Os tempos atuais são de crise teórica e prática da fé
pública extrajudicial
Sabe-se da importância da fé pública – atributo delegado
pela soberania política nas instituições das notas e dos registros –,
importância que a doutrina sempre reconheceu, até por, historicamente, não se
caracterizar o notariado latino antes da delegação desta potestade de fé
aos scribæ medievos, a partir dos séculos XII e XIII.
É dizer que, na Antiguidade, no Direito justinianeu e na
Alta medieval, exatamente à míngua da potestade de dação da fé pública, não
havia, ainda, o notário do tipo latino, mas somente o escriba seu ancestral.
Era este, é bem verdade, nutrido de uma trajetória de probidade (lembremo-nos
aqui, brevitatis causa, dos juramentos notariais cuja origem remonta ao
início do século IX) e de um constante e paulatino aprendizado, mediante a
experiência das artes do trivium, mormente da retórica, a cujo estudo e
prática tiveram os antigos escrivães de, com resignação, recorrer, desde que
Justiniano, por meio da Constituição Omnem (16/12/533), restringiu em
muito os lugares onde se poderia, então, estudar o Direito.
Embora não seja uma instituição criada pelo Estado, mas,
isto sim, predominantemente uma instituição comunitária, social, em muito
tributária de gestação anterior ao concurso do poder político, o notariado
latino não se completa em sua configuração sem que se acrescente
à auctoritas comunal a potestas da fé pública que lhe foi delegada
pelo poder político. Desta maneira, o elemento publicístico fundamental na
caracterização do notário latino é o da dação da fé pública, a que se pode
agregar a tarefa de controle da legalidade, ao passo em que seus elementos
privatísticos – ou, talvez melhor, comunitários – podem resumir-se no caráter
liberal de sua profissão jurídica.
Os tempos atuais são de crise teórica e prática da fé
pública extrajudicial.
Parecerá um tanto surpreendente, neste quadro, e dada a
vistosa relevância que se deve apontar no status público das funções
do notário e do registrador – na medida em que, seguindo um modo simplificado
de dizer, são "testemunhas qualificadas", a ponto de suas asserções
só perderem em via jurisdicional a presunção de que exatas e integrais (cf., a
propósito, o art. 427 do Código nacional de Processo Civil) –, mas,
repete-se: parecerá um tanto surpreendente que a atual Lei brasileira de
Registros Públicos, a 6.015/1973 (de 31/12), nenhuma
referência contenha ao termo "fé pública" extrajudicial
(tampouco esse termo se mencionou no regulamento registral de 1939 – decreto 4.857, de 9/11/1939, ou em um seu
antecedente, o decreto 370, de 2/5/1890, ou, em mais remota
normativa de registro, a lei imperial 1.237, de 24/9/1864).
Também silentes em nomeá-la o Código
Civil brasileiro de 1916 e a lei
7.433/1985 (de 18/12; a frequentemente apodada "lei das
escrituras"), a fé pública foi referida, entretanto, em três de nossas
leis civis mais recentes: no Código Civil de 2002 (art. 215), no Código de
Processo Civil de 2015 (art. 427) e, antes, no art. 3º da lei 8.935/1994 (de 18/11: "Notário,
ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do
direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade
notarial e de registro").
Ainda que a carência de robustez de textos normativos muito
haja influído negativamente no tratamento doutrinário que se tem dado entre nós
ao tema da fé pública extrajudicial – porque, por mais que estejamos nos
tempos teóricos de um delenda Kelsen, há um dominante positivismo
implícito em amplo número de nossos doutrinadores (a que se junta o positivismo
sociológico do ativismo jurisdicional e judicial-administrativo) –, não se
podem ignorar algumas incursões relevantes neste capítulo, desde o excelente
(mas incompleto) Órgãos da fé pública, de João Mendes Júnior, até a, sem
embargo de concisa, substancial incursão de Walter Ceneviva, em seu Lei
dos notários e dos registradores comentada, em que esta especial modalidade de
fé pública, a extrajudiciária, conceitua-se tanto certeza (aspecto subjetivo)
quanto verdade (aspecto objetivo) do que em seus livros oficiais assentam os
notários e registradores, bem assim quanto ao que eles certificam, no exercício
de suas funções.
Os tempos atuais são de crise teórica e prática da fé
pública extrajudicial. Há quem diga até mesmo tratar-se de anarquia funcional,
tamanha a confusão que neste assunto se estabeleceu, quer de fato, quer num
plano normativo, e não só entre os diferentes modos de fé extrajudicial, mas
também em relação a seus vários efeitos endógenos. Determinações
judiciário-administrativas de reconhecimento de firma em cartórios de registro;
autorizações para que títulos judiciais sejam extraídos pelo extrajudicial;
tabelionização do judiciário substituinte do notariado em matéria de
inventários, separação e divórcio; certificações de escrivães judiciais
relativas a fatos estranhos aos livros e processos de seus ofícios; ruptura do
princípio da imediatidade notarial, etc. – eis aí um conjunto de episódios que
anuncia a confusão e prognostica problemas avistavelmente graves.
Fazem falta, para logo, algumas distinções modais. A fé
notarial e a registrária possuem alguns aspectos comuns – assim, a fé de
confirmação (fides confirmationis) e a fé de confecção (fides confectionis) que
dão espeque às certificações de assentos lançados em seus livros ou de
processos constantes de seus correspondentes ofícios. Mas a fé pública
notarial apresenta duas outras dimensões que não se encontram na fé pública do
registrador: a fides cognitionis (i.e., a fé de conhecimento) e
a fides notariorum stricto sensu, que é a fé mais típica dos notários,
moldada, ainda que com alguma insuficiência, ao aforismo clássico de visu
et auditu suis sensibus (do que se vê e se ouve pelos próprios sentidos,
vale dizer, pela visão e audição).
Para que se tenha um exemplo atual da anarquia entre nós
estabelecida quanto a estas duas modalidades, consideremos o fenômeno da
"notarialização" (passe o neologismo) do registrador no processo
extrajudicial de usucapião, objeto do art. 1.071 do vigente Código de Processo
Civil (ou art. 216-A da lei 6.015, de 1973). Essa notarialização do
registrador é propiciada por dois motivos: um, o de que ele próprio,
registrador, gera o título que vai registrar (e formar título no extrajudicial,
seja no aspecto propriamente jurídico, seja no plano documentário, é
próprio do tabelião de notas e não do registrador, ressalvada a hipótese de
certidões); segundo, porque, dando-se o caso da necessidade de vistoria do
imóvel ou de audiência de testemunhas pelo registrador, ali haverá possível
exercício da fides notariorum ex visu et auditu, e quanto à audiência,
além desta modalidade de fé, também a da fides cognitionis.
De par com isto, esta relativamente moderna instituição do
processo extrajudicial de usucapião trouxe à tona um problema que exige detida
consideração: o discrimen das partes da ata notarial e, nelas, a
distinção entre o que atrai a eficácia analítica e a eficácia sintética da fé
pública notarial. Como se diz em bom português, "é assunto para mais de
metro", a cujo estudo se convocam os doutrinadores de boa vontade.
Fonte: Migalhas