Consentimento, obrigação legal e políticas públicas
legitimam o tratamento nas serventias. Texto 4 da série
Como visto no artigo anterior desta coletânea, tratamento é
qualquer operação que realize sobre dados pessoais, e deve estar legitimado
na lei para ser válido.
Na lei brasileira de proteção de dados, parte-se da ideia de
que não existe dado pessoal insignificante. (…) Diante do cuidado com o tema,
foi estabelecido como regra geral (art. 1º) que qualquer pessoa que trate
dados, seja ela natural ou jurídica, de direito público ou privado, inclusive
na atividade realizada nos meios digitais, deverá ter uma base legal para
fundamentar sua atividade.[i]
Nesse artigo, serão abordas as principais hipóteses
autorizativas de tratamento de dados aplicáveis às serventias extrajudiciais.
Além disso, será analisado o regramento especial para o tratamento de dados
pelo Poder Público, ao qual os agentes delegados são equiparados para
fins da LGPD (art. 25, § 4º).
A primeira hipótese é o consentimento (art. 7, I).
Consentimento é a manifestação de vontade livre, específica, informada e
inequívoca de que o titular concorda com o tratamento de seus dados[ii].
O tratamento consentido de dados é recorrente nas
serventias, mesmo sem um instrumento formal de consentimento. Toda vez que um
usuário faz cadastro no cartório para obter algum serviço, por exemplo,
consente em fornecer alguns dados como nome, RG, CPF, estado civil, profissão,
contato, endereço, etc. Também consentem em fornecer seus dados todos os
prestadores de serviços autônomos da serventia.
Pelo princípio da instância, o delegatário presta serviço
apenas procurado pelo usuário. O consentimento pode ser pressuposto nessa
situação, pois quem busca o cartório para fornecer os dados é o usuário.
Todavia, por cautela e em observância ao art. 8º da LGPD, é interessante que o
delegatário requeira o consentimento expresso e formal do usuário para tratamento
de dados. Isso pode ser feito por declaração simples, no momento do cadastro,
por exemplo, ou antes da realização dos assentamentos.
Frise-se que o tratamento é vinculado à finalidade informada
ao titular no momento do consentimento. Caso haja necessidade de utilização dos
dados para finalidades diversas, a legitimidade do tratamento depende de novo
consentimento ou de vinculação a outra hipótese autorizativa.
A segunda hipótese é o tratamento fundamentado no
cumprimento de obrigação legal ou regulatória (art. 7, II). Também se aplica
aos cartórios em várias ocasiões. Uma situação corriqueira que se enquadra
nessa hipótese é a consulta a bancos de dados estatais para checar a veracidade
de documentos e informações. Sobretudo após o Provimento nº 88/2019 do CNJ
(ver coletânea específica), é
praticamente um poder-dever do delegatário efetuar tais consultas, para
prevenir fraudes e comunicar operações suspeitas ao COAF. Nesses casos, há
tratamento de dados em cumprimento dos deveres de “diligência razoável” (art.
7º, I do Provimento 88) e de garantir a segurança jurídica e a lisura dos atos
jurídicos (art. 1, Lei nº 8.935/1994).
Outra situação de tratamento com base na legalidade ocorre
nas exigências feitas a partir do juízo de qualificação, que geralmente
envolvem a requisição de dados pessoais dos usuários. É o caso, por exemplo, do
pedido de uma certidão de casamento para instruir um pedido de registro de
alienação imobiliária, ou de um comprovante de endereço para uma pessoa que
deseja lavrar uma escritura pública.
Contudo, a dispensa do consentimento “não desobriga os
agentes de tratamento das demais obrigações previstas nesta Lei, especialmente
da observância dos princípios gerais e da garantia dos direitos do titular” (art.
7º, § 6º da LGPD). Assim, à luz da LGPD, concebe-se três pontos de
reflexão a ser considerados no momento de fazer uma exigência de
qualificação:
(1) requisitar qualquer dado pessoal traz consigo o
dever de proteção, pois a qualidade dos dados é um direito dos titulares.
Assim, eventuais falhas na segurança podem gerar danos e responsabilizações no
plano civil e disciplinar, riscos que não são de pouca relevância na gestão da
serventia.
(2) todo tratamento precisa ter sua finalidade
demonstrada. No caso, a finalidade deve decorrer da mesma prescrição normativa
da qual a exigência é embasada.
(3) o paradigma deve ser sempre o tratamento mínimo de
dados suficiente para praticar o ato, em respeito ao princípio
da necessidade (art. 7º, III LGPD). Em outras palavras, quanto menos
operações com dados o controlador puder fazer para conseguir seus objetivos,
melhor.
Diante disso, o delegatário deve-se perguntar com
sinceridade se é realmente necessário fazer a exigência. Constatada sua necessidade,
que seja feita de maneira tal que requeira a menor quantidade possível de dados
pessoais. Diz-se isso porque a experiência prática revela que nem sempre os
critérios são tão claros nessas requisições.
Não se trata de descumprir o dever de cautela, mas de
efetivá-lo em maior grau, pesando na segurança dos dados requeridos e na
necessidade de tratamento. Refletir a necessidade das exigências a partir do
novo contexto normativo não é mera formalidade, mas algo imprescindível para
evitar riscos desnecessários à serventia.
3. A terceira hipótese é o tratamento para execução de
políticas públicas (art. 7, III). A lei determina que a política pública apta a
legitimar tratamento de dados deve ser fundamentada em lei ou instrumento
bilateral (como convênios e contratos). Esse tratamento pode ser realizado por
particulares, mas em regra compete ao Estado, motivo pelo qual importa
analisar, neste artigo o regime específico que os artigos 23 a 30 da LGPD
estabelecem para o Poder Público.
Sem muita novidade, a lei condiciona o tratamento estatal de
dados à transparência em relação às operações realizadas, efetivada
pelo fácil acesso (preferencialmente pela internet) a informações como
finalidade e fundamento legal do tratamento (art. 23, I) e prevê a indicação de
um encarregado de tratamento de dados (art. 23, III).
O diferencial está na previsão de que o tratamento pelo
Poder Público deverá ser realizado sempre “para o atendimento de sua
finalidade pública, na persecução do interesse público” (art. 23, caput).
Independentemente da finalidade imediata do tratamento, deve estar vinculada ao
interesse público em última instância. Além disso, é peculiar à Administração a
necessidade de manter seus dados em “formato interoperável e estruturado
para o uso compartilhado”:
Art. 25. Os dados deverão ser mantidos em formato
interoperável e estruturado para o uso compartilhado, com vistas à execução de
políticas públicas, à prestação de serviços públicos, à descentralização da
atividade pública e à disseminação e ao acesso das informações pelo público em
geral.
Assim, os dados devem ser convertidos em formato que permita
fácil compartilhamento, pois é pressuposto o intercâmbio de dados entre os
órgãos estatais. Em todo de uso compartilhado de dados, a LGPD resguarda os
direitos dos titulares, notadamente o princípio da finalidade (art. 26) –
lembrando a inaplicabilidade da LGPD ao tratamento para segurança pública,
defesa nacional e segurança do Estado (art. 4º, III).
O compartilhamento de dados pode ocorrer entre as entidades
estatais (público-público) ou entre entidades estatais e particulares
(público-privado). O compartilhamento de dados público-público é pressuposto
pela LGPD e válido como regra geral. Já o público-privado é em regra vedado,
salvo em hipóteses legalmente previstas. A partir dos art. 26, § 1º e do art.
27 da LGPD, enumeram-se os seguintes permissivos legais:
(1) execução descentralizada de atividade pública (art.
26, I);
(2) dados acessíveis publicamente (art. 26, III);
(3) transferência respaldada em leis ou contratos (art.
26, IV), devidamente comunicados à ANPD (art. 26, § 2º);
(4) prevenção de fraudes e segurança dos dados (art.
26, V);
(5) consentimento do titular (art. 27, caput);
(6) hipóteses de dispensa de consentimento previstas na
LGPD (art. 27, I);
(7) uso compartilhado de dados, com os requisitos do
art. 23, I (art. 27, II).
A hipótese (7) é aberta, não indica uma situação
específica, mas não afasta o caráter de estrita legalidade do compartilhamento
de dados público-privado. Afinal, essa hipótese é condicionada aos termos do
art. 23, I da LGPD, que estabelece a previsão legal como requisito para
compartilhamento de dados.
Quando o agente delegado compartilha dados com entes
estatais, como órgãos do Poder Judiciário por exemplo, realiza um compartilhamento
público-público. Isso porque, conquanto seja uma pessoa física, que exerce sua
atividade em caráter privado, equipara-se ao Poder Público para fins da LGPD.
Por outro lado, são diversas as situações próprias da
atividade notarial e de registro que se amolda às hipóteses legais de
compartilhamento público-privado.
O repasse de dados a particulares com consentimento do
titular (art. 27, caput) ocorre na maior parte das vezes. São
inúmeras as situações em que isso poderia ocorrer. A título de exemplo, ocorre
frequentemente no contexto da lavratura de uma escritura pública, quando o
notário compartilha dados das partes uma com as outras, por exemplo. A possível
necessidade de legitimar esses compartilhamentos, tendo em vista a entrada em
vigor da LGPD, torna ainda mais importante a exigência, de todos os que se
cadastrarem na serventia, de assinatura de declaração de consentimento expresso
para tratamento de dados.
Outra ocasião comum é o repasse de dados a prestadores
de serviços em geral, que realizam atividades-meio para a serventia. Esse
compartilhamento se amolda ao art. 26, IV da LGPD, que determina a comunicação
dos contratos particulares à ANPD, informando previamente a existência desses
canais de compartilhamento de dados públicos.
Outra precaução a ser tomada pelo delegatário é conferir se os seus prestadores de serviço possuem uma política série de proteção de dados, pois eventuais falhas na segurança podem comprometer os dados da serventia.
Fonte: JOTA Info