A Lei 13.709, de 14/8/2018, conhecida como Lei Geral de
Proteção de Dados (LGPD), disciplina a proteção de dados pessoais, entendidos
como aqueles que identifiquem pessoas naturais ou, ao menos, permitam a sua
identificação[1]. Dados que não permitam tal
identificação, tais como os dados anonimizados, não se sujeitam à proteção da
LGPD[2].
A prática demonstra que a linha divisória entre dados
pessoais e dados anonimizados é bastante tênue. De fato, há técnicas de
tratamento de dados que, em regra, não necessitam da precisa identificação da
pessoa natural relacionada aos dados tratados. Uma delas, o data-profiling,
visa segregar pessoas naturais em determinadas categorias, sem que seja
necessário identificá-las precisamente para obter informações comercialmente
valiosas[3]. A sua aplicação permite identificar
grupos de indivíduos que se exercitam continuamente, aos quais seriam dirigidas
propagandas relacionadas a produtos saudáveis, ou identificar bons pagadores
para oferecimento de melhores taxas ou produtos financeiros diferenciados, ou,
ainda, selecionar jovens bacharéis em Direito para lhes direcionar propagandas
de cursos ou livros. Nesses casos, informações como nome, sobrenome e CPF seriam
irrelevantes, criando a falsa impressão de que, de fato, a anonimização estaria
assegurada.
No entanto, a partir de analogias e comparações feitas por
algorítimos complexos, é possível inferir a quem determinado dado anonimizado
se refere, em um processo chamado reversão. Tome-se o exemplo de uma conhecida
provedora de serviços de streaming, que, com intuito de melhorar
seus algorítimos de seleção de filmes, disponibilizou as avaliações publicadas
na plataforma, durante certo período de tempo. Para evitar a identificação dos
avaliadores, a provedora se utilizou de técnicas de anonimização[4], alterando determinados dados constantes
de seu banco, tais como datas de avaliação e notas. Para testar o processo de
anonimização, pesquisadores buscaram correlacionar os dados disponibilizados
pela provedora de serviços com outros dados publicados em um conhecido website
de avaliações de filmes e séries. Com base nesse cotejo, feito automaticamente
por algoritmos, foi possível identificar os avaliadores dos filmes, revertendo,
assim, a anonimização[5].
A LGPD não se descuidou dessa possibilidade, estabelecendo
que não são anonimizados os dados cuja anonimização puder ser revertida,
com esforços razoáveis e por meios próprios. Cabe
indagar, no exemplo acima, se a conduta dos pesquisadores que reverteram a
anonimização representaria um “esforço razoável” e se o seu trabalho teria sido
executado por “meios próprios”.
Essa dúvida não se encontra resolvida no Direito brasileiro,
que ainda não traçou os limites da anonimização. Vale buscar subsídios na
experiência europeia derivada da aplicação de sua legislação sobre proteção de
dados, que serviu de inspiração para a LGPD. No âmbito europeu, a questão foi
esclarecida por um órgão técnico consultivo sobre privacidade, no Parecer 05/2014
sobre Técnicas de Anonimização, segundo o qual não são considerados
anônimos os dados que permitam a individualização da pessoa (singling-out);
permitam estabelecer vínculos com outros dados que, por sua vez, possibilitem a
identificação da pessoa (linkability); ou possuam elementos que permitam
inferir dados pessoais (inference)[6].
No Brasil, espera-se que a recém-criada Autoridade Nacional
de Proteção de Dados, no exercício de sua competência de editar normas sobre
privacidade e proteção de dados, manifeste-se prontamente, considerando a
sensibilidade da questão[7]. Enquanto tal esclarecimento não vier, os
agentes de tratamento de dados deverão desenvolver políticas robustas de
controle de anonimização, com o apoio dos respectivos encarregados de proteção
de dados e de profissionais com conhecimento técnico, jurídico e regulatório,
de sorte a mitigar os riscos de eventual descumprimento da LGPD, causando
prejuízos aos cidadãos e riscos de elevadas multas.
[1] LGPD, artigo 5º, I.
[2] Idem, artigo 12.
[3] Cf. o comentário de Valéria Reani sobre
o assunto em https://www.conjur.com.br/2018-jun-15/valeria-reani-gdpr-compliancede-medidas-protetivas.
[4] No caso, a técnica utilizada foi a
randomização.
[5] Cf. o relato de Bruno Bioni sobre o
caso, in BIONI, Bruno. Xeque-Mate: O Tripé da Proteção de
Dados Pessoais no Jogo de Xadrez das Iniciativas Legislativas no Brasil, 2015,
p. 27, disponível em http://gomaoficina.com/wp-content/uploads/2016/07/XEQUE_MATE_INTERATIVO.pdf.
[6] Opinion n. 05/14 of the Data
Protection Working Party, p. 10, disponível em https://ec.europa.eu/justice/article-29/documentation/opinion-recommendation/files/2014/wp216_en.pdf.
[7] LGPD, art. 55-J, II.
Pedro Silveira Campos Soares é sócio do Grebler Advogados, LLM pela Duke University School of Law e especialista em arbitragem, contratos internacionais e Direito Digital.
Fonte: Conjur