A usucapião, instituto cuja origem deriva da união das
expressões em latim usu e capere, significa “tomar pelo uso”,
consistindo em forma originária de aquisição do direito de propriedade sobre
um bem móvel ou imóvel em função
do respectivo uso por determinado tempo, de forma contínua, com o exercício dos
poderes de usar e livremente dispor.
O art. 5°, inciso XXIII da Constituição Federal de 1988
dispõe que “A propriedade atenderá a sua função social”, o que é corroborado
pelo art. 6°, caput da mesma Carta Magna que prescreve que a moradia
é um direito social constitucionalmente estabelecido. No mesmo sentido, se vê
no artigo 170, inciso III, in verbis: “Art. 170. A ordem econômica,
fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim
assegurar a todos existências dignas, conforme os ditames da justiça social,
observados os seguintes princípios: (...) III - função social da propriedade”.
Além das formas de aquisição da propriedade previstas no
Cap. II, Título III, do Código Civil (artigos 1.238 e seguintes), há a
possibilidade da usucapião como forma originária de aquisição do bem imóvel,
estabelecidas as seguintes modalidades: 1. Extraordinária (CC, art. 1.238); 2.
Ordinária (CC, art. 1.242); 3. Especial Urbana (CF, art. 183 e CC, art. 1.240);
4. Especial Rural (CF, art. 191 e CC, art. 1.239); 5. Coletiva (Estatuto da
Cidade, art. 10); 6. Especial Familiar (CC, art. 1.240-A); 7. Indígena (art. 33
do Estatuto do Índio).
Contudo, em neste estudo, serão abordados somente os
aspectos relativos à usucapião coletiva, modalidade que é da usucapião especial
urbana prevista na Constituição Federal (art. 183) e estabelecida no Estatuto
da Cidade (Lei nº 10.247/2001).
De forma inovadora, o Estatuto da Cidade, além de
disciplinar melhor sobre a usucapião especial urbana individual, modalidade já
existente no Código Civil, instituiu a usucapião coletiva em seu art. 10, ao
estabelecer que “Os núcleos urbanos informais existentes sem oposição há mais
de cinco anos e cuja área total dividida pelo número de possuidores seja
inferior a duzentos e cinquenta metros quadrados por possuidor são suscetíveis
de serem usucapidos coletivamente, desde que os possuidores não sejam
proprietários de outro imóvel urbano ou rural”.
Inicialmente, o Estatuto da Cidade fixou como requisitos
para a usucapião coletiva os seguintes: (i) área urbana com mais de duzentos e
cinquenta metros quadrados; (ii) posse exercida por população de baixa renda;
(iii) posse ininterrupta e sem oposição por cinco anos; (iv) impossibilidade de
identificar terrenos ocupados por cada possuidor; (v) inexistência de
propriedade de outro imóvel urbano ou rural.
Posteriormente, com o advento da Lei nº 13.465/2017, surgiu
a nova redação acima referida, estabelecendo, como requisitos principais, (i)
presença de núcleos urbanos informais; (ii) posse ininterrupta e sem oposição
por cinco anos; (iii) posse sobre unidade habitacional ou comercial, por cada
titular, inferior a duzentos e cinquenta metros quadrados; (iv) inexistência de
propriedade de outro imóvel urbano ou rural.
Conforme esclarecido por Marco Paulo Denucci Di Spirito,
“inovando completamente em comparação ao sistema anterior, o novel Diploma
enquadra a usucapião coletiva na realidade do país, permitindo a formalização
do direito fundamental de moradia para beneficiar unidades com área inferior a
duzentos e cinquenta metros quadrados. Neste ponto, a norma encontra-se em
sintonia com a mais recente orientação do Supremo Tribunal Federal, que
decidiu, em julgado sob o regime da repercussão geral, pela
inconstitucionalidade de se restringir a aquisição da propriedade via da
usucapião ante o fato de a área encontrar-se em dimensões inferiores ao módulo
urbano”1.
Além disso, a nova redação do art. 10 do Estatuto da Cidade
suprimiu a exigência de impossibilidade de identificação dos terrenos ocupados
por cada possuidor, o que certamente poderia gerar confusão entre os
possuidores. Por outro lado, desde que respeitado o máximo individual de 250
metros quadrados por possuidor, não há exigência de área máxima global.
Nessa nova sistemática, caberá aos possuidores optar pela
usucapião individual de cada uma das unidades habitacionais ou pela usucapião
coletiva, perpassando a escolha pela possibilidade de instituição do condomínio
especial previsto no art. 10, §§ 4º e 5º da Lei 10.257/2001.
De outro lado, permanece a possibilidade da não
individualização das unidades habitacionais, com a comunidade organizada
identificando da melhor maneira possível a posse de cada possuidor, atribuindo
a cada um deles a fração ideal que lhes compete. Na sentença, o juiz atribuirá
igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão
do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os
condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas (art. 10, §3º, do
Estatuto).
Como legitimados para a ação de usucapião coletiva estão:
(i) o possuidor, isoladamente ou em litisconsórcio; (ii) os possuidores em
estado de composse; e, (iii) a associação de moradores da comunidade, como
substituto processual (Art. 12 do Estatuto).
Cabe ressaltar, ainda, que, nos termos da decisão proferida
pelo STF no RE 422.349, relatado pelo Ministro Dias Toffoli, com repercussão
geral, “preenchidos os requisitos do art. 183 da Constituição Federal, o
reconhecimento do direito à usucapião especial urbana não pode ser obstado por
legislação infraconstitucional que estabeleça módulos urbanos na respectiva
área em que situado o imóvel (dimensão do lote)”.
Resta, assim, analisar a questão sobre o direito
intertemporal, porquanto há a possibilidade de que o tempo de posse
reivindicado seja anterior à entrada em vigor do Estatuto da Cidade (2001). É
plenamente defensável que, estando a usucapião especial urbana também prevista
nos artigos 182 e 183 da CF, esse período de cinco anos pode ser computado a
partir da vigência da Constituição de 1988, e não somente posterior à vigência
do Estatuto da Cidade.
Ora, a modalidade da usucapião especial urbana já existia
desde a promulgação da Constituição Federal, sendo certo que a usucapião
coletiva, disciplinada no Estatuto da Cidade, é apenas uma de suas espécies,
tendo vindo a regulamentar aquela primeira. Essa usucapião teve os seus
contornos definidos no artigo 183 da própria Constituição e foi regulamentada
pelos artigos 9º a 14 da Lei 10.257/2001, que a subdividiu em usucapião
individual (art. 9º) e usucapião coletiva (art. 10).
O Estatuto da Cidade, como lei ordinária, possui normas
complementares às diretrizes constitucionais, não se afastando das regras
delineadas nos arts. 182 e 183 da CF no que dizem respeito à política pública
urbana, porquanto visa a atender às funções sociais da cidade e à melhoria das
condições habitacionais da população de baixa renda assentada em áreas urbanas.
Discorrendo sobre o tema, Cleber de Paula Barbosa dos Santos
afirmou ser “Possível a contagem do qüinqüênio a partir apenas da promulgação
da Constituição Federal, assim aproveitando-lhe a consolidada jurisprudência do
Pretório Excelso no sentido de que o termo inicial da contagem do qüinqüênio
para saber se configurado, ou não, a usucapião prevista no artigo 183 da Lei
Maior coincide com a entrada em vigor desta última”2.
Logo, viável, a nosso ver, o ajuizamento de usucapião
coletiva para contagem do lapso temporal mínimo anterior à entrada em vigor do
Estatuto da Cidade, que efetivamente passou a prever essa espécie de usucapião.
Inicialmente prevista de forma geral no CPC de 1973 (art.
944), a intervenção do Ministério Público nas ações de usucapião, com o advento
do Novo Código de Processo Civil, restou suprimida, restando a matéria
disciplinada apenas nos artigos 246, §3º, 259, I e 1.071. Como órgão
interveniente, a intervenção do Ministério Público no processo de usucapião
coletiva está prevista no art. 12, §1º, do Estatuto da Cidade, em sua função de
fiscal da ordem jurídica, tendo em vista, no caso, o cotejamento de direitos
fundamentais (art. 178, I e III, do Código de Processo Civil).
Assim, o Ministério Público, nessas ações, deverá zelar pela
observância dos requisitos legais para a usucapião coletiva, à luz da função
social da propriedade, que deve atender ao interesse público, a fim de
concretizar o direito de moradia, reduzindo as desigualdades sociais, nos
termos preconizados nos objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil previstos no art. 3° da Constituição Federal de 1988.
Fonte: Consultor Jurídico