Chegaram ao fim os
acalorados debates sobre a vigência da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais
(LGPD), para o alívio do meio empresarial. Depois de algumas iniciativas
legislativas nesse sentido, a questão foi finalmente resolvida pela Medida
Provisória 959, publicada em 29 de abril de 2020) em edição extra do Diário
Oficial da União, determinando o adiamento de vigência da LGPD para 3 de maio
de 2021. Pois bem. Superado esse impasse do adiamento, ainda restam pontos de
preocupação durante esse período de inatividade da LGPD.
Esse adiamento
certamente será comemorado por muitos. Afinal, a adequação à LGPD exige uma
verdadeira revolução tecnológica e cultural no meio empresarial. A concepção de
que os dados pessoais do seu banco de dados, na verdade, não são seus, mas de
terceiros, ainda causa muita confusão. Atender as restrições de uso dessas
informações na forma imposta pela LGPD implica muitas vezes em uma total
revisão e reestruturação de processos do negócio. A dinâmica de muitas empresas
deverá ser adaptada para adequação à LGPD, e isso custará caro.
Esse adiamento,
contudo, não significa que há espaço para repensarmos a LGPD. A proteção dos
dados pessoais é uma realidade mundial e tende a se intensificar
proporcionalmente à evolução das nossas interações no ambiente digital. Não há
dúvidas de que a pandemia do COVID-19 acelerou o processo de transformação
digital em muitas empresas. Durante a quarentena, o consumo de bens e serviços
migrou majoritariamente para o ambiente digital e essa tendência talvez se
manterá após passarmos por esse período de incertezas. Podemos estimar que o
digital passará a ser o padrão das relações empresariais, e essa perspectiva
implica em assumirmos um abrupto crescimento no fluxo de dados pessoais entre
empresas espalhadas por todo mundo.
Nesse contexto, há
até uma certa contradição nesse adiamento da LGPD, justamente no momento em que
há uma intensificação de fluxo de dados pessoais por conta das restrições impostas
pela crise sanitária da COVID-19. Afinal, com o aumento dessas interações
digitais, há também um aumento considerável dos casos de fraudes eletrônicas,
vazamentos de dados, dentre outras situações que têm sido objeto de
fiscalização e autuação por diversas autoridades públicas. A verdade é que o
adiamento da LGPD traz mais riscos do que benefícios.
Imagine o cenário em
que uma empresa sofra um episódio de vazamento de dados pessoais. Com base na
LGPD, ela deveria comunicar a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD)
sobre o evento, adotar medidas de mitigação de danos e, eventualmente, sofrer
sanções. Com o adiamento da LGPD, a empresa está, em princípio, livre das
sanções e das medidas. Apesar disso, esse evento poderá, ainda assim, ser
objeto de fiscalização e autuação por diversas autoridades públicas, como
Ministério Público (Federal, Distrital e Estaduais), órgãos de defesa do
consumidor, agências reguladoras e etc, simplesmente por que não temos
atualmente uma centralização no controle das questões que envolvem proteção de
dados pessoais (o que seria resolvido pela vigência da LGPD). Nesse cenário
atual, há inclusive o risco de autuações múltiplas e simultâneas por diversas
autoridades em razão de um único evento, o que certamente trará altos custos e
muita dor de cabeça.
Desde meados de
2018, há recorrentes notícias sobre vazamento de dados pessoais e atuação de
diversas autoridade públicas no Brasil. A ausência, de fato, de uma autoridade
nacional (ANPD) no Brasil permite que outras autoridades públicas assumam esse
papel e atuem de forma arbitrária, sem um efetivo controle ou orientação. Há,
inclusive, notícia de empresas que celebraram termos de ajuste de conduta com
fundamento na LGPD, antes mesmo que ela tenha entrado em vigência!
Outro ponto
importante é o fato de que o Brasil permanecerá sendo considerado como um
ambiente “hostil” devido ao baixo nível de proteção de dados pessoais em
comparação ao padrão internacional. Isso significa que empresas situadas no
Brasil, ou que realizam operações de tratamento de dados pessoais (ex.:
armazenamento, compartilhamento e transferência) no Brasil, terão mais
dificuldade em manter e desenvolver relacionamentos com fornecedores e clientes
internacionais.
Importante ressaltar
que empresas situadas na União Europeia, em algumas regiões dos Estados Unidos
da América (“EUA”) e em outros países com nível de proteção de dados pessoais
elevado, estão em constante fiscalização e vigilância das respectivas
autoridades nacionais de proteção de dados pessoais. A situação corriqueira de
troca de informações entre empresas (transferência internacional de dados
pessoais) sujeitas à regras desiguais de proteção de dados pessoais pode ser
objeto de autuação e aplicação de penalidades pelas autoridades nacionais. Isso
significa que empresas situadas nessas regiões com nível elevado de proteção de
dados têm maior risco ao interagir com empresas brasileiras, e essa situação
certamente será refletida, por exemplo, na alocação de riscos durante a
negociação e celebração de contratos, aumentando os custos da transação em
desfavor dos brasileiros. O adiamento da vigência da LGPD infelizmente
prorrogará essa situação.
Esse período de
prorrogação da vigência da LGPD poderá ser bem aproveitado pelas empresas
brasileiras para buscarem soluções de adequação à norma, conscientes de que, ao
menos por enquanto, estão protegidos das pesadas sanções previstas na LGPD.
Ainda assim, eventos de violação de dados pessoais serão mais frequentes em
razão da aceleração da transformação digital das empresas e, portanto, o risco
de autuação de diversas autoridades públicas aumentará. Uma adequação imediata
à LGPD, independentemente do adiamento de sua vigência, trará mais estabilidade
e competitividade no relacionamento com empresas situadas na União Europeia e
EUA.
Fonte: Blog
Fausto Macedo Estadão