Contratos servem essencialmente para definir riscos. As
pessoas, quando entram numa relação contratual, tentam antecipar possíveis
problemas que podem inviabilizar a execução do que foi pactuado, definindo quem
será responsável por esses eventos.
Alguns, como a impossibilidade de cumprimento do que
acordado devido à ruína financeira de uma parte, causada por sua própria
imperícia, por exemplo, dificilmente são considerados justificativas legítimas
para afastar a responsabilidade da parte pelo descumprimento das obrigações
avençadas.
Outros, como um raio que atinge o veículo alugado, impedindo
o cliente de restituí-lo à locadora, podem ter diferente tratamento.
A pergunta é certamente mais complexa quando se está diante
de uma inédita pandemia, como a atual do coronavírus, que fecha fronteiras
nacionais, impõe uma política forçada de isolamento coletivo e restringe a
atividade produtiva.
Como decidir quem é responsável pelos prejuízos decorrentes
do descumprimento de obrigações pactuadas que se tornaram impossíveis ou foram
extremamente dificultadas em virtude da Covid-19?
É essa a interpretação que o Conselho Chinês para
Promoção do Comércio Internacional, órgão do Governo da China, tem dado ao
fato. Segundo o que divulgado, até 3 de março último, o referido Conselho já
havia emitido mais de 4,5 mil certificados de força maior, com a
finalidade de eximir contratantes inadimplentes chineses do pagamento de mais
de 53 bilhões de dólares em prejuízos.[1]
É certo que, caso a pandemia seja considerada um evento
de força maior, partes inadimplentes tendem a poder se ver livres de
reparar prejuízos por obrigações que não puderam ser cumpridas por
tal fato. É essa a regra da primeira parte do art. 393 do Código Civil, que diz
que o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de força maior. Ou
seja, se o contrato for silente sobre a alocação do risco de força maior,
por força de lei, o devedor não responde por prejuízos do descumprimento.
Contudo, essa é uma norma dispositiva e pode ter ocorrido
também de, no contrato, o devedor ter expressamente se responsabilizado pelos
prejuízos resultantes dos casos de força maior. Essa previsão contratual é
plenamente compatível com o direito brasileiro, sendo autorizada pela segunda
parte do artigo 393 do Código Civil. Isso significa que, para esse acordo, o
risco da ocorrência de um caso de força maior, como a pandemia do novo
coronavírus, foi alocado para o devedor e, mesmo sendo um evento imprevisível e
inevitável, ele poderá ser obrigado a arcar com os prejuízos do inadimplemento.
Por óbvio, as cláusulas de força maior não
preverão especificamente a pandemia do novo coronavírus. Elas serão redigidas
de maneira exemplificativa, listando fatos que são tradicionalmente
considerados eventos daquela natureza, como guerras, desastres
naturais, entre outros. Algumas poderão, inclusive, prever a ocorrência
de epidemias e listar doenças como a Síndrome Respiratória Aguda
Grave — SARS, a gripe aviária, como exemplos.
Nesses casos, com base no cânone de
interpretação noscitur a sociis, que orienta que o significado de um termo
seja dado por referência às palavras a ele associadas, parece ser claro que o
significado do termo "epidemia" tenderá a ser construído por
referência às palavras a ele associadas, quais sejam, as diversas graves
enfermidades listadas, e nele será incluída a pandemia de Covid-19.
Esse conceito de impraticabilidade é bem desenvolvido no
direito americano. Se, após a celebração do contrato, a execução das obrigações
contratuais, sem culpa da parte inadimplente, torna-se impraticável, em razão
de um evento cuja não ocorrência era uma premissa fundamental da
contratação, o dever da parte de cumprir a obrigação é liberado, salvo se o
contrato dispuser em contrário ou as circunstâncias indicarem distintamente[2].
Uma ilustração da teoria da impraticabilidade é a
seguinte: “em 1º de junho, A concorda em vender e B em comprar bens para
serem entregues em outubro num determinado porto. O porto é subsequentemente
fechado por regulações de quarentena durante todo o mês de outubro, não há um
substituto comercialmente razoável disponível, e A não entrega os bens. A
obrigação de A de entregar os bens é exonerada e A não é responsável perante B
por violação do contrato”[3]. No
caso em questão, a possibilidade de entrega das mercadorias no porto é
considerada a premissa fundamental da contratação.
Para explicar situações abarcadas pela impraticabilidade,
também são listados como exemplo casos de severa escassez de matéria prima ou
de desabastecimento por força de circunstâncias como guerra, embargo, perda de
colheita e falência não prevista de fornecedores de produtos que causa aumento
substancial no custo ou impossibilita o vendedor de obter as mercadorias
necessárias para o cumprimento da obrigação[4].
Tem-se aí a ideia de onerosidade excessiva, já consagrada pela nossa
jurisprudência[5] como
um elemento que relativiza o pacta sunt servanda.
O caso que deu origem a essa doutrina foi Krell v.
Henry[6],
também conhecido como o coronation case. A coroação do Rei Edward VII
estava agendada para ocorrer entre 26 e 27 de junho de 1902. O réu, C.S. Henry,
intencionando assistir à cerimônia de um local privilegiado, celebrou contrato
de locação do apartamento do autor da ação, Paul Krell, comprometendo-se a
pagar £75 pela locação, sendo £25 de entrada e £50 dois dias antes do início do
contrato. A cerimônia acabou adiada por conta de uma enfermidade do Rei Edward
VII e apenas ocorreu em agosto daquele ano. Como C.S. Henry se recusou a pagar
as 50 libras remanescentes, Paul Krell propôs a ação para receber esse valor.
Apesar de no acordo não haver registro que a razão para a
celebração da avença era a de que C.S. Henry assistisse à coroação, a Corte de
Apelações considerou que ambas as partes sabiam que esse fato era
a premissa fundamental pela qual o pacto havia sido celebrado. Mas
essa premissa fundamental havia sido frustrada sem culpa de C.S.
Henry. Sendo assim, ele foi ser liberado do ônus de pagar o valor remanescente
da locação.
A doutrina da frustration acabou também
consolidada nos Estados Unidos. No Restatement (2nd) of Contracts ela
está assim descrita: “quando, após celebrado o contrato, a principal
motivação for substancialmente frustrada sem culpa da parte, em virtude de um
fato que ela não tinha razão para conhecer e cuja não ocorrência era uma
premissa fundamental sobre a qual a contratação ocorreu, não haverá obrigação
da parte de cumprir a avença, salvo se a linguagem do contrato ou as
circunstâncias indicarem o contrário”[7].
Para ilustrar a importância da doutrina no cenário atual,
basta imaginar os turistas que reservaram, sem possibilidade de cancelamento,
hotéis em Tóquio, entre 24 de julho a 9 de agosto de 2020, durante o período
originalmente agendado para a Olimpíada de 2020, possivelmente por valores
acima da média de mercado aplicável para outros períodos.
O primeiro é que as situações de caso fortuito,
impraticabilidade, frustração, entre outras, serão examinadas e definidas caso
a caso[8],
à luz dos deveres de boa-fé e probidade (art. 422 do Código Civil) e levando em
consideração os termos do contrato. Ou seja, será a partir do exame dos fatos
específicos de cada instrumento que será definido se a pandemia do novo
coronavírus tornou inviável ou frustrou o propósito do cumprimento do pacto.
Isso ocorre, sobretudo, em virtude da textura aberta desses institutos, que
dificulta ter certeza, de antemão, da sua respectiva incidência, em todos os
casos em que forem alegados.
A partir desses deveres legais genéricos, que na linguagem
do Professor Canadense Wilfrid Waluchow refletem pré-compromissos, o direito
aplicável aos casos influenciados pela disseminação do novo coronavírus será
desenvolvido pela jurisprudência. Serão examinados os fatos de um caso e,
comparando-os com os do caso subsequente, num método denominado nos países
da common law como bottom-up lawmaking, ou seja, criação normativa
de baixo-para-cima[9],
serão consolidadas as regras que regulam as situações específicas nas quais as
partes inadimplentes não responderão pelos prejuízos.
O que parece ser certo, contudo, é que as teorias que
regulam a inexecução de obrigações contratuais flutuam entre dois polos
opostos. “Elas buscam evitar a inflexibilidade da regra que demanda a
leitura literal dos contratos, sem adicionar uma indevida incerteza acerca da
extensão das obrigações assumidas”[10]. Assim,
a consequência mais comum é “a aplicação do direito para desobrigar um
contrato em razão da ocorrência de eventos ou circunstâncias que não foram
contemplados pelas partes no momento da celebração do pacto”[11], quando
tais eventos ou circunstâncias forem de tal importância “que manter as
partes presas à avença implicaria impor a elas um novo contrato”[12]. Nas
palavras do juiz inglês Lord Denning, o critério deve ser maior do que “a
mera onerosidade ou o aumento de custo. Deve ser positivamente injusto manter
as partes vinculadas [e essa é] geralmente uma linha difícil de ser traçada,
mas que precisa ser feita. E deve ser feita pelos Tribunais, como uma questão
de direito.” [13]
O segundo é que partes que tenham contratos com obrigações
em curso, as quais foram impossibilitadas ou tornadas mais penosas em virtude
da pandemia do novo coronavírus, devem tomar todas as medidas necessárias para
mitigar o dano sofrido, de maneira que ele não seja indevidamente agravado.
Esse dever surge da teoria contratual americana segundo a
qual há o duty to mitigate the loss. O STJ expressamente reconhece
que o princípio da boa-fé objetiva e os deveres de cooperação e lealdade impõem
que o credor tente evitar o agravamento do próprio prejuízo e cita justamente
essa teoria para fundamentar esse entendimento[14].
Levando em consideração esse dever, autores internacionais
têm apontado que os impactos da pandemia de COVID-19, dentre os quais as
obrigações governamentais de fechamento de comércio, devem ser documentados,
bem como as medidas adotadas para mitigar esses impactos. Além de auxiliarem em
eventuais alegações de força maior, de impraticabilidade e de frustração, esses
registros podem ajudar também na instrução de pedidos administrativos de
auxílio aprovados por programas governamentais[15].
É fácil perceber, entretanto, que a incidência ou não desses
institutos, por terem textura aberta, será definida caso a caso. Somente assim
será identificado de que maneira as partes se posicionaram frente a esse
imprevisível e inevitável risco e será decidido se essa previsão é compatível
com valores como a boa-fé objetiva e a probidade, previstos no Código Civil.
Fonte: Consultor
Jurídico