Procedimento de dúvida para decisões interlocutórias é
cumprir com o devido processo legal administrativo
Tratando do processamento da usucapião extrajudicial, o § 7º
do art. 216-A da Lei 6015/1973 (Lei de Registros Públicos – LRP) diz que: “em
qualquer caso, é lícito ao interessado suscitar o procedimento de dúvida, nos
termos desta lei”. O art. 23 do Provimento 65/20017 do CNJ reproduz o
mandamento.
O problema é, o que significa em qualquer caso? Mais
precisamente, em que momento o interessado pode suscitar a dúvida contra
decisões interlocutórias (aquelas que exigem/inadmitem documentação; ou que
indeferem impugnações de interessados). O tema não está pacificado na doutrina.
A divergência doutrinária está estabelecida. Mello (2018)
diz que não ignora os posicionamentos favoráveis para que o procedimento de
dúvida seja processado e julgado só depois de decisão final (com ou sem decisão
de mérito), pois assim estaria a se garantir maior celeridade ao instituto da
usucapião extrajudicial, evitando constantes paralisações da marcha processual.
Todavia sua posição é outra. Defende que o procedimento de
dúvida pode ser interposto antes de decisão final. Fazendo uma interpretação
literal do que diz o §7º do art. 216-A da LPR), afirma: “ora, em qualquer caso
significa em qualquer hipótese de dissenso entre o que o oficial decide e o que
o interessado pretende obter.” (2018, p. 345).
Entendimento que tende a convergir com esse de Mello (2018)
é o de Marquesi (2018).Tendente porque a convergência é relativa. Por um lado,
Marquesi (2018) concorda que o procedimento de dúvida pode ser protocolado
antes de decisão terminativa, logo que prolatada a decisão pelo oficial. Por
outro lado, ele diverge de Mello (2018) afirmando que o procedimento de dúvida
não seria admitido depois de decisão final do oficial registrador.
Mesmo com a pontual divergência demonstrada, que não deixa
de ser muito importante, tanto Mello (2018) quanto Marquesi (2018) entendem
que, caso o interessado discorde da decisão interlocutória prolatada pelo
oficial registral, poderá requerer, imediatamente, o procedimento da dúvida.
Em sentido contrário, Couto (2019) é peremptório em sua
posição. Para ele, qualquer decisão do oficial registrador só pode ser
questionada via procedimento de dúvida depois de decisão terminativa (com ou
sem decisão de mérito).
Portanto parece bem claro que a divergência está bem
estabelecida na doutrina que cuida do tema. Defendo o entendimento majoritário
apresentado nas doutrinas de Mello (2018) e Marquesi (2018).
O § 7º do art. 216-A da LRP autoriza a interposição de
procedimento de dúvida logo após a decisão interlocutória dada pelo oficial
registral.
Ao dizer, em qualquer caso, a lei está ampliando
possiblidades processuais, e não o contrário. Sendo assim, decisões que
exigem/inadmitem documentação; ou que indeferem impugnações de interessados,
podem ser imediatamente questionadas por meio do procedimento de dúvida.
A tese que defende que o § 7º do art. 216-A não é expresso o
suficiente para permitir a interposição do procedimento da dúvida registral
após decisão interlocutória do registrador, a ponto de só se admiti-la depois
de decisão terminativa, não se sustenta quando aplicamos o método sistemático
de interpretação do Direito. Senão, vejamos.
O caput do art. 198 da LRP, que trata exclusivamente do
procedimento da dúvida registral, diz o seguinte: “havendo exigência a ser
satisfeita, o oficial indicá-la-á por escrito. Não se conformando o
apresentante com a exigência do oficial, ou não a podendo satisfazer, será o
título, a seu requerimento e com a declaração de dúvida, remetido ao juízo
competente para dirimi-la.”
O § 7º do art. 216-A da mesma lei, da LRP, diz que o procedimento
de dúvida poderá ser suscitado em qualquer caso. Iluminado pelo art. 198
supramencionado, torna-se ainda mais claro que esse qualquer caso é, também, o
questionamento de decisões interlocutórias logo que prolatadas, antes de
decisão terminativa.
O caput do art. 198 é transparente em admitir o recurso de
dúvida para questionar exigências do oficial logo que feitas. Exigência não é
decisão que encerra o processo. Exigência é decisão interlocutória, pois é um
enunciado que resolve questão incidental. O cumprimento ou descumprimento desse
enunciado refletirá diretamente no conteúdo da decisão final.
Portanto, se numa interpretação restrita do § 7º do art.
216-A da LPR não se puder compreender pela possibilidade do procedimento de
dúvida logo após a prolação da decisão interlocutória do registrador, por
possível falta de clareza da regra nesse sentido, ao se adotar uma
interpretação sistemática, iluminando a possível obscuridade dessa regra com o
raio de luz do art. 198 da LRP, a compreensão se expande e passa admitir a
possiblidade do procedimento de dúvida logo após a prolação da decisão
interlocutória.
Um caso ocorrido na Comarca de Juiz de Fora-MG ajuda na
compreensão do problema. Antes de decisão terminativa, o registrador, a pedido
do requerente, suscitou a dúvida ao juízo de primeiro grau apresentando suas
razões e fundamentos favoráveis à impossibilidade de processamento de usucapião
de imóvel sem matrícula ou transcrição.
O juízo sentenciou que, com fundamento no Provimento 65/2017
do CNJ, era sim possível, desde que se provasse por meio de certidões a
inexistência da matrícula ou transcrição. A usucapiente, querendo que o
processamento se desse sem as certidões, apelou e restou vencida (AC
1.0000.19.090075-3/001). O TJMG manteve a decisão do juiz a quo.
Percebe-se que o processo poderia ter se encerrado no que
Couto (2019) considera como a terceira etapa do procedimento (análise formal
dos documentos). O registrador teria gerado nota devolutiva encerrando o
processo por falta de documentação, ou seja, desídia do requerente. E de forma
desnecessária.
Tudo que ocorreu teria ocorrido (procedimento de dúvida;
sentença e apelação), mas com dois atos a mais (encerramento do procedimento da
usucapião extrajudicial com nota devolutiva e, como consequência do entendimento
do juiz de primeiro grau e do TJMG, reabertura do processo para que a
usucapiente apresentasse a respectiva certidão).
Diante de todo o exposto conclui-se que admitir o
procedimento de dúvida para decisões interlocutórias antes de decisão terminativa
é cumprir com o devido processo legal administrativo, pois atenderá a
formalidade garantida na lei, e garantirá segurança jurídica, pois estará
estabelecido uma previsibilidade essencial para a legítima condução dos
processos de usucapião extrajudicial.
Fontes
COUTO, Marcello de Rezende Campos Marinho. Usucapião
Extrajudicial. 2. Ed. Salvador: Editora JusPodium, 2019.
MARQUESI, Roberto Wagner. Usucapião extrajudicial. 2. ed.
Curitiba: Juruá, 2018.
MELLO, Henrique Ferraz Corrêa de. Usucapião Extrajudicial.
2. ed. São Paulo. YK Editora, 2018.
NOBRE, Francisco José Barbosa. Manual de usucapião
extrajudicial: de acordo com a Lei nº 13465/2017, incluindo comentários ao
Provimento nº 65/2017 do CNJ. 1. ed. Ananindeua: Itacaiúnas, 2018.
Fonte: Jota