Já que me aventurei em discorrer sobre o tema, sigo para
dizer que discordo da interpretação que vem sendo dada por alguns escritores de
que a representação é dispensável quando possível extrair pelas declarações
anteriores da vítima, na fase policial ou judicial, o seu desejo em ver o
agente processado, dispensando-se, assim, a necessidade de representação nesses
casos.
A lei 13.964/19, em vigor desde o dia 23 de janeiro de
2020, alterou a ação penal do crime de estelionato que, desde então,
passou a ser de iniciativa pública condicionada à representação da vítima,
ressalvado os casos especificados no art. 171, § 5º, do Código Penal.
Pois bem, a primeira e principal dúvida sobre o tema
refere-se à sua aplicação temporal, a dizer, a exigência de representação
da vítima aplica-se às ações penais ainda em curso ou apenas aos fatos
apurados em inquérito policial?
O tema foi recentemente analisado pela Quinta Turma do
Superior Tribunal de Justiça que, ao julgar o HC 573.093/SC (Rel.
Min. Reinaldo Soares da Fonseca, j. 09.6.2020), entendeu que “a
representação da vítima possa ser exigida retroativamente nos casos em que
estão em fase de inquérito policial, mas não na hipótese de processo penal
já instaurado”. Ainda destacou “em tese, pelo fato de o instituto da
representação criminal ser norma processual mista ou híbrida, a aplicação
retroativa seria possível para beneficiar o réu, mas o Pacote Anticrime
não trouxe nenhuma disposição expressa sobre essa possibilidade”. Em
resumo, o órgão fracionário do Tribunal da Cidadania, decidiu que,
oferecida a denúncia, não há mais que se falar em representação da
vítima.1
Ousamos divergir do decisum.
Insuspeito que a inovação legislativa apresenta uma norma
híbrida benéfica, porquanto, ao alterar a espécie de ação penal de
iniciativa pública incondicionada para condicionada à representação da
vítima, permitiu-se a criação de nova possibilidade de extinção da
punibilidade: a decadência (art. 107, IV, do CP).
Não se discute, igualmente, que aplicabilidade das normas
híbridas é determinada pelo caráter da diretiva de direito material, ou
seja, se o comando penal for benéfico, aplica-se o dispositivo
retroativamente, incluindo os casos ainda em trâmite processual, nos
exatos termos do art. 5º, XL, da nossa Carta Constitucional.
Realmente, diferentemente, do que ocorreu quando entrou em
vigor a Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95) que alterou a ação penal
dos crimes de lesão corporal leve e culposa (art. 88) e estipulou um prazo
de 30 (trinta) dias para a vítima realizar a representação nos processos
em curso por estes delitos (art. 91), o Pacote Anticrime não previu um
prazo específico para representação. Data venia, isso não significa que
se deva deixar de observar a determinação constitucional. A Lei dos
Juizados Especiais criou um prazo próprio para os casos de lesão corporal
leve e culposa em trâmite. Não obstante, mesmo se inexistente o dispositivo
com regra própria, exigir-se-ia a representação da vítima por imperativo
constitucional.
O fato da Lei 13.964/2019 não ter previsto um prazo próprio
para a vítima representar não pode impedir a aplicação retroativa de norma
mais benéfica, aplicandose o prazo vigente para a situação, ou seja, 06
(seis) meses (art. 38 do Código de Processo Penal). No caso, o prazo
deverá ser contado, não a partir do conhecimento da autoria, mas da intimação
regular da vítima sobre a necessidade da representação para continuidade
da ação penal.
Por outro lado, não se pode concordar com a tese de que a
denúncia recebida é ato jurídico perfeito e autoriza a continuidade da
ação penal mesmo sem manifestação da vítima exigida pela nova lei.
Novamente, com as devidas escusas, afirmar que não se pode alterar a
natureza jurídica da representação de “condição de procedibilidade”
para “condição de prosseguibilidade” é um reducionismo, pois na mencionada
condição de procedibilidade está inserta causas de extinção da
punibilidade e, nessa perspectiva, há de prevalecer a aplicação mais
favorável ao agente, sublimando-se o jus libertatis.
Mais, numa interpretação sistemática, considerando a
inovação legislativa que exige a representação da vítima nos crimes de
estelionato, seria o oferecimento da denúncia realmente um ato jurídico
perfeito, admitindo o prosseguimento da ação mesmo com a exigência de
representação da vítima?
Observemos o que diz a lei de regência sobre a ação penal de
iniciativa pública: “A ação pública é promovida pelo Ministério Público,
dependendo, quando a lei o exige, de representação do
ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça” (art. 100, §
1º, CP). Nos parece de clareza solar que, se uma nova lei, como no caso,
passa a exigir representação da vítima para o Ministério Público promover
a ação penal – promoção que não se limita ao oferecimento da denúncia –
imprescindível ouvir a vítima sobre seu interesse não só em iniciá-la,
mas também no seu prosseguimento.
Outro ponto relevante e, aparentemente, desprezado no debate
jurídico em questão, é o resgate e afirmação do papel da vítima nesta
espécie delitiva. A nova legislação deu voz e possibilidade à vítima,
enquanto principal prejudicada pelo fato criminoso, legitimando-a para
manifestar seu interesse no prosseguimento ou não da ação penal. Deve-se
realçar também que o direito de representação, inclusive, poderá ser
utilizado pela vítima como fator favorável na tentativa de obter eventual composição civil
com o agente.
É certo que, prevalecendo a interpretação que ora se
defende, haverá incômodos de ordem processual, pois processos poderão
ficar suspensos, aguardando a manifestação da vítima e outros em que ela
sequer será encontrada, mas, acreditamos, que tais questões não podem
afetar a aplicação adequada da lei.
Como último argumento, apresentamos o seguinte exemplo: No
mesmo dia de dezembro de 2019, as pessoas de “A” e “B” alegaram ser
vítimas de estelionato. Nenhuma delas se encontra na situação de
excepcionalidade descrita no art. 171, § 5º, do Código Penal. Os fatos
passaram a ser investigados, porém, o caso de “A” demorou um pouco mais
para ser concluído, pois uma das testemunhas não era encontrada. Já o caso
de “B” encerrou-se rapidamente, o inquérito policial foi relatado e o
representante do Ministério Público apresentou denúncia. Seguindo o
entendimento do Superior Tribunal de Justiça acima exposto, a vítima “A”
será ouvida e poderá não representar ou simplesmente deixar o prazo decadencial
escoar, acarretando a extinção da punibilidade. A vítima “B” será intimada
apenas para prestar declarações e, ainda que se manifeste pela ausência de
interesse pessoal no prosseguimento da ação penal, o processo
poderá prosseguir e haver a condenação do réu, mesmo com a exigência legal
de representação e, principalmente, contra a vontade do principal
interessado nos fatos.
Diante de tal exemplo hipotético, mas que, seguramente, pode
acontecer2, pensamos que ouvir a vítima sobre o seu interesse, mesmo nos
processos em curso por estelionato, é, antes da melhor interpretação, um
imperativo de Justiça.
Post scriptum:
Já que me aventurei em discorrer sobre o tema, sigo para
dizer que discordo da interpretação que vem sendo dada por alguns escritores
de que a representação é dispensável quando possível extrair pelas
declarações anteriores da vítima, na fase policial ou judicial, o
seu desejo em ver o agente processado, dispensando-se, assim, a
necessidade de representação nesses casos.
Discordamos, pois pensamos que a vítima deve ser devidamente
intimada e informada sobre os efeitos possíveis e o prazo para exercer o
que agora se afigura como seu direito pessoal e não mais apenas como
elemento de prova. A interpretação de que a representação pode
ser presumida das declarações da vítima é fruto de jurisprudência sobre
crimes sexuais que, ao nosso sentir, não deve ser estendida a outros.
Fundamental, como dito, esclarecer a vítima e respeitar seu direito.
Ainda, na ausência de prazo legal próprio, reafirmamos que
deve ser utilizado o prazo legal de 6 (seis) meses para representação, na
forma do art. 38 do Código de Processo Penal. A analogia ao art. 91 do Lei
9.099/1995, in casu, seria in malam partem.
Finalmente, tratando-se de norma híbrida, o limite para
retroatividade é o trânsito em julgado da condenação pelo estelionato, a
retroatividade da norma híbrida difere da norma puramente material que
rompe inclusive a coisa julgada. Trata-se, no caso, de norma afeta
ao direito de ação com reflexos indiretos no direito material, logo não
possui aplicação quando definitivamente encerrada ação penal.
Fonte: Migalhas