A segurança jurídica é um dos
pilares dos estados modernos e, por meio dela, pretende-se conferir às pessoas
o prévio conhecimento das consequências jurídicas que advirão da prática de um
ato ou da ocorrência de um fato. Essa ideia foi paulatinamente ganhando corpo
em nosso sistema constitucional, ainda que esta caminhada seja acompanhada de
sobressaltos.
Tome-se como exemplo a Lei
9.868/1999, que, ao também disciplinar o processo e o julgamento das ações
diretas de inconstitucionalidade, previu a possibilidade de o Supremo Tribunal
Federal restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, inclusive
temporalmente. A mesma trilha seguiu a Emenda Constitucional 45/2004, denominada
Reforma do Judiciário, ao prever a possibilidade de edição das súmulas
vinculantes. Essa ideia também permeia o Código de Processo Civil, como o
ministro Luiz Fux consignou neste prestigiado espaço. E mais recentemente, a
Lei 13.655/2018 fez incluir diversas passagens na Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro com o declarado propósito de conferir maior segurança
jurídica na regulamentação, interpretação e aplicação da legislação de Direito
Público, como também registrou nesta ConJur o professor e ex-presidente do
Instituto Brasileiro de Direito Administrativo Fabrício Motta. Coroa este
propósito a recém aprovada Lei da Liberdade Econômica, segundo a qual “...o ato
de liberação (da atividade econômica) estará vinculado aos mesmos critérios de interpretação
adotados em decisões administrativas análogas anteriores, observado o disposto
em regulamento”, pois não se pode admitir que o poder público se comporte de
modo volúvel, à moda do que registrou Giuseppe Verdi na Ópera Rigoletto.
Para além de preocupações
teóricas ou de suas repercussões jurídicas, é induvidoso que a segurança
jurídica (ou a falta dela) se qualifica como um fator determinante para
mensuração dos custos dos negócios jurídicos, tornando-os viáveis ou não;
encarecendo-os ou não.
Desde a chegada dos portugueses
nestas terras, adotou-se um sistema de certificação de atos e fatos, capazes de
garantir a almejada segurança jurídica. Esta atribuição foi afiançada ao
Estado, que confere fé-pública aos atos que certifica, e cuja presunção só se
afasta por meio de decisão judicial. Esta presunção se funda na ideia de que o
Estado não toma partido nas relações travadas pelos particulares; cumpre ao
poder público figurar como fiador da veracidade das circunstâncias que permeiam
a concretização das relações jurídicas ou da própria relação estabelecida,
certificando a sua ocorrência.
O desempenho de parte destas
atividades continua sob a exclusiva alçada do Estado, caso das juntas
comerciais, tendo outras, entretanto, sido delegadas aos particulares, no que
popularmente é conhecido como “cartórios”. A iniciativa de transferir o
desempenho de atividades estatais aos particulares — efusivamente aplaudida nos
dias que correm como uma das notas características dos Estados modernos —, foi
inaugurada entre nós, precisamente, com os notários e registradores. Os
cartórios foram os precursores da aplaudida desestatização. Nada mais moderno,
portanto, do que essa atividade delegada.
Além disto, os cartórios não são
uma solução à brasileira; verdadeira jabuticaba, pois. Pelo contrário, trata-se
de um modelo altamente difundido e mundialmente exitoso na defesa da segurança
jurídica. Tome-se, por exemplo, as atividades desempenhadas nos cartórios de
notas. Esse modelo beneficia mais de dois terços da população mundial, sendo
adotado em 86 países, tais como China, Japão, Coréia, França, Alemanha,
Espanha, Itália, Portugal, além de praticamente toda a América Latina.
Não bastasse isto, a segurança
jurídica decorrente das atividades desempenhadas pelos cartórios é potencializada
em razão do seu singular método de fiscalização. Afinal, cumpre ao insuspeito
Poder Judiciário fiscalizar todos os atos praticados nos cartórios. Logo, os
cartórios não apenas desempenham essa função estatal de modo eficiente, razão
por que têm sido agraciados com larga aprovação e reconhecimento por usuários e
pela população.... seus atos são avalizados pelo Poder Judiciário.
Justamente porque o Estado
reconhece nos cartórios um instrumento de difusão da segurança jurídica,
inúmeras leis passaram a transferir a eles tarefas anteriormente confiadas ao
Poder Judiciário, tais como: usucapião extrajudicial, autorização de viagem,
separação e divórcio extrajudicial, reconhecimento de paternidade, mediação e
conciliação, além de outras atividades. Até mesmo tarefas desempenhadas por
órgãos públicos — exigentes de fé pública — tiveram o seu exercício delegado
aos cartórios, em movimento chamado de Ofício da Cidadania, e que recebeu ampla
acolhida popular.
Assim, representa um perigoso
retrocesso o movimento que, pautado em uma alardeada eficiência e redução de
custos, tem procurado atribuir a entidades privadas atribuições desempenhadas
pelos cartórios.
É o que se passou, recentemente,
com a autorização para que a cédula imobiliária rural seja levada a registro ou
a depósito em qualquer entidade autorizada a funcionar pelo Banco Central, e
que exerça a atividade de registro ou depósito de ativos financeiros e
mobiliários (artigo 16 da Medida Provisória 897). Essas atividades — que até
então eram exercidas com fé-pública, sob responsabilidade objetiva do Estado,
mas desempenhada com a eficiência própria dos particulares, e sob a intensa
fiscalização do Poder Judiciário — passam a ser registradas e depositadas em
quaisquer entidades financeiras privadas.
Com isto, pretende-se que estas
atividades não mais sejam fiscalizadas pelo Poder Judiciário. Mas não é só.
Suprime-se de pessoas desinteressadas no negócio jurídico a prerrogativa de
afirmar e atestar a lisura formal destes títulos. Suprime-se do impessoal olhar
técnico a prerrogativa de impedir o registro de títulos divorciados das
exigências legais. Suprime-se, pois, o que de mais elementar se busca em uma
vida em sociedade: a segurança jurídica.
Além de esta proposta não se
afinar com o regime constitucional da fiscalização destas atividades — porque o
artigo 236 da Constituição da República confere ao Poder Judiciário a sua
fiscalização, ao passo que a noticiada medida provisória pretendeu transferi-la
ao Banco Central —, rompeu-se a segurança jurídica até então reinante nesta
seara.
Mas para além do impedimento
jurídico, essa medida traz outro resultado perverso e contrário ao propósito
supostamente pretendido. Afinal, demonstrou-se que essa medida provisória
pretende transferir a realização destas operações para um ambiente de maior
fragilidade jurídica. E quão maior a insegurança jurídica em relação a um
objeto, mais elevado é o custo da transação.
Assim, a proposta veiculada nessa
medida provisória, lamentavelmente, inflaciona e agrava o “custo Brasil”.
Fonte: Conjur