Diversos artigos recentes mostraram as preocupações que
estão sendo debatidas com o adiamento da vigência da Lei Geral de Proteção de
Dados (LGPD), programada inicialmente para o correr em abril deste ano.
A maior parte dessas preocupações decorre do fato de que o
Brasil é um dos países mais atrasados na codificação da proteção de dados
pessoais, o que pode aumentar a exposição dos usuários a diversos problemas,
como a coleta de dados feita de forma desautorizada; o compartilhamento de
dados sem autorização e sem respeito à finalidade inicialmente informada ao
usuário; o tratamento discriminatório, entre outros.
Além disso, os usuários vão sofrer por mais algum tempo com
a ausência de fiscalização, auditorias e sanções quando do tratamento ilegal de
dados pessoais, considerando-se que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados
sequer teve sua existência aprovada ainda.
Dada a relevância de leis que protejam os usuários, e
considerando, nas palavras de Bruno Bioni, que "a proteção dos dados
pessoais é instrumental para que a pessoa possa livremente desenvolver a sua
personalidade" [1], como ficará a proteção de dados
pessoais até 2021 (se não ocorrer um novo adiamento)?
Para responder essa pergunta, deve-se ter em mente que o
Brasil possui outros diplomas que oferecem garantias mínimas aos usuários em
relação à exploração de seus dados pessoais. Veja: não se ignora a extrema
relevância (e urgência) da LGPD, que representou um marco jurídico
paradigmático, inserido novas discussões e parâmetros em relação ao uso de
dados pessoais associadas às diversas discussões sobre a legalidade de atuação
de diversos entes distintos. Mas, ao mesmo tempo, é necessário considerar que
existem outros mecanismos legais que, no vácuo legal, podem assegurar ao
usuário direitos mínimos em relação aos seus dados.
Como ressaltado pelo ministro Marco Aurélio Bellizze e por
Isabela Maria Pereira Lopes em oportunidade recente, a LGPD se insere em um
amplo contexto jurídico já existente de proteção da privacidade e dos dados
pessoais, o qual vinha se aperfeiçoando e culminou na edição de um diploma
forte e coeso com os valores constitucionais atualmente vigentes [2].
O ápice desse contexto jurídico, por óbvio, é a Constituição
Federal, que veda, de forma expressa, qualquer tratamento discriminatório por
parte de qualquer agente. Assim, a simples leitura do texto constitucional
permite concluir que as empresas que tratam dados pessoais não podem se valer
da exploração de bases de dados, das análises preditivas feitas por sistemas
automatizados, tampouco do comércio de dados, para tratarem de forma
diferenciada determinados grupos de pessoas, causando-lhes prejuízo sem
qualquer justificativa.
A Constituição obriga, portanto, dever de cuidado em relação
ao uso de dados com potencial discriminatório e que podem ser utilizados em
prejuízo de grupos minoritários. Assim, desde o uso de softwares para
contratação de empregados, até as análises de crédito, todo o tratamento de
dados deve ser feito levando-se em consideração a vedação ao tratamento
discriminatório.
Também a Constituição oferece o direito de uso do habeas
data como mecanismo possível de ser utilizado por um usuário para
controlar as informações constantes em bases de dados a seu respeito. Através
desse instrumento, é possível ter acesso aos dados cadastrados em nome de um
usuário, além de ser possível retificar informações incorretas ou dados não
verídicos constantes em determinada base [3].
Nessa mesma linha, tem-se que o Código Civil estabelece
obrigação de boa-fé como norteadora de todos os contratos e relações jurídicas.
Assim, existente um termo de uso dos dados pessoais quando da contratação do
serviço, e tendo sido informada uma finalidade específica para a coleta e
tratamento daqueles dados pessoais, têm os agentes a obrigação de obedecerem
esse termo, agindo de boa-fé, ainda que se possa reconhecer eventual
abusividade na contratação feita por adesão.
A Lei nº 12.414/2011, que dispõe sobre o uso de bancos de
dados para formação de históricos de crédito, também é um diploma relevante
para ser considerado na ausência da LGPD. Esse diploma veda o uso de
informações excessivas para formação de históricos de crédito — ou seja,
informações que não se relacionem com a capacidade de auferir as condições de
pagamento de um consumidor —, bem como de informações sensíveis — que
são aquelas cujo uso pode ensejar discriminação de gênero, raça, classe social,
entre outros.
Também essa Lei dos Bancos de Dados assegura ao usuário o
direito de acesso das informações constantes em seu cadastro, inclusive seu
histórico e como foram firmadas as conclusões a seu respeito. Dessa forma, os
princípios de transparência e de respeito à finalidade, que são tão relevantes
na LGPD, já se encontram presentes, ao menos para o contexto das análises de crédito.
Também pode-se perceber que os usuários detêm o controle da exploração de seus
dados pessoais, e podem se valer dessa lei para assegurar que seu uso não se
dará de forma abusiva ou prejudicial [4].
Recentemente, inclusive, a ministra Nancy Andrighi, da
Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, proferiu decisão [5] em que decidiu pela obrigatoriedade
do agente explorador dos dados pessoais de comunicar o usuário sobre o
compartilhamento das informações produzidas a seu respeito, derivando essa
obrigação da Lei dos Bancos de Dados e do Código de Defesa do Consumidor, que
dispõe, em seu artigo 43, que "o consumidor terá acesso às informações
existentes" sobre ele.
Como asseverado no voto condutor, "em qualquer
circunstância, tem o consumidor o direito de tomar conhecimento de que
informações a seu respeito estão sendo arquivadas/comercializadas por terceiro,
sem a sua autorização".
Essa modificação é inovadora e também fundamental para
ajudar a suprir as lacunas que postergação do início de vigência LGPD deixou,
não só porque aumenta a capacidade do usuário de controlar o uso de seus dados
pessoais, mas também porque reforça a existência de uma obrigação de
transparência em relação ao compartilhamento de conteúdo, mesmo diante da
inexistência de um diploma específico para proteção dos dados pessoais.
Um outro mecanismo que reforça o controle do usuário em
relação ao tratamento e compartilhamento de seus dados pessoais diz
respeito ao direito de explicação e oposição em relação às decisões
automatizadas. Essa disposição, que será reforçada pela LGPD, já está presente
no Marco Civil da Internet (Lei nº 12.985/2014), ainda que de forma limitada ao
pedido de explicações sobre justificativa, legalidade e previsão
contratual [6]. Assim, mesmo de forma restrita, o
usuário pode se valer desse mecanismo para ter acesso aos critérios que
fundamentam uma decisão tomada, essencialmente, pelo tratamento massivo de
dados pessoais.
Além desses diplomas, existem outros julgados relevantes
para orientar os cuidados dos agentes em relação à exploração dos dados
pessoais enquanto a LGPD não estiver valendo.
Os próprios tribunais, e mais especificamente o Superior
Tribunal de Justiça, em uma postura sempre progressista e frequentemente
favorável ao usuário, resolviam questões relacionadas aos dados pessoais desde
os anos 90, quando o STJ primeiramente destacou a importância do habeas
data para a temática da proteção de dados pessoais através do acesso ao
conteúdo por parte do usuário [7].
Além disso, e como bem ressalvado pelo ministro Villas Bôas
Cueva em artigo recente, ainda em 1995 o ministro Ruy Rosado Aguiar já discutia
a necessidade de se garantir o direito à autodeterminação afirmativa através da
limitação do compartilhamento de dados sem a autorização do usuário e, em 2001,
a ministra Eliana Calmon adotou entendimento semelhante para garantir o direito
à privacidade e à proteção de dados pessoais. Ou seja, o direito de controlar a
extensão de sua própria personalidade no mundo virtual, e de deter controle
sobre seus dados pessoais já é uma realidade reconhecida pelos tribunais e que
impõe aos agentes de mercado cuidados especiais, mesmo sem a LGPD.
Assim, considerando que alguns dos princípios mais
relevantes da LGPD — como a vedação ao tratamento discriminatório, o direito de
transparência, o controle do usuário sobre seus dados e o respeito à finalidade
no tratamento de dados pessoais — já estão inseridos em diplomas legais, além
de já terem sido reconhecidos pelos tribunais, é importante que se mantenha
vivo o espírito de conformidade que vinha sendo cultivado quando se esperava a
vigência da LGPD para 2020, prestigiando-se a proteção dos dados pessoais até,
se tudo der certo, 2021.
Fonte: Consultor Jurídico