Em homenagem aos 12 anos da Lei
11.441/07, que trouxe importante evolução e avanço ao descongestionamento do
Poder Judiciário, a referida Lei significou também economia para o
contribuinte. Segundo um estudo conduzido em 2013, pelo Centro de Pesquisas
sobre o Sistema de Justiça brasileiro (CPJus) [1], cada processo que entra no Judiciário
custa em média R$ 2.369,73 para o contribuinte. Portanto, o erário
brasileiro economizou mais de 5,2 bilhões de reais com a desburocratização
desses atos.
Outro ponto a ser analisado são
as estatísticas do Judiciário. Segundo o relatório “Justiça em Números”,
publicado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2018, o orçamento destinado ao
funcionamento do Poder foi de R$ 90,8 bilhões. Ainda segundo a pesquisa,
existem hoje 80,1 milhões de processos em trâmite em todas as instâncias da
Justiça.
Por outro lado, constantemente
nos deparemos nas serventias extrajudiciais (cartórios) com a seguinte
pergunta: Por que não podemos fazer a dissolução da união estável ou
divórcio em cartório com filhos incapazes? Realmente é curioso e merece
uma singela e objetiva reflexão.
Os notários podem lavrar
testamentos públicos, escrituras, inventários, partilhas, atas notariais e
todos demais atos que reverberam não só na situação patrimonial como nos
direitos da personalidade. Nesse sentido, com o fenômeno da desjudicialização
ou desafogamento do Poder Judiciário, vem ganhando destaque a hipertrofia da
atividade no auxílio da efetividade do acesso à justiça havendo grande
necessidade de atualização e capacitação jurídica de todos as serventias
(cartórios) do Brasil. Até pouco tempo não era possível a lavratura de
inventários com testamento na esfera judicial, o que aos poucos vem sendo
editados por todas Corregedorias Estaduais a sua viabilidade, devendo ser
aberto no Judicial e cumprido no Extrajudicial. Ou seja, um ato complexo, não
perde seu caráter de Jurisdição, mantendo o controle e regulação, inerente
inclusive ao microssistema Constitucional previsto no artigo 236.
Conforme supracitado, temos uma
série de Provimentos editados pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) que
buscam através de um esforço hermenêutico a orientação e regulação na aplicação
dos institutos, buscando uma uniformização nacional, minimizando a sensação dos
“feudos cartorários”.
Antes que enfrentemos o mérito,
far-se-á necessário uma breve recordação, no tocante ao tema, onde vários
operadores do direito já comentaram sobre esse assunto, inclusive quem vos
escreve nesse humilde artigo. Em 2014, na pós-graduação da Escola Paulista da
Magistratura tratei sobre esse tema e sugeri uma solução para essa celeuma, que
basicamente recordo nas próximas linhas discorrendo sobre o descongestionamento
do Poder Judiciário no Direito Português trazendo alguns elementos que servirão
para solução.
A cidadania encontra-se no artigo
1º. da Constituição Federal como princípio fundamental, que deve ser perquirido
e atingido pelo Estado. A noção de justiça integra o princípio da cidadania,
sendo um dos objetivos estratégicos a resposta de uma decisão em tempo útil.
Portanto, é importante desonerar
os tribunais de processos não contenciosos para que possam se concentrar nas
ações que envolvam litigiosidade e, com isso, garantir uma prestação
jurisdicional célere e efetiva.
No direito estrangeiro
encontramos várias formas de garantia de acesso à justiça na via judicial, mais
morosa, geralmente quando não seja possível obter uma composição entre as
partes e, em paralelo, na via extrajudicial, quando há referida composição.
Em Portugal por exemplo, houve
importante avanço da desconcentração de demandas a partir de 2000, quando foi
editado o Decreto Lei n. 272/2001[2], o qual previa transferência de
competências para a seara extrajudicial de toda matéria envolvendo Jurisdição
Voluntária das relações familiares. Por exemplo, nubente que incidisse em
alguma presunção legal, poderia efetuar exame médico que comprovasse situação
de não gravidez apresentando-o, independentemente de homologação judicial.
O divórcio extrajudicial
originou-se em 1995 em Portugal. Sua instituição teve importantes resultados
para a sociedade e para o Poder Judiciário, favorecendo a celeridade
processual. Os resultados de sua implementação foram tão positivos que foi
ampliado o espectro de aplicação, abrangendo também a possibilidade de
lavratura de divórcios consensuais em hipóteses em que existem filhos menores,
cujo interesses são objetos de regulação e fiscalização pelo Ministério
Público. Nesse sentido, dispôs o artigo 14 da supracitada norma:
Artigo14.o
Separação e divórcio por mútuo
consentimento:
1 —O processo de separação de
pessoas e bens ou de divórcio por mútuo consentimento é
instaurado mediante requerimento assinado pelos cônjuges ou seus procuradores
na conservatória do registro civil.
2 —O pedido é instruído com o
conjunto de documentos referido no artigo 272.o do Código de Registo
Civil, a que é acrescentado acordo sobre o exercício do poder paternal
quando existam filhos menores e não tenha previamente havido regulação judicial.(grifo
nosso)
3 —Recebido o requerimento, o
conservador convoca os cônjuges para uma conferência em que tenta conciliá-los;
mantendo os cônjuges o propósito de se divorciar, e observado o disposto no n.o
5 do artigo 12.o,é o divórcio decretado, procedendo-se ao correspondente
registo.
4 —Quando for apresentado acordo
sobre o exercício do poder paternal relativo a filhos menores, o processo é
enviado ao Ministério Público junto do tribunal judicial de 1.a instância
competente em razão da matéria no âmbito da circunscrição a que pertença a
conservatória antes da fixação do dia da conferência prevista no número
anterior, para que este se pronuncie sobre o acordo no prazo de 30 dias.
5 —Caso o Ministério Público
considere que o acordo não acautela devidamente os interesses dos menores,
podemos requerentes alterar o acordo em conformidade ou apresentar novo acordo,
sendo neste último caso dada nova vista ao Ministério Público.
6 —Se o Ministério Público
considerar que o acordo acautela devidamente os interesses dos menores ou tendo
os cônjuges alterado o acordo nos termos indicados pelo Ministério Público,
segue-se o disposto no n.o 3 do presente artigo.
7 —Nas situações em que os requerentes
não se conformem com as alterações indicadas pelo Ministério Público e
mantenham o propósito de se divorciar, o processo é remetido ao tribunal da
comarca a que pertença a conservatória.
8 —É aplicável o disposto no n.o
2 do artigo 272.odo Código de Registo Civil e nos artigos 1420.o, 1422.oe
1424.o do Código de Processo Civil, comas necessárias adaptações.
Vale mencionar que o artigo 272
do Código do Registro Civil de Portugal[3],
alterado pela Lei n.61/2008, não previa a possibilidade de divórcio com filhos
menores no âmbito extrajudicial, uma vez que havia necessidade de prévia
solução judicial para a sua realização, como ocorre no sistema pátrio.
E, aqui, cabe importante
reflexão: se ocorre consensualidade entre as partes, por que obrigá-las ao
ajuizamento de demanda, para depois deflagrar na via extrajudicial a lavratura
o acordo? Essa foi a recente solução das Normas da Egrégia Corregedoria
Geral da Justiça do Estado de São Paulo, mas que ainda não tem muita
aplicabilidade prática.
Análogo a esse raciocínio, o
direito português previu no item 2, do artigo 14, do Decreto Lei n. 272/2001,
um instrumento de acordo a respeito da guarda e alimentos dos filhos menores.
Ou seja, foi ampliada a competência das serventias extrajudiciais para o
tratamento do tema, sem relevar, contudo, a proteção dos incapazes.
No item 4, o Decreto em questão
prevê a remessa ao Ministério Público para análise do acordo. Desse modo, a
oitiva do parquet garante a proteção dos interesses dos incapazes e,
ao mesmo tempo, propicia o desafogamento do Judiciário. Caso o Ministério
Público considere que o acordo não acautela devidamente os interesses dos
menores, podem os interessados alterar o acordo, em conformidade com as
instruções do parquet ou apresentar novo ajuste.
Essa foi ideia desenvolvida de
forma incipiente ao tratar do tema em 2014, com objetivos a realização de
divórcios em nosso ordenamento no âmbito extrajudicial, permitindo-se, desse
modo, sua realização em hipóteses em que os atuais nubentes tenham filhos
menores, sob a fiscalização do Ministério Público. Logo, essa proposta é
condizente com a Constituição Federal, na medida em que é preservada a
competência do parquet estabelecida pelo artigo 178 do Código de
Processo Civil e demais disposições irradiantes sobre tema.
Os números estatísticos de
economia e celeridade na lavratura extrajudicial são expressivos, já
colacionados no início desse artigo, então como resolver essa situação?
Naquele ano, propus uma alteração
nas Normas criando um verdadeiro sistema homologatório, ora, é intuitivo que
notário protegerá o incapaz, já fazemos isso todos os dias em todos os atos. Ou
seja, ainda que falhasse eventual oficial, haveria o filtro ministerial e ainda
o filtro registral em eventual transferência imobiliária. Como é sabido, não
obtivemos sucesso nessa empreitada também defendida por outros operadores do
direito.
No entanto, com o recente
Provimento 83 do CNJ que alterou substancialmente o reconhecimento
socioafetivo, me parece solucionado esse embate, conforme abaixo:
9º Atendidos os requisitos para o
reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva, o registrador
encaminhará o expediente ao representante do Ministério Público para parecer.
(grifo nosso)
I – O registro da paternidade ou
maternidade socioafetiva será realizado pelo registrador após o parecer
favorável do Ministério Público. (grifo nosso)
II – Se o parecer for
desfavorável, o registrador não procederá o registro da paternidade ou
maternidade socioafetiva e comunicará o ocorrido ao requerente, arquivando-se o
expediente.
III – Eventual dúvida referente
ao registro deverá ser remetida ao juízo competente para dirimí-la.
V –o art. 14 passa a vigorar
acrescido de dois parágrafo, numerados como § 1º e § 2º, na forma seguinte:
“art. 14
…………………………..…………………………………..
1ª Somente é permitida a inclusão
de um ascendente socioafetivo, seja do lado paterno ou do materno.
2º A inclusão de mais de um
ascendente socioafetivo deverá tramitar pela via judicial.
Art. 2º. Este Provimento entrará
em vigor na data de sua publicação.
Ministro HUMBERTO MARTINS
Corregedor Nacional de Justiça
Diante do exposto, entendemos que
não há óbice para a Corregedoria Nacional de Justiça regulamentar essa matéria,
aplicando analogicamente o arcabouço criado no citado Provimento do CNJ, para
aplicação uniforme em todo território nacional. Na linha de raciocínio aqui
defendida, deve ser permitida a realização de divórcios ou dissoluções de união
estável quando há filhos incapazes no âmbito extrajudicial. Para tanto,
sugere-se a participação do Ministério Público igual ao já estabelecido pelo
Conselho Nacional de Justiça em matéria tão importante quanto, o
estabelecimento do vínculo parental, para assim, homologar as questões
envolvendo direitos indisponíveis, a exemplo da definição da guarda e dos
alimentos.
Propõe-se, de lege ferenda,
“administrativa”, uma sugestão de redação regulamentando essa possibilidade,
através da inclusão na Resolução 35 do CNJ;
34.1. Se comprovada a resolução
prévia e judicial de todas as questões referentes aos filhos menores (guarda,
visitas e alimentos), o tabelião de notas poderá lavrar escrituras públicas de
separação e divórcio consensuais.
34.2. Poderá ser apresentado
acordo sobre o guarda, visitas e alimentos dos filhos, na qual deverá o
tabelião com seu prudente critério analisar se atende os interesses dos
incapazes.
34.3. Será redigido a escritura
com tópicos específicos com descrição pormenorizado, de cada detalhe no tocante
a guarda e alimentos.
34.4. Deve ser autuado a
escritura com documentos das partes e enviado ao Ministério Público.
34.5. Competirá a tutela dos
incapazes a Ministério Público que deverá expedir ofício positivo ou negativo.
34.6. Positivo estará o ato
completo e surtirá todos efeitos necessários nos registros públicos e demais
destinatários, caso negativo, poderá ser rerratificado o título com a
orientação do Ministério Público e novamente deflagrado sua qualificação.
34.7. Sempre será privilegiado a
tentativa prévia de mediação, e caso infrutífera deverá ser distribuído a um
dos juízes de família para audiência com as partes e será convolado em
jurisdição contenciosa.
Esta previsão de ampliação das
funções das serventias extrajudiciais, no que se refere ao divórcio e
dissolução de união estável com filhos incapazes, deve ser incluída urgentemente,
em face a economia necessária de todo Poder Judiciário do País, além é claro da
indiscutível contribuição já testada ao longo dos 12 (doze) anos da vigência da
Lei 11.441/07. A dilatação do alcance dos divórcios na seara extrajudicial
contribuirá com o avanço e prestígio das funções notariais e com a garantia de
acesso à justiça, na medida em que desafogará o Poder Judiciário e permitirá a
concretização do direito à tutela jurisdicional efetiva e célere.
*Thomas Nosch Gonçalves é advogado, especialista em Direito Notarial e
Registral Imobiliário e Membro da Comissão Notarial e Registral do IBDFAM
(Instituto Brasileiro de Direito de Família).
[1] https://www.anoregsp.org.br/noticias/40964/cnbsp-lei-que-acelerou-divorcios-e-inventarios-completa-12-anos acessado
em 04/10/2019
[2] Diário da República n 238, 13 de
outubro de 2001.
[3]http://www.irn.mj.pt/sections/irn/legislacao/docs-legislacao/codigo-dorc/downloadFile/file/Codigo_do_Registo_Civil-Set09.pdf?nocache=1252073052.76
Fonte: IBDFAM