Reflexões sobre o
aplicativo chinês Alipay Health Code, que classifica os usuários de acordo com
suspeitas
Desde a declaração de pandemia do coronavírus (COVID-19)
pela Organização Mundial da Saúde (OMS), as discussões a respeito do tratamento
de informações pessoais de indivíduos de todo mundo têm sido levantadas com
afinco.
Na China, primeiro epicentro da COVID-19, a empresa Ant
criou o aplicativo Alipay Health Code, que utiliza informações pessoais
coletadas dos usuários para enquadrá-los conforme o nível de risco e definir a
necessidade de isolá-los, como tentativa de conter o avanço do vírus.
De acordo com o aplicativo, pessoas que recebem o código verde
podem se locomover livremente. Para aquelas que recebem o código amarelo, o
aplicativo solicita que se isolem em suas residências pelo período de sete dias
e, por fim, para quem recebe o código vermelho, a permanência em quarentena de
duas semanas é obrigatória.
Tal ferramenta, que auxilia as autoridades chinesas
sobremaneira na tentativa de mitigar a disseminação do coronavírus, deve
observar os princípios e diretrizes elencados e estabelecidos no regulamento de
segurança das informações pessoais1 e
nas leis de cibersegurança2 e
de criptografia3 da
China.
No contexto europeu, em que a Itália figura como epicentro
da pandemia da COVID-19, o European Data Protection Board (EDPB) se
manifestou a respeito do tratamento de dados pessoais de europeus no contexto
atípico e devastador que vive a humanidade.
Na oportunidade, o EDPB ressaltou que o General Data
Protection Regulation (GDPR) permite que autoridades sanitárias
processem os dados pessoais no contexto de uma epidemia, respeitada, também, a
legislação de cada país-membro.
É dizer, na atual sociedade da informação – que Manuel
Castells tanto se dedicou a estudar e na qual é evidente a vulnerabilidade dos
usuários enquanto titulares dos seus dados –, a criação de softwares que
se utilizam do Big Data acende a discussão para os possíveis abusos
que podem ser causados na utilização desses aplicativos, não só em casos
extremos como o da guerra contra o coronavírus.
Foi no desígnio de salvaguardar as informações pessoais dos
indivíduos que emergiu, inclusive, o conceito de privacy by design (PbD), baseado
na percepção de que a privacidade não é assegurada somente pelo Compliance com
as estruturas regulatórias.
Na realidade, essa garantia deve ser o modus
operandi por detrás das organizações. Isso implica a garantia de que a
privacidade seja implementada, em nível máximo, durante toda a estruturação
e design de determinado projeto, da essência ao seu desfecho, isto é,
durante todo o ciclo da ferramenta que processa dados pessoais, conforme
explana Ann Cavoukian4.
Também a ideia do chamado privacy by default – atrelado
ao privacy by design – preceitua que as configurações de privacidade
devem ser feitas da maneira mais restrita possível, por padrão, de modo que
informações pessoais além daquelas necessárias para a atividade exercida deve
ser liberada pelo usuário, caso queira.
Assim, em um cenário de disseminação global da COVID–19,
interessante seria a aplicação dos conceitos do privacy by design e do
privacy by default na arquitetura dos dispositivos virtuais, como o Alipay
Health Code.
No contexto da pandemia, a ideia de que “todo instrumento de
contenção do coronavírus é bem-vindo” pode parecer tentadora, contudo, a
validação desse tipo de discurso deve ser cautelosa.
Isso porque os diversos aplicativos utilizados pelo governo
e por empresas chinesas somados às demais tecnologias que coletam dados
pessoais, como a câmera desenvolvida pela Hanwang Technology que, por meio
do reconhecimento facial, identifica quais chineses têm usado máscaras de
proteção nas ruas e detecta o nome e a temperatura corporal das pessoas,
exercem vigilância constante na população chinesa.
Essa vigilância, que se dá de forma descentralizada, ocorre
por meio da atuação do que Bruce Schneier 5 chamou
de little brothers, isto é, dispositivos que se alimentam das
interações online e off-line dos indivíduos e que geram um
volume imenso e valioso de informações pessoais, inclusive aquelas relativas à
saúde.
Desse modo, para garantir o respeito aos limites mínimos de
proteção e segurança da informação, ao se utilizar aplicativos como o Alipay
Health Code, tanto o governo quanto as empresas chinesas precisam observar
o regulamento chinês que, em seu Capítulo 3.2, reconhece a sensibilidade de
dados relacionados à saúde dos indivíduos.
A observância das normas protetivas, especialmente para
aqueles agentes que processam informações extraídas de registros feitos em
tratamentos médicos; relatórios de testes de saúde, de cirurgias feitas ou de
diagnósticos; histórico médico familiar; registros de doenças infecciosas e
demais informações relacionadas à saúde do indivíduo, é fundamental.
Isso porque incidentes como o vazamento de dados ou até
mesmo a utilização ilegal e/ou indevida dessas informações colocam em risco a
reputação e a saúde mental e física do titular de dados, além de abrir caminho
para o tratamento de informações pessoais sob a ótica discriminatória.
Portanto, ainda que em um cenário de pandemia surjam
análises que originam discursos favoráveis à flexibilização das normas
protetivas de dados pessoais em prol da saúde dos usuários, tais análises devem
ser feitas de forma cuidadosa a fim de preservar a privacidade e a integridade
das informações pessoais dos usuários, o que inclui, também, a utilização de
aplicativos como o Alipay Health Code no combate ao coronavírus.
Fonte: Jota