A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n. 13.709/2018), em
seu artigo 65, previu como marco temporal para o início de sua vigência: (i) o
dia 28 de dezembro de 2018, no tocante aos artigos que dispõem sobre as funções
e a estrutura da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD); e (ii) 24
meses após a data da publicação da Lei, ocorrida em agosto de 2018, com relação
aos demais dispositivos.
O cenário, no entanto, foi recentemente alterado, a partir
da publicação da Medida Provisória n. 959/2020, em 29 de abril de 2020, que, em
seu artigo 4º, ampliou a vacatio legis da LGPD para 3 de maio de
2021.
A medida, em verdade, já era objeto de discussão em outras
inúmeras propostas legislativas semelhantes, datadas de antes mesmo da eclosão
da pandemia do novo coronavírus.
Em primeiro, o PL 5.762/2019[i], de autoria do Deputado Federal Carlos
Bezerra, estabeleceu o início da data de vigência da LGPD para 15 de agosto de
2022, baseando-se, sobretudo, em pesquisas que atestaram a baixa adesão das
empresas às regras dispostas na normativa. O projeto também apontou as
dificuldades e os custos envolvidos na implementação dos sistemas de segurança
da informação e de proteção de dados pessoais, destacando, também, que o
governo federal não criou a ANPD, entidade governamental que deverá nortear e
validar a implementação dos sistemas de compliance em matéria de
dados pessoais. No mesmo sentido é o PL 1.027/2020[ii], do Senador Otto de Alencar, que,
com razões similares, pretende a postergação da vigência para 22 de fevereiro
de 2022.
Em segundo, com intento de alteração legislativa um pouco
distinto — mas ainda defendendo o marco originário de vigência da
LGPD —, o PL 6.149/2019[iii], de autoria do
Deputado Federal Mário Heringer, apresenta sugestão de progressividade temporal
no enforcement punitivo da Lei. Em outras palavras, a moção
estabelece um critério de progressão no regime de definição do valor da multa,
que atingiria 100% do limite previsto no artigo 52 somente em agosto de 2022.
Deste modo, a prorrogação da LGPD não seria necessária, mas tão somente a
formatação das sanções regulatórias seria reajustada.
Por fim, em terceiro, conciliando interesses e propostas
debruçados sobre a matéria, o PL 1.179 de 2020[iv] (doravante RJET), propõe, em seu
artigo 25[v], que a vigência da LGPD ocorra em 1º de
janeiro de 2021 e o capítulo relativo às sanções alcance eficácia jurídica
somente em agosto de 2021, ou seja, um ano além do inicialmente previsto.
A alteração trazida pela MP n. 959/2020 — já
bastante debatida nas casas legislativas, em razão dos inúmeros projetos de lei
acima citados — insere-se neste movimento. Não se nega a importância
e a urgência da proteção de dados pessoais, sobretudo diante do protagonismo da
tecnologia em tempos de isolamento social, ou do uso de informações pessoais em
contextos de manipulação eleitoral. Contudo, a profunda crise econômica[vi] e social gerada pela pandemia, a
ausência de criação da ANPD, e, ainda, a necessidade urgente de canalizar
recursos do setor privado para manutenção de empregos são fatores que
redesenharam o cenário nacional.
No entanto, se a intenção do governo federal com a MP
959/2020 é, por um lado, legítima, por outro, atropela todo o debate das casas
legislativas — principalmente aquele ocorrido no bojo do RJET,
recentemente aprovado pelo Senado. Além disso, a MP peca ao permanecer inerte
quanto à criação da ANPD e, ainda, gera inexorável insegurança jurídica, pois,
caso não seja aprovada em até 120 dias (60 prorrogável por mais 60[vii]), perderá
eficácia e, consequentemente, será restabelecido o prazo de vigência
originariamente previsto na LGPD (agosto de 2020).
Por fim, o texto da MP, diferentemente da proposta estampada
no RJET, deixa de criar uma lacuna temporal adequada entre a eficácia jurídica
dos direitos e garantias previstos na LGPD e a efetiva aplicação das rígidas
sanções por ela trazidas. Na Califórnia, nos Estados Unidos, o Consumer
Privacy Act (normativa que disciplina a proteção de dados pessoais naquele
estado), já se encontra vigente desde janeiro deste ano, mas a fiscalização — ou enforcement,
de modo geral — permanece suspensa. Há, inclusive, pressão do setor
privado para manutenção desta suspensão enquanto perdurar a atual crise
epidemiológica[viii]. Esta
segmentação entre os prazos é altamente recomendável, sobretudo para que haja
um período de compreensão e implementação adequada da lei pelo setor privado,
contanto com a cooperação efetiva da ANPD.
Assim, é certo que a MP 959/2020, a despeito da sua aparente
boa intenção, se apresenta como um remédio inadequado, destemperado, e em
desalinho com toda a discussão já promovida nas casas legislativas, sendo
potencialmente apto a gerar insegurança jurídica. O governo, em verdade,
deveria canalizar seus esforços para a criação da ANPD e para incentivar a
aprovação do RJET na Câmara dos Deputados, fomentando a discussão sobre o tema
e a assimilação, pelo setor privado, da proteção de dados pessoais como um
mecanismo gerador de vantagem competitiva no mercado.
Fonte: Consultor Jurídico