A intenção do projeto de lei era louvável e necessária e
o veto presidencial caminha em sentido contrário às demais iniciativas
legislativas adotadas nos países mais impactados pela pandemia: o aumento do
inadimplemento ocasionou uma enxurrada de ações de despejo, que, caso deferidas
liminarmente nos termos da Lei do Inquilinato, colocariam na rua um sem número
de pessoas, muitas em situação de vulnerabilidade, expondo-as ainda mais aos
riscos de contaminação e disseminação da doença.
Desde o início das recomendações de isolamento domiciliar em
razão da pandemia de COVID-19, diversos trabalhadores e empresários sofreram
redução em seus ganhos – pessoas que trabalham no varejo e obtêm parte de seus
ganhos com comissões, profissionais liberais e microempresários individuais
(MEI) já sentem os efeitos econômicos da crise que não parece ter fim.
Diante de tal fato, como já expusemos em texto anterior (A
renegociação de contratos de locação comercial diante da crise do coronavírus),
haverá uma onda generalizada de inadimplência na maioria dos ramos de negócio,
dentre eles os de locação imobiliária. Muitos proprietários, então, amparados
pelo art. 59 da Lei 8.245/1991, pedirão o despejo liminar de seus locatários,
que, nos termos do §1º do mesmo dispositivo legal, poderá ser concedido com a
observância de alguns requisitos que não nos cabe analisar neste momento.
Entretanto, há um movimento global para suspender as ações
de despejo durante o período em que durar a pandemia. Nos Estados Unidos, a
maioria dos estados decretou um período de “moratória” dos despejos –
gradativamente, tal possibilidade está sendo retomada à medida que se afrouxam
as medidas de distanciamento social. Em igual sentido, o Parlamento alemão
determinou a suspensão das ações de despejo até o fim de junho de 2020.
No Brasil, tramitou no Congresso Nacional o projeto
de lei 1179/2020, que “dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e
Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da
pandemia do coronavírus”, e previa, em seu art. 9º, a suspensão dos despejos
liminares até o dia 30 de outubro de 2020 – contudo, tal dispositivo foi vetado
pelo Presidente Jair Bolsonaro. Vale lembrar que o veto ainda pode ser
derrubado pelo Congresso, em sessão conjunta, caso se obtenha a maioria
absoluta de votos das duas casas, computados separadamente.
Assim, em 12 de junho de 2020, foi publicada no Diário
Oficial da União a Lei
14.010/20, que não introduziu qualquer alteração às relações
locatícias, cujas regras continuam a ser regidas integralmente pela Lei do
Inquilinato.
O art. 9º do projeto de lei previa que “não se concederá
liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere
o art. 59, §1º, incisos I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei nº 8.245 (...) até 30
de outubro de 2020”.
Pontuando, inicialmente, que é impossível prever as
consequências concretas da pandemia e até quando a restrição à circulação de
pessoas irá perdurar, por evidente que deverá haver um equilíbrio entre
direitos de credores/proprietários e devedores/locatários.
De toda sorte, mesmo diante da pandemia e caso o veto seja
derrubado pelo Congresso, continuará sendo possível a retomada do imóvel
sobretudo em hipóteses que tratam de direitos potestativos, ou seja, que
independem da manifestação de vontade da parte contrária, como a possibilidade
de retomada para uso próprio (art. 47, III, Lei 8.245/1991).
Embora o veto presidencial não tenha alterado as regras de
despejo da Lei do Inquilinato, o Judiciário se movimenta no sentido de
indeferir pedidos liminares de despejo, ou, no mínimo, de suspender o seu
cumprimento. O Tribunal de Justiça de São Paulo já entendeu pela manutenção de
suspensão do despejo liminar:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. Ação de despejo por falta de
pagamento. Locação residencial. Suspensão da liminar em face da pandemia causa
pelo Covid-19. Calamidade pública decretada pelo Governo Federal e quarentena
determinada pelo Governo do Estado. Despejo que prejudicaria o cumprimento das
orientações feitas pelos órgãos de saúde. Liminar para desocupação do imóvel
locado que deve permanecer suspensa. Precedentes. Recurso desprovido. (TJSP;
Agravo de Instrumento 2102322-69.2020.8.26.0000; Relator (a): Milton Carvalho; Órgão
Julgador: 36ª Câmara de Direito Privado; Foro de São José do Rio Preto - 7ª
Vara Cível; Data do Julgamento: 10/06/2020; Data de Registro: 10/06/2020).
Vale destacar que a decisão foi fundamentada não no projeto
de lei, mas no decreto estadual que previu a quarentena e no reconhecimento da
emergência de saúde pública no âmbito federal e que o deferimento do despejo,
neste contexto, “estaria em desconformidade com as medidas de saúde vigentes
que indicam a necessidade de se reduzir a circulação de pessoas e a permanência
no ambiente residencial”. Em regra, as liminares de despejo têm sido deferidas,
mas seu cumprimento é suspenso até que sejam revogadas as medidas restritivas
de circulação de pessoas.
A intenção do projeto de lei era louvável e necessária e o
veto presidencial caminha em sentido contrário às demais iniciativas
legislativas adotadas nos países mais impactados pela pandemia: o aumento do
inadimplemento ocasionou uma enxurrada de ações de despejo, que, caso deferidas
liminarmente nos termos da Lei do Inquilinato, colocariam na rua um sem número
de pessoas, muitas em situação de vulnerabilidade, expondo-as ainda mais aos
riscos de contaminação e disseminação da doença. O Judiciário terá papel
preponderante para equalizar tais situações, reequilibrando as relações
contratuais.
Fonte: Migalhas