A emergência sanitária advinda da pandemia do coronavírus
realmente suscita a necessidade de um tratamento diferenciado para diversas
situações jurídicas que, numa primeira vista, não foram previstas pelo
legislador.
A proposta legislativa realizada no projeto de lei 1.627, de 2020, cuja matéria versa sobre regime jurídico
emergencial e transitório das relações familiares e sucessórias na pandemia
causada pelo covid-19, de autoria legislativa da senadora Soraya Thronike, em
que pese o auxílio de juristas de elevado gabarito, a exemplo de Mário Luiz
delgado, João Ricardo Brandão Aguirre, José Fernando Simão e Maurício Bunazar,
merece análise crítica, para que não se caia em grave equívoco ou em uma
inutilidade.
O referido projeto pretende instituir normas de caráter
transitório em relação à celebração do casamento (artigos 3º, 4º e 5º), à
guarda e ao regime de convivência (artigos 6º e 7º), aos alimentos (artigo 8º)
e aos testamentos (artigos 9º e 10º).
A emergência sanitária advinda da pandemia do coronavírus
realmente suscita a necessidade de um tratamento diferenciado para diversas
situações jurídicas que, numa primeira vista, não foram previstas pelo
legislador.
No entanto, em análise cuidada, percebe-se que o projeto sob
análise pretende apresentar soluções para problemas que já têm respostas
satisfatórias, seja porque dadas pelo Poder Judiciário, seja porque já
previstas na legislação.
Ao percorrer as matérias de casamento, de guarda de filhos e
de alimentos, o projeto incide em graves equívocos e, por vezes, até mesmo em
inutilidades.
O Conselho Nacional de Justiça já autorizou aos Tribunais
estaduais a utilização da videoconferência em substituição ao atendimento
presencial em despachos e na realização de audiências; quanto à atividades
cartorárias, celebrações de casamentos têm ocorrido por videoconferências em
diversas partes do país, assim como os tabelionatos de notas estão exercendo
atividades, inclusive na lavratura de escrituras de pacto antenupcial, em
regime de plantão ou com horários especiais de atendimento.
Assim, a previsão da possibilidade de celebração do
casamento por videoconferência (art. 3º) não se constitui em medida necessária,
porquanto já tenha sido adotada em vista dos Provimentos e Resoluções do
Conselho Nacional de Justiça. Acreditamos que a aprovação de uma lei prevendo
regra neste sentido “a partir da data de sua publicação” e dispensando a
completude do processo de habilitação, inclusive no que se refere aos proclamas
(art. 4º), somente geraria insegurança jurídica. Ora, se o processo de
habilitação terminará após o casamento, surgindo a revelação de impedimento
matrimonial, haveria a sua nulidade, com judicialização inevitável,
colocando-se em dúvida a validade de um dos atos mais solenes de nosso
ordenamento jurídico. Além disso, propagar como meio para a celebração do
casamento a videoconferência pode levar os nubentes a sequer refletirem
minimamente sobre o regime de bens.
Já no art. 5º o projeto pretende regular os casamentos in
articulo mortis durante o período de isolamento social. Outra falsa novidade.
Há cerca de 100 anos, à época da epidemia de gripe espanhola, o escritor Oswald
de Andrade recorreu ao instituto do casamento nuncupativo para unir-se em
matrimônio com Maria de Lourdes Castro Pontes, sua Daisy ou Miss Cyclone; que
morreu vitimada pela gripe espanhola em 1919 com apenas 19 anos de idade. Em
suas memórias, Oswald de Andrade fez o seguinte registro deste momento de sua
vida: “Caso-me in extremis. Separação de bens. Inutilmente. Dei mais do que
tinha aos seus”.1
O casamento nuncupativo parece ser um instituto que só
retorna à memória da maioria dos juristas em épocas tristes de epidemia. Mas,
não é uma novidade. Em relação ao projeto (art. 5º), parece-nos questionável a
presunção de que o portador do coronavírus encontra-se em iminente risco de
vida, o que justificaria a celebração do casamento in articulo mortis, nos
termos do art. 1.540 do Código Civil. Observe-se que esta forma de celebração
do casamento demanda a presença dos nubentes e de 6 (seis) testemunhas que
assistirão ao ato; o que evidentemente pode gerar aglomeração que deve ser
evitada neste período.
Porque não permitir a aplicação da regra do casamento em
caso de moléstia grave, nos termos do art. 1.539 do Código Civil? O que chama
mais atenção, contudo, é o fato de que o Código Civil já contempla medidas
adequadas a tais situações, quais sejam o casamento em caso de moléstia grave
(art. 1.539) e o casamento in extremis (art. 1.540).
Apesar de o legislador fixar prazos para que se proceda com
o registro do ato ou para que as testemunhas se apresentem, a doutrina e a
jurisprudência nacionais entendem que tais prazos são impróprios (ou prazos de
preclusão fraca), de modo que a perda do prazo não gera quaisquer consequências
jurídicas. Assim, qualquer interessado poderá requerer a homologação do ato
após o prazo de 10 previsto no art. 1.541 do Código Civil, inclusive os
próprios nubentes, se sobreviveram, seus filhos etc.2 A jurisprudência,
lastreada no princípio da interpretação favor matrimonii, também é no sentido
de flexibilizar tais formalidades nestes casos, reputando que tal prazo deve
ser considerado impróprio (verbi gratia: TJPR - 12ª C.Cível -
0023846-12.2016.8.16.0019 - Ponta Grossa - Rel. Desembargador Rogério Etzel -J.
04.09.29). É também esta a compreensão de San Tiago Dantas: “Em matéria de
casamento a omissão de formalidades extrínsecas só conduz à nulidade muito
raramente, dado o favor matrimonii com que se examinam todas as nulidades”.3
Já os artigos 6º e 7º preveem a possibilidade de revisão do
regime de convivência familiar durante o período de emergência sanitária, seja
em relação aos pais ou em relação aos avós. Aí também não há qualquer novidade,
porquanto inexistem dúvidas quanto à possibilidade de revisão em juízo dos
termos da guarda unilateral ou compartilhada fixada por decisão judicial. A
decisão que fixa a guarda constitui-se em hipótese ordinariamente relacionada a
“coisa julgada formal”, isto é: “quando a sentença só se torna imutável no âmbito
do processo em que foi proferida; ou seja, quando não há óbice a que, em outro
processo, se profira nova decisão com o mesmo objeto”.4 Ademais, tal
possibilidade e necessidade de adaptação do regime de convivência familiar a
circunstâncias não previstas tem por fundamento o princípio do melhor interesse
da criança, “um vetor do Direito Protetivo e deve ser observado na aplicação de
todas as regras a ele inerentes. Sua prevalência é tamanha que se confere ao
juiz o poder geral de cautela de modificar procedimentos e ordens de
preferência em nome do bem-estar do filho cuja guarda se disputa”5. Tratam-se
de supostas inovações, perfeitamente dispensáveis, cabendo ser anotado que o
Poder Judiciário no Estado de São Paulo, entre outros Tribunais Estaduais, tem
concedido tutelas de urgência em todas as circunstâncias previstas no projeto,
inclusive com a determinação de contatos virtuais, mas sempre avaliando caso a
caso qual deve ser a medida adequada.
Lado outro, apesar do art. 1º afirmar que a lei projetada
instituirá normas de caráter transitório, não há a indicação de termo final
para a vigência da norma. Tratar-se-ia de norma de caráter permanente? Um
excelente exemplo de contradictio in terminis!
Se a norma é de caráter transitório, espera-se que indique o
termo inicial e, mais ainda, o termo final de sua vigência; o que não se
verifica no projeto de lei sob análise, ainda mais diante da expressão genérica
usada na proposta que é pandemia causada pelo coronavírus covid-19, de
conflituosa interpretação.
Para além dos equívocos apontados, o projeto de lei em
questão também tem uma face cruel: pretende utilizar a pandemia como causa de
sacrifício prefixado aos que dependem de pensão alimentícia para sobreviver. A
única solução prevista no art. 8º do referido projeto é no sentido de suspender
parcialmente as prestações alimentícias e, pasmem (!), parcelar tais prestações
em até 6 (seis) parcelas, com vencimentos iniciando a partir de 01 de janeiro
de 2021. Não se pode olvidar que os alimentos são fixados em vista da
necessidade do credor da pensão alimentícia: “alimentos se concedem não ad
utilitatem, ou ad voluptatem, mas ad necessitatem”6. A proposta legislativa, ao
mesmo tempo em que não socorre o credor dos alimentos, prefixa o percentual de
30% como limite da redução, o que também não faz sentido porque pensão
alimentícia sujeita-se sempre ao binômio que inclui as necessidades do
alimentando e também as possibilidades do alimentante, que, de acordo com o
caso, podem ter sofrido tamanha redução que importem em diminuição do valor
superior a essa alíquota.
Recorde-se que, no que se refere ao alimentando, a Constituição Federal consagrou o princípio da
prioridade absoluta em seu art. 227, de modo que tal proposta constitui-se em
um ataque direto à Constituição, na medida em que coloca os interesses dos
devedores de alimentos acima dos interesses das crianças e adolescentes que
dependem de pensão alimentícia. Nesta toada, é digno de menção o posicionamento
da professora Marília Pedroso Xavier, que honra a Faculdade de Direito da
Universidade Federal Paraná, na coluna de direito civil atual: “Acredita-se que
sim, muitos devedores de alimentos sofrerão abalos significativos em suas
finanças. Porém, na difícil e complexa tarefa de eleger prioridades e de por
vezes escolher o que ‘cortar’ (para usar o conhecido dito popular), o que se
defende é que não se corte a carne dos filhos, vulneráveis e inocentes”.
Não cabe ao legislador inverter prioridades que já foram
fixadas pelo poder constituinte originário! Mais adequado seria pensar em um
diploma legislativo que adotasse soluções apropriadas ao cumprimento da
obrigação alimentar, diante da prisão domiciliar que vigora em época de
pandemia, tais como as relacionadas por esta articulista e por Lauane Braz A.
Volpe Camargo, em artigo publicado no portal da ADFAS: “Aí vão algumas
sugestões, como a suspensão dos serviços de celular, do acesso à internet, à TV
a cabo, ao Netflix e à Amazon etc. Evidentemente que os devedores de alimentos
não teriam tais acessos se estivessem no ambiente prisional”.
Enfim, conforme nossos Tribunais têm decidido, inclusive em
época de pandemia, cada caso é um caso, ainda mais em direito de família,
cabendo ao Poder Judiciário a análise individual sem soluções legislativas que
sejam mágicas ou inúteis.
Esperamos que o Senado Federal cumpra com o seu dever junto
ao povo brasileiro e determine imediatamente o arquivamento
desse projeto de lei.