O assunto nos exaspera, mas — ou justamente porque — não há
como evitá-lo. O coronavírus convulsiona o mundo, impondo-nos escolhas difíceis
num ambiente tenso e saturado de informação e, em igual medida, também de
desinformação. Não há setor da vida que lhe seja imune, e a tributação tem um
papel central na mitigação e na superação da crise.
Dois são os movimentos possíveis. O mais óbvio é o alívio:
isenções, reduções, adiamentos, parcelamentos, suspensão de medidas
constritivas, prorrogação da vigência de certidões de regularidade fiscal, etc.
Fernando Facury Scaff tratou dessa vertente em sua inspirada coluna de
anteontem.
Mas há, por outro lado, quem veja na catástrofe o ensejo
para a instituição ou o aumento de tributos. A ideia nos soa paradoxal, não só
porque essas exações anulariam ou mesmo suplantariam aqueles alívios, mas
também porque os seus contribuintes seriam pessoas e empresas paralisadas pela
incerteza, combalidas por perdas vertiginosas, temporariamente impedidas de
operar ou privadas de clientes, submetidas a justas pressões jurídicas e
sociais pela manutenção dos empregos e, com tudo isso, em breve encarregadas de
reanimar a economia, caso sobrevivam à tormenta.
Dito isso, cabe analisar juridicamente as propostas a que
tivemos acesso, desde logo observando que umas são específicas para a pandemia,
enquanto outras pegam carona nela para catalisar posições teóricas ou interesses
setoriais há muito patrocinados por determinados grupos.
Comecemos pelo Projeto de Lei Complementar 34/2020, de
autoria do Deputado Wellington Roberto (PL/PB). Trata-se de instituir
empréstimo compulsório de incidência única sobre o lucro líquido apurado nos 12
meses anteriores à publicação da lei pelas empresas que, no último balanço
publicado, registraram patrimônio líquido igual ou superior a R$ 1 bilhão. A
alíquota de cada setor, sujeita ao teto de 10%, seria fixada pelo Ministério da
Economia, ouvido o Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos
do Coronavírus, e a receita seria inteiramente vinculada. A restituição,
corrigida pela Selic, dar-se-ia em até 4 anos do fim da pandemia, podendo ser
parcelada em até 12 meses.
A previsão constitucional de empréstimo compulsório na
hipótese de calamidade pública, liberado da anterioridade anual e nonagesimal,
é clara (artigos 148, I, e 150, parágrafo 1º). O vício jurídico está na ofensa
à legalidade: o texto não define nenhuma alíquota, limitando-se a impor um
teto. A invalidação daquelas fixadas pelo Ministério da Economia deixará a
norma tributária incompleta e inaplicável.
Mais rombuda é a sugestão do Deputado Fausto Pinato (PP/SP)
de que se cassem os incentivos fiscais das indústrias de bebidas autuadas pela
Receita Federal, dirigindo-se a receita assim obtida ao custeio do Benefício de
Prestação Continuada, previsto no artigo 20 da Lei de Organização da
Assistência Social, e ao enfrentamento da “crise pandêmica”. Por que só esse setor?
A represália vale mesmo para os incentivos condicionados e sujeitos a prazo
certo, como é a maioria dos que ali se aplicam? E mais: meras autuações, ainda
que vultosas, bastam para anatemizar o contribuinte, quando se sabe que muitos
lançamentos são improcedentes e que grandes empresas costumam pagar aqueles
mantidos nas esferas administrativa e judicial? Isso tudo sem falar que,
tratando-se no mais das vezes de impostos, seria ilícito destinar o acréscimo
de arrecadação assim obtido a órgão, fundo ou despesa. E que a majoração teria
de respeitar a anterioridade (STF, Pleno, ADI 2.325-MC/DF, Relator Ministro
Marco Aurélio, DJ 06.10.2006). São tantos os comandos constitucionais violados
que chega a ser penoso enumerá-los.
Já os Senadores Plínio Valério (PSDB/AM) e Reguffe
(Podemos/DF) propõem a instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas, tarifadas
em R$ 22,8 milhões para o primeiro e em R$ 52,25 milhões para o segundo. O
tributo, onde vigorou, trouxe mais planejamento e expatriação tributária do que
aumento de receita e redistribuição de riquezas. Exemplo disso foi o Impôt
de Solidarité sur la Fortune francês, que onerava essencialmente a classe
média alta, sem atingir os muito ricos. Bem por isso, acabou dando lugar
ao Impôt sur la Fortune Immobilière, incidente sobre os patrimônios
imobiliários superiores a € 1,3 milhão – que são bem mais fáceis de fiscalizar
e impassíveis de transferência para outros países. E mais: os pisos sugeridos
nos projetos de lei não constituem grandes fortunas (a Constituição brasileira
enfatiza o adjetivo), ainda que adotemos critério menos drástico que o de
Piketty — que de direitista não tem nada —, que exige no mínimo € 1 bilhão1.
Os efeitos do imposto tampouco seriam imediatos, dada a regra da anterioridade.
Chegamos por fim ao manifesto Tributar os Ricos para
Enfrentar a Crise, lançado pelos Auditores Fiscais pela Democracia – AFD, pela
Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil – ANFIP,
pela Federação Nacional do Fisco Estadual e Municipal – Fenafisco e pelo
Instituto Justiça Fiscal – IJF. Eis os principais agravamentos tributários
recomendados:
1) criação da Contribuição Social sobre Altas Rendas
das Pessoas Físicas, com alíquota de 20% sobre os valores que superem R$ 80 mil
por mês. Essa medida, somada à referida no item 3.2 abaixo, elevaria a
tributação dessa faixa a 60%, chocando-se com o não confisco;
2) criação de adicional temporário de 30% na CSLL das
instituições financeiras. Convém notar que, por força do artigo 32 da Emenda
Constitucional 103/2019, a alíquota a elas aplicável já é de 20%.
Considerando-se os 25% de IRPJ, chegar-se-ia a uma carga de 75% sobre o lucro,
também excessiva;
3) alterações no Imposto de Renda das Pessoas Físicas:
3.1) revogação da isenção dos dividendos, com regra
especial para aqueles remetidos ao exterior: 25% de incidência exclusiva na
fonte, ou 37,5% caso o destinatário esteja em paraíso fiscal. A inoportunidade
do retorno à tributação dos dividendos tem sido demonstrada com insuperável
rigor por Everardo Maciel e Gustavo Brigagão;
3.2) criação de novas faixas de IRPF, com alíquotas de
35% para mais de 60 salários mínimos, 40% para mais 80 salários mínimos e 60%
para mais de 300 salários mínimos (esta última temporária).
4. extinção, na prática, dos juros sobre capital
próprio, regime que se tornaria ainda mais vantajoso ante a agressiva
tributação dos dividendos;
5. tributação dos lucros das empresas predominantemente
exportadoras (80% das receitas) em patamar não inferior ao que decorreria da
aplicação do lucro presumido. Trata-se de definir como regra o que constitui
opção, com ofensa ao conceito constitucional de lucro (real), sobretudo pela
imposição de margem irrealista para alguns setores e pela neutralização dos
prejuízos, cuja dedução ficaria submetida a mais esse limite;
6. elevação da alíquota máxima do ITCMD para 30%. O
porcentual, para não ser inválido, teria de estar reservado a faixas de valor
elevadíssimas e à sucessão por meros legatários ou herdeiros testamentários –
excluídos os necessários e os legítimos, sob pena de ofensa ao artigo 5º,
inciso XXX, da Constituição, que garante o direito de herança;
7. instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas para
patrimônios superiores a R$ 20 milhões, tema já discutido acima;
8. vedação ao creditamento de tributos não pagos na
etapa anterior, como nas aquisições oriundas da Zona Franca de Manaus e nas
saídas realizadas pelos exportadores. Detalhe: o crédito fictício de IPI nas
aquisições junto à ZFM acaba de ser deferido pelo STF (Pleno, RE 592.891/SP,
Relatora Ministra Rosa Weber, DJe 20.09.2019). E, no geral, a recuperação de
PIS e Cofins pelos exportadores refere-se a valores que deveras incidiram nas
etapas antecedentes;
Como se isso fosse pouco, o manifesto propõe ainda o
endurecimento de regras processuais e criminais, não se comovendo sequer com a
existência de Súmula Vinculante do STF, como no caso do depósito recursal (SV
21).
É oficial: nem todo mundo enxerga a gravidade da coisa.
Fonte: Consultor
Jurídico