos sentidos e, portanto, pode testificar qualificadamente, ou seja, com fé pública) constantes na escritura pública, e não em todo conteúdo do instrumento público. Mais que qualquer outro profissional, a fé pública prima ao notário do seu princípio, seu meio e seu fim. Sem a fé pública, disse Carlos Nicolás Gattari, o notário “não tem razão de existir”, a “função notarial careceria de sentido”. (Gattai, 1988, p.305)
A fé pública é atribuição que o Estado outorga ao notário, que através de sua fé pública qualifica o documento notarial em consequência dos poderes a ele conferidos, projetando um prestígio sobre o instrumento, o qual determina a confiança do público, que o direito protege.
A fé é a confiança em algo que se percebe com os próprios sentidos e que é aceita em virtude da autoridade de quem o diz.
 
2.2. O Notário Como Profissional do Direito (notário enquanto jurista privado)
Nos momentos mais importantes de determinação da segurança jurídica, a presença de um interprete imparcial e independente se mostra tão necessária como indispensável à função social.
Nesse diapasão, o notário desempenha uma função social por excelência, pois em seu ofício eis fundamental possuir a mais alta concepção de prudência e de responsabilidade profissional. Ademais, o notário se nutre de confiança social.
Os tabeliães de notas, como regra, reduzem a vontade das partes à forma escrita e legal, gerindo títulos jurídicos dotados de fé pública e aptos a serem registrados, bem como a produzirem efeitos no mundo jurídico.
Uma primeira nota diferencial do notário, em relação a algumas outras profissões jurídicas, está na conjugação de alguma função pública com o predicado da liberalidade profissional do notário. Pois a característica de profissionalidade liberal implica o não comprometimento profissional com o lucro, o que, efetivamente, dá forma à especialização notarial são dois atributos funcionais que não se satisfariam sem a liberdade da profissão notarial: A assessoria e o conselho, que pressupõem a independência jurídica do notário e sua vocação primacial ao que é justo.
Tem-se defendido que uma de suas principais funções se vincula à segurança jurídica e, especificamente, à segurança jurídica preventiva, por assim dizer. Essa segurança jurídica se expressa no documento público, que goza de uma presunção de veracidade e legalidade e é, por sua vez, a prova fundamental dos atos jurídicos.
Trata-se de um jurista a quem o Estado delega fé pública, de forma que o documento por ele redigido é considerado autêntico e não pode ser recusado pelos demais órgãos do Estado ou impugnado pelos particulares, a não ser pela via judicial, e que tem por atribuições assegurar a segurança do tráfico econômico e a validade e eficácia dos atos e negócios jurídicos. [7]
Trata-se de um jurista do direito privado, com alto prestígio na academia e na sociedade, contribuindo com o seu trabalho e seus estudos para o desenvolvimento do Direito.[8]
 
O Documento Público Notarial 
Trata-se como documento toda representação de um fato. Caracteriza-se por ser prova real, visto por representar fatos e acontecimentos pretéritos em um objetivo físico, servindo, assim, de instrumento de convicção. Quando expedido pelo Estado por meio de agentes públicos no exercício de sua competência, fixada por lei ou regulamento, denomina-se documento público. Daí é assegurado que todo documento lavrado por tabelião no exercício de sua competência é uma documento público notarial ou, simplesmente, documento notarial.[9]
Como cediço, o tabelião público é autor do documento notarial revestido de fé pública. Em decorrência, o documento é um instrumento com plena eficácia. Isso significa dizer que faz prova plena. Verifica-se, por tanto, que a fé pública é o elemento abstrato que reviste o documento notarial, dotando-o da força executiva e eficácia probatória. A fé pública notarial é sempre documental.
Como se sabe, nos países do sistema latino, a lei atribui ao documento notarial um especial grau de eficácia que contrasta com a que atribui ao documento particular. De fato, o documento notarial tem o carácter de documento público e autêntico, goza da eficácia especial como meio de prova e tem força executiva.
Exercendo o notário, a par da função estritamente documental, uma função jurídica privativa, que corresponde, além de outras tarefas, à adaptação, adequação ou conformação com a verdade dos particulares ao ordenamento jurídico, a segurança preventiva é uma consequência manifesta da atividade do notário.
A segurança que o notário proporciona é, antes de tudo, uma segurança documental, derivada da eficácia do instrumento público, dotado de autenticidade, eficácia essa que se expandem pelo tráfico jurídico, pelo processo e em variadas outras direções.[10]  
 
DO VALOR INDICIÁRIO DA ATA NOTARIAL (“a prova à prova”)
A atividade probatória na usucapião extrajudicial é formulada pelo complexo de atos que tendem a formar a convicção do registrador imobiliário sobre a existência, ou inexistência, de uma determinada situação fática.
É bem verdade que a ata notarial lavrada pelo tabelião atestará o tempo de posse do requerente e seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias. Assim sendo, o tabelião como receptor da vontade dos usuários e responsável pela autenticação e veracidade dos fatos, deverá ter os cuidados com a análise de toda a documentação apresentada, para dar início ao procedimento de usucapião extrajudicial.
Cumpre observar que, em se tratando de ata notarial na qual o fato constatado pelo notário é uma declaração (testemunho), a fé pública recai sobre a existência da declaração, a identidade do declarante e a data em que ocorreu, mas não exatamente sobre o seu conteúdo. A presunção de veracidade recai sobre o fato da declaração e não sobre o seu teor.
Verifica-se que a “atestação”, pela atuação do notário, seja pela audiência de testemunhas, seja pela vista de documentos terá caráter de prova indiciária, uma vez que pressupõe um fato, demonstrado através de inúmeras outras provas diretas ou indiretas. Este fato indiciante permite a elaboração de um fato consequência (a ata notarial) em virtude de uma ligação racional e lógica que permita presumir, por exemplo, que o requerente está relacionado com as posses anteriores.
A decisão a respeito da procedência do pedido de usucapião, a análise do conjunto probatório, o juízo de valor, enfim, caberá ao Oficial de Registro, que observará o conjunto probatório erigido, o qual a ata notarial integra juntamente com outros elementos de prova, não sendo, pois, o único elemento.
Assim, concluímos que a ata notarial, como requisito para usucapião extrajudicial, fica a salvo para julgamento extrajudicial por parte do oficial registrado, uma vez que a afirmação da veracidade dos fatos se traduz como mero juízo interpretativo do notário, possuindo caráter indiciário.
 
[1] BRANDELLI, Leonardo. Usucapião administrativa: De acordo com novo código de processo civil. São Paulo: Saraiva. 2016. p. 74.
[2] RODRIGUES, Marcelo Guimarães. Tratado de registros públicos e direito notarial. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2016.
[3]Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), sancionado em 16.3.2015. Art. 384.  A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião. Parágrafo único.  Dados representados por imagem ou som gravados em arquivos eletrônicos poderão constar da ata notarial.
[4] Disponível: http://www.notariado.org.br/index.php?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=NzE0MA.
[5] FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger; RODRIGUES, Felipe Leonardo. Ata Notarial – Doutrina, prática e meio de prova. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p.91.
[6] AMADEI, Vicente de Abreu. A fé pública nas notas e nos registros. Direito Notarial e Registral Avançado. 2014. São Paulo: ed. Rt. p. 46-47.
[7] LOUREIRO, Luiz Guilherme. Manual de direito notarial: da atividade e dos documentos. Salvador: Juz PODIVM, 2016. Pg. 70.
[8] Idem. Pg. 69.
[9] FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger; RODRIGUES, Felipe Leonardo. Ata Notarial – Doutrina, prática e meio de prova. São Paulo: Quartier Latin, 2010. p.86.
[10] JARDIM, Mônica. Escritos de direito notarial e registral. Portugal: Editora Almedina, 2015.
 
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O presente artigo é uma reflexão pessoal do colunista e não a opinião institucional do CNB/CF.
 
Fonte: CNB/CF 
 
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