As mudanças na vida da população em decorrência das
restrições impostas pelas medidas de enfrentamento da pandemia viral que assola
o globo têm despertado inúmeras reflexões sobre a aplicação dos institutos
jurídicos, abruptamente submetidos a um novo pano de fundo. Isto não quer dizer
que da nova realidade deva nascer um direito absolutamente novo, mas que se
deve pensar na adequação das antigas soluções aos novos problemas, na eventual
necessidade de soluções ainda não pensadas ou, talvez, reconhecer que algumas
relações apresentam maior imunidade à realidade transitória imposta pelo vírus.
Para além das questões contratuais, o funcionamento de todo
o sistema de direito privado desafia reflexões. Os prazos continuam a correr
enquanto não aprovado o Projeto de Lei que determina a suspensão de sua contagem
(PLS 1.179/20), os débitos são devidos, alimentos devem ser pagos, a
assistência material e imaterial deve ser prestada. Neste panorama, o presente
ensaio se volta a uma questão que poderia parecer secundária: temendo uma
fatalidade, seja na iminência mais ou menos real da finitude, como a pessoa
poderia realizar um testamento válido em tempos de isolamento social?
A elaboração do testamento no Direito brasileiro exige, em
regra, a presença de testemunhas da manifestação de última vontade. São duas testemunhas
na presença do tabelião, no caso do testamento público (art. 1.864, II, CC);
duas testemunhas do auto de aprovação no caso do testamento cerrado (art.
1.868, III, CC); e três testemunhas no caso do testamento particular (art.
1.876, §1º, CC).
Além disso, o nosso Código Civil admite um caso especial de
testamento particular. O artigo 1.879 prescreve que, “em circunstâncias
excepcionais declaradas na cédula, o testamento particular de próprio punho e
assinado pelo testador, sem testemunhas, poderá ser confirmado, a critério do
juiz”.
Não há dúvidas de que a declaração de pandemia por Covid-19
pela Organização Mundial da Saúde com a recomendação de isolamento social1 é
uma situação sem precedentes que configura circunstância especial que
justifica a iniciativa de elaborar um testamento sem a possibilidade das suas
formalidades de praxe. Uma pessoa que sente necessidade de deixar registradas
suas disposições de última vontade e está em situação de isolamento social pode
fazê-lo sem a necessidade de testemunhas.
A grande questão é que esta espécie de testamento poderá ser
confirmada a critério do juiz, o que passa a impressão de eventualidade.
Entende-se, entretanto, que este é um poder-dever do magistrado. Confirmados os
requisitos mínimos e evidenciado por outros elementos que se trata realmente da
vontade do testador, o exercício da autonomia da vontade deve ser prestigiado.
Ascensão ensina que “para respeitar a vontade do autor da
sucessão, há que fazer o quanto possível o aproveitamento do negócio, mesmo que
haja defeitos que o inquinem”2.
Sobre a questão, recentemente o Superior Tribunal de Justiça julgou que “em se
tratando de sucessão testamentária, o objetivo a ser alcançado é a preservação
da manifestação de última vontade do falecido, devendo as formalidades
previstas em lei serem examinadas à luz dessa diretriz máxima, sopesando-se,
sempre casuisticamente, se a ausência de uma delas é suficiente para
comprometer a validade do testamento em confronto com os demais elementos de
prova produzidos, sob pena de ser frustrado o real desejo do testador”3.
Na hipótese do art. 1.879, todavia, nem se trata de defeito
do negócio, mas de abrandamento dos requisitos para a validade do testamento em
decorrência de circunstâncias extraordinárias.
Caso se decida pela elaboração do testamento na modalidade
do art. 1.879, é necessário que o declarante tenha o cuidado de fazer constar
que o testamento foi elaborado no contexto da pandemia, anotando, se possível
as razões preponderantes de seu isolamento. Esta cautela é ainda mais relevante
quando não há risco de morte iminente, mas tão somente uma preocupação com
doença que avança.
Quanto à forma do testamento, a lei determina que seja feito
de próprio punho e assinado pelo testador. Este requisito do artigo 1.879 se
opõe à flexibilidade do artigo 1.876 que, tratando dos testamentos particulares
em geral, já admite que seja escrito de próprio punho ou mediante processo
mecânico. Ensina Zeno Veloso que “as circunstâncias excepcionais, que dão ideia
de urgência, imprevisibilidade, de fatos graves, podem ser as mais diversas: o
testador está no meio de uma enchente, de um incêndio, num lugar isolado, sem
comunicação, perdido; está no hospital, numa CTI, e sente a proximidade da
morte”4.
Neste sentido, ele defende a impossibilidade de meios mecânicos. Porém, em
casa, com acesso ao computador e à impressora, isolado pelo coronavírus, por
que o uso destas ferramentas, acompanhado da assinatura, obstaria a confirmação
do testamento? Nestes tempos de uso massivo do computador, embora a exigência
estrita da escrita à mão não seja coerente com a ampliação das possibilidades
de manifestação de última vontade, a exigência de forma deve ser compreendida
como garantia da efetividade dos direitos e manifestação da segurança jurídica.
A exigência de formas, em geral, não constitui restrição a direitos, mas se
vincula ao exercício regular dos direitos, não devendo ser afastada por simples
razão de comodidade.
A ausência de testemunhas não se justifica somente se o
declarante estiver completamente isolado e sem contato algum com outras
pessoas. Isto porque, mesmo que o testador esteja no convívio de sua família
nuclear durante a pandemia, há grandes chances de suas companhias sejam também
seus herdeiros e legatários, o que os impede de testemunhar5.
Caso não sejam nomeados, a condição de testemunha pode causar um conflito no
seio familiar em plena pandemia, além do desconforto geral que a própria
pretensão de testar pode causar em um momento de tensão como este.
Importante ainda chamar a atenção para o cuidado com os
elementos externos à declaração de última vontade. O testamento é ato formal e
solene e somente a vontade ali declarada pode ser confirmada e interpretada
pelo juiz. Contudo, atos que corroboram que o testamento foi elaborado e
assinado pelo declarante devem ser registrados e devem ser usados para auxiliar
na confirmação. A troca de e-mails e mensagens eletrônicas com amigos ou
advogado de confiança sobre o conteúdo do testamento, fotos da assinatura e do
local em que foi guardado o instrumento, além de vídeos complementares, podem
reforçar a legalidade e a legitimidade desta espécie de testamento.
Passada a pandemia e a recomendação de isolamento social, a
declaração excepcional, feita sem as formalidades legais dos testamentos
ordinários, perde a sua eficácia e, caso a vontade ali manifestada seja
definitiva, deve ser novamente expressada em uma das modalidades tradicionais
de testamento. Neste ponto, lembra-se das lições de Zeno Veloso, que defende
que o testamento em circunstâncias excepcionais se aproxima mais das formas especiais
que das ordinárias de testamento. Por isso, em analogia, devem ser aplicados os
artigos 1.891 e 1.895 do Código Civil, com o entendimento de que caducará o
testamento se o testador não morrer e nem declarar sua vontade na forma
ordinária nos 90 dias subsequentes do fim da situação atípica6.
Nesse sentido, ademais, é a previsão do Enunciado n. 611 da VII Jornada de
Direito Civil: “O testamento hológrafo simplificado, previsto no art. 1.879 do
Código Civil, perderá sua eficácia se, nos 90 dias subsequentes ao fim das
circunstâncias excepcionais que autorizaram a sua confecção, o disponente,
podendo fazê-lo, não testar por uma das formas testamentárias ordinárias”.
Entende-se que o art. 1.879 traz pronta uma solução jurídica
muito interessante para os que pretendem manifestar seus desejos em situação de
pandemia e isolamento social.
Registra-se que o PL 1.627/2020, de autoria da Senadora
Soraya Thronicke, que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório
das relações jurídicas de Direito de Família e das Sucessões no período da
pandemia causada pelo coronavírus SARS-CoV2 (Covid-19), foi retirado de tramitação,
em caráter definitivo, a pedido da autora7.
Havia, nessa proposição, a sugestão de que os testamentos particulares poderiam
ser escritos ou gravados, desde que gravadas imagens e voz do testador e das
testemunhas, quando exigidas, por sistema digital de som e imagem. Ainda, anota
que, sob pena de caducar, o testamento deveria ser confirmado pelo testador na presença
de três testemunhas em até 90 dias contados da data em que cessarem as
determinações emanadas das autoridades públicas impositivas de isolamento
social ou quarentena. Por fim, o projeto de lei considerava o prazo de 90 dias
do fim da pandemia para a confirmação das declarações feitas em isolamento.
Em resumo, o instrumento posto em lei, embora possa ser
aprimorado pelo legislador, já é capaz de resolver a questão inicial e
propiciar às pessoas a realização de testamento válido, com flexibilização formal
extraordinária.
Fonte: Consultor Jurídico