Informação, privacidade, poder e democracia têm sido temas
recorrentes no Brasil do COVID-19. Desde abril decisões judiciais, medidas
governamentais, propostas legislativas aprovadas pelo Parlamento e inúmeros
debates têm colocado o tema em destaque na cena nacional, a partir de disputas
institucionais e judiciais. Esta semana, por exemplo, vence o prazo para o veto
do PL n° 1179/2020, que muda a data de vigência da Lei Geral de Proteção de
Dados (Lei n° 13853/2019).
Nesse contexto, cabe perguntar – é possível construir um
modelo de governança da informação numa situação de calamidade pública? O que
todas essas idas e vindas nos ensinam? A perspectiva da proteção de dados traz
elementos importantes que possam contribuir para essa discussão.
O tema da proteção de dados pessoais vem ganhando fôlego no
debate nacional, associado às medidas de enfrentamento e impactos da situação
de calamidade pública por conta do Covid-19[1]. Uma chuva de projetos de lei
(PL), medidas provisórias (MP) e ações de inconstitucionalidade (ADI) sobre o
tema têm sido gerada pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário
federais. Como previsto no texto da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais
(LGPD)[2], o novo regime de tratamento de dados de pessoas naturais no Brasil
entraria em vigor em meados deste ano. A recente Medida Provisória n° 959 adiou
o início da vigência da LGPD para maio de 2021, com base na “possível
incapacidade de parcela da sociedade em razão dos impactos econômicos e sociais
e da crise provocada pela pandemia do Coronavírus”[3]. O PL n° 1179/2020
aprovado pelo Congresso Nacional posterga para agosto de 2021 a vigência dos
dispositivos sobre sanções administrativas da LGPD e antecipa para janeiro os
demais[4].
Nesse emaranhado de mudanças e propostas, destaca-se ainda a
MP n° 954, que trata do compartilhamento com o IBGE, pelas empresas de
telecomunicações, de dados de pessoas naturais ou jurídicas consumidoras de
serviço de telefonia móvel ou fixa , fundada nos seguintes motivos: “1) a
necessidade da produção tempestiva de dados para o monitoramento da pandemia de
COVID-19; 2) a necessidade de garantir a continuidade da PNAD Contínua […]; 3)
a tempestividade necessária para a obtenção dos dados requeridos junto às
empresas de telecomunicações […]”[5]. Esta MP encontra-se com sua eficácia
suspensa por decisão liminar da ministra Rosa Weber, referendada pelo plenário
do STF, apoiada na necessidade de se “prevenir danos irreparáveis à intimidade
e ao sigilo da vida privada de mais de uma centena de milhão de usuários dos
serviços de telefonia fixa e móvel”[6].
As recentes idas e vindas sobre proteção de dados pessoais
no Brasil indicam que o contexto da pandemia pode ter acentuado as tensões
entre três pontos básicos sobre os quais se organiza o debate sobre o tema.
Primeiro, políticas públicas necessitam dispor de forma rápida e precisa de
dados e informações sobre pessoas, mais ainda em situação de emergência
sanitária. Segundo, o tratamento e a disponibilização de dados, mesmo em
contextos de emergência, devem ser harmonizados com os direitos individuais das
pessoas sobre os quais eles versam. Por último, o uso e o franqueamento de
dados pessoais dependem de transparência e da adoção de práticas que requerem
tempo e investimento de atores públicos e privados, normalmente tão escassos em
tempos de crise.
Esta breve reflexão busca discutir em que medida o contexto
atual permite construir um modelo de governança da informação capaz de reduzir
a tensão entre esses pontos. Considerando que as bases para tratamento e
processamento de dados e informações foram lançadas no Brasil em várias normas
de caráter geral e regulamentadoras que vem sendo emanadas pelo Poder Público,
desde 2011. Assim, é importante identificar a possibilidade de estabelecer um
modelo de governança da informação, a partir dos instrumentos jurídicos
existentes. O desafio é oferecer aos gestores elementos para não somente
responder às demandas advindas da pandemia, mas, principalmente, para mostrar o
compromisso de organizações públicas e privadas no tratamento adequado de dados
e informações que estão em seus bancos e repositórios, bem como a transparência
que estruturam suas políticas.
Cabe definir o que é um modelo de governança da informação.
Sob essa perspectiva, a ideia que norteia esse modelo se baseia na forma como
organizações públicas e privadas constroem suas políticas de disponibilidade,
tratamento e uso de dados e de transparência. Incluem-se, então, a forma como
essas organizações desenvolvem e utilizam aplicações de Machine Learning, Big
Data, Chatbots e mecanismos de Inteligência Artificial em geral que
possibilitem que dados sejam utilizados para sistemas de atendimento e
processos decisórios, compondo um complexo desenho que evidencia a forma como
as políticas de informação são implementadas. Assim, importam a regulação, os
atores e a maneira como empenham recursos no desenvolvimento dessas políticas.
Do ponto de vista normativo, os marcos legais que podem
auxiliar na construção desta governança referem-se à própria LGPD, à Lei de
Acesso à Informação[7] (LAI), ao Decreto n° 7.845/2012, que regulamenta
procedimentos para credenciamento de segurança e tratamento de informação
classificada em qualquer grau de sigilo e à Lei do Marco Civil da Internet[8].
A Lei de Acesso à Informação (LAI) estabelece elementos
definidores de uma cultura da informação, entendida como o compromisso do
Estado com a transparência, com os procedimentos que geram accountability, com
o direito ao conhecimento da verdade, com práticas que buscam inibir a
corrupção e fortalecer a democracia. Estabelece, também, um conjunto de
princípios relacionados à máxima divulgação da atuação governamental, obrigação
de publicar, promoção de um Governo Aberto e acesso fácil e rápido às
informações públicas. Um dos dispositivos desta lei que trata especificamente
sobre a proteção de dados pessoais refere-se ao artigo 31 que define o que é
dado pessoal (relativo à intimidade, vida privada, honra e imagem) e estabelece
a restrição deste dado (independente da classificação de sigilo, por 100 anos),
estabelece o uso do consentimento expresso ou previsão legal para o seu uso e
aponta a responsabilização pelo uso indevido do dado .
O Decreto 7.845/2012 regulamenta os arts. 25, 27, 29, 35 e
paragrafo 5º, e 37, da LAI. Um dos elementos mais importantes deste instrumento
normativo se refere ao conjunto de definições que apresenta para classificar
uma informação de segurança e seu tratamento. Trata-se de um conjunto de
medidas que buscam assegurar o sigilo autorizado por lei para as informações
classificadas como tal. As medidas deste procedimento podem ser extremamente
uteis para serem aplicadas, em analogia, ao tratamento de dados e informações
pessoais.
O Marco Civil da Internet foi criado para apontar um
disciplinamento do uso da internet. Apresenta os seguintes princípios para
tratar do direito à informação: garantia da liberdade de expressão, comunicação
e manifestação de pensamento, proteção da privacidade; proteção dos dados
pessoais, preservação e garantia da neutralidade de rede; preservação da
estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de medidas técnicas
compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas
práticas; responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades,
preservação da natureza participativa da rede; liberdade dos modelos de
negócios promovidos na internet. Assim, ele traz um conjunto de elementos, que
desde 2014, tratam de aspectos que podem (e devem) contribuir para a construção
de um modelo de governança da internet e que em alguma medida contribuem para a
aplicação de políticas de informação, bem como expressa a preocupação do
legislador com o tema da proteção de dados. Essa legislação enuncia uma série
de aspectos que serão aprofundados e retomados pela LGPD.
A Lei Geral de Proteção de Dados divide-se em cinco eixos :
i) unidade e generalidade da aplicação da Lei; ii) legitimação para o
tratamento de dados (hipóteses autorizativas); iii) princípios e direitos do
titular; iv) obrigações dos agentes de tratamento de dados; v)
responsabilização dos agentes, com instituição de uma autoridade central para
fiscalização do cumprimento da lei e imposição de sanções A sua importância
para um modelo de governança de informação é que ela amplia os princípios e
regras já expostos nas legislações anteriores.
É possível destacar dois pontos acerca dos desafios impostos
à implementação desta legislação. Primeiro, é que mesmo sem plena eficácia, ela
estabelece um determinado rol de definições que já tem efeitos na organização
de conceitos que viabilizam medidas no âmbito das instituições. Esses
conceitos, estabelecidos no artigo 5º, são dado pessoal; dado pessoal sensível;
dado anonimizado; banco de dados; titular; controlador; operador; encarregado;
agentes de tratamento; tratamento; anonimização; consentimento; bloqueio:
eliminação: transferência internacional de dados: uso compartilhado de dados:
relatório de impacto à proteção de dados pessoais: órgão de pesquisa e
autoridade nacional. A lei também aponta, sem seu art. 6º, os princípios que
devem reger as práticas de proteção de dados nas empresas, a saber, finalidade,
adequação, necessidade, livre acesso, qualidade, transparência, segurança,
prevenção, não discriminação, responsabilização e prestação de contas.
O segundo ponto refere-se ao fato de que a LGPD traz um
plano normativo, cujo vacatio legis visa, entre outros elementos, que os atores
e políticas se preparem minimamente para sua implementação. Esse período
permitiria ajustar e coordenar ações voltadas para o desenvolvimento de
políticas de proteção de dados. Por outro lado, o mapa abaixo[9] assinala os
países do mundo que adoram atos ou leis de proteção de dados. Percebe-se que
alguns dos conceitos apontados pela lei (transferência internacional de dados e
uso compartilhado) se efetivam somente em países que possuam um regime de
proteção de dados. Ter uma legislação de proteção pode ser uma enorme garantia
de inserção econômica e política, mas a sua não implementação pode representar
um desprestígio perante a comunidade internacional.
Considerando as normas destacadas acima, um novo modelo de
governança da informação, pode auxiliar a Administração Pública a continuar
implementando medidas que o acesso, a proteção e o uso adequado de informações,
dados e conhecimentos. Essa prática, independente do cenário sanitário, aponta
para a continuidade e o aprimoramento das experiências institucionais nessa
questão, colocando-se como uma chave para transpor a paralisia que pode ter
sérias consequências para o desenvolvimento de aspectos institucionais,
políticos e econômicos para o país.
Cabe perguntar mais uma vez – é possível construir um modelo
de governança da informação em tempos de COVID-19?
Se tomarmos como referência a legislação acima repertoriada
que indica que, ao longo da década passada, foram criados instrumentos
jurídicos cuja temática da informação e seu uso aparecem como centrais, a
resposta é positiva. Mas muitas outras questões ainda continuam em aberto. Que
práticas de tratamento da informação gestores públicos e privados vêm
desenvolvendo no dia a dia? Como informação, dados e conhecimentos se
entrelaçam? Para que uma organização usa os dados e informações que possui?
Como é possível transformar o conhecimento gerado a partir em um modelo de boas
práticas informacionais? (a literatura tem chamado de compliance
informacional)? Que valor essas boas práticas geram e como elas se replicam em
prol de um desenvolvimento social e econômico mais equitativo?
Essas são perguntas que desafiam a realidade e podem sugerir
que a tarefa de estabelecer políticas de informação, combinando dimensões
legais, administrativas, de transparência ,motivação e finalidade é urgente,
seja para enfrentar as dificuldades do contexto atual, em que ameaças de
ampliação de vigilância e controle constituem cenários concretos; seja para
tempos em que políticas de informação bem estruturadas, claras e coordenadas
podem fazer a diferença, em termos geopolíticos e econômicos. na inserção do
país no cenário mundial.
Retomando Maquiavel, é necessário lembrar que a “fortuna”
nos deixa senhores de metade de nossas ações. O momento atual parece requerer
também “virtude” – esforços que ultrapassem os embates e coloquem de pé os
sólidos princípios estabelecidos no plano normativo, orientados para a promoção
do interesse público, independente da conjuntura.
Fonte: Estadão