No final de abril, circulou na internet um vídeo no qual o
diretor-geral da OMS alertava para o risco de infecção pela Covid-19 em
máscaras importadas da China e da Índia. Era um comunicado falso, e todos
aqueles que clicaram nos links com promessas de maiores esclarecimentos tiveram
dados pessoais copiados e usados para fraudes diversas.
A pandemia nos deixou mais sozinhos, mas mais expostos,
porque mais conectados. Enquanto isolados participamos de redes sociais,
encontros virtuais e inúmeros outros eventos cuja rapidez com que se instalaram
em nossas vidas não nos deu tempo sequer para nomeá-los em português: webinars,
conference calls e congêneres.
Essa virtualização da vida tem impactos no campo criminal.
Os delitos que exigem a vulnerabilidade física da vítima diminuíram. Em março
foram registrados 13.917 furtos a menos em São Paulo — uma queda de quase 30% —
resultado da falta de pessoas nas ruas e de casas vazias propícias para o
crime. Da mesma forma diminuiu o tráfico de drogas, diante da ausência de
locais físicos para o comércio e da dificuldade de obtenção da matéria-prima para
a fabricação de compostos ilícitos. Por outro lado, as agressões a mulheres
cresceram 44,9% e os feminicídios aumentaram 46,2%, revelando que o ser humano
com o qual coabitamos pode ser mais letal que qualquer vírus.1
Mas, para além das agressões físicas, a transferência de
parte da vida pessoal e profissional para o mundo digital abriu novas
oportunidades para delitos tecnológicos e para a lavagem de dinheiro. Em
relatório divulgado este mês o GAFI alertou para o aumento de fraudes,
cibercrimes, desvios de recursos públicos e outros delitos em tempos de
pandemia2.
As razões parecem claras. O isolamento impõe que compras,
pagamentos e transferências sejam virtuais, com o manejo de senhas, códigos e
links com os quais temos pouca familiaridade. A insegurança e o desconhecimento
destes mecanismos de aquisição e transferência virtual de bens nos tornam
vítimas em potencial para os mais variados golpes, como páginas falsas de
bancos e de lojas na internet, muitas com anúncios de promoções imperdíveis,
acesso a crédito fácil ou ofertas de bens de primeira necessidade a um toque ou
clique de distância.
A ansiedade e a solidariedade são terrenos férteis para o
estelionato e outros delitos. A angústia com a doença leva à crença imediata em
sites e mensagens com ofertas de máscaras, remédios, testes e outros insumos. A
vontade de ajudar produz o mesmo efeito diante de pedidos de recursos por parte
de ONGs e institutos de ajuda, sem que alguns cuidados com a verificação da
existência ou da credibilidade das entidades sejam tomados. O GAFI identificou,
em vários países, e-mails enviados em nome da Organização Mundial de Saúde que
em verdade direcionavam os destinatários a links maliciosos, como no caso
mencionado no inicio deste artigo.
Esse ambiente virtual também facilita a lavagem de
dinheiro. Os valores desviados são convertidos em ativos digitais, e por
rápidas transações em diversas plataformas e países, esses recursos são
eficazmente dissimulados, tornando difícil seu rastreamento pelos meios tradicionais.
A prevenção e a repressão a tais crimes é um desafio
considerável, ainda mais diante da escassez de recursos para a segurança em
tempos nos quais gastos com saúde e assistência social têm — e devem ter —
prioridade.
Mas há iniciativas possíveis. O GAFI recomenda que
autoridades ampliem interações com os setores privados mais sensíveis aos
ciberataques e à lavagem de dinheiro, como bancos, plataformas de negociação de
ativos digitais, corretoras e outros para identificar falhas em sistemas e definir
estratégias de combate a tais crimes. Sugere também a adoção de sistemas de
identidade digital, que além de permitir o acesso a serviços, ao sistema
bancário e a benefícios sociais por um número maior de pessoas, evitam fraudes
comuns na seara da ocultação de bens, pois substituem a obsoleta conferência
documental por formas mais eficazes de cadastro e acompanhamento de operações e
clientes.
Por fim, recomenda a capacitação de autoridades em técnicas
de rastreamento de ativos digitais, uma forma eficaz para identificar o caminho
dos recursos e as formas mais comuns de lavagem de dinheiro. Se o uso do mundo
digital facilita a conversão rápida de bens ilícitos em ativos digitais
diversos, esse mesmo ambiente dificulta o encobrimento do rastro do dinheiro ao
trabalhar com tecnologias de cadeia de dados, que permitem identificar cada
passo da dissimulação, por mais sofisticada que seja.
Enfim, há caminhos a seguir. Se a criatividade humana
desenvolve novas formas de lavagem de dinheiro, essa mesma inteligência
criativa é capaz de imaginar instrumentos de prevenção e controle. Mais que
investimentos — escassos no momento — é preciso de uma dose de boa vontade
política e a percepção de que combater a lavagem de dinheiro é uma forma de
garantir que recursos importantes e necessários não sejam dispersos pelo
submundo, mas usados para o urgente combate de uma doença que aflige a todas e
todos.
Fonte: Consultor Jurídico