Isolamento social, mortes, incontáveis doentes e uma
multiplicidade de internamentos engendrados pela pandemia Covid-19 estigmatizam
o mundo e, de forma ascendente, o Brasil, causando, pari passu,
desequilíbrios econômicos e financeiros que atingem milhares de seres humanos e
pessoas jurídicas.
Em 10 de junho de 2020, foi publicada a Lei n.º 14.010/20,
fruto do PL n.º 1.179, que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e
Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no transcorrer do
hodierno estado de calamidade em saúde pública. Trata-se de iniciativa
lastreada em conjuntos normativos editados em outros países, como se observa na
Alemanha, Espanha, Estados Unidos, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do
Norte, dentre outros1.
No entanto, lamentavelmente, o nosso País não foi contemplado por um diploma
que satisfizesse premências que jaziam inseridas na proposta original, não
sendo "o produto e retrato fiel da realidade e das necessidades
sociais", como defendia Friedrich Karl von Savigny2.
Nesse mesmo sentido, Augusto Teixeira de Freitas aduzia a fundamental
interligação do campo jurídico com a realidade e a ética3.
Na justificativa do aludido Projeto de Lei, consta menção à
Lei Failliot, com o escopo de se buscar o equilíbrio contratual devido às
desastrosas consequências do primeiro grande conflito mundial4.
Ademais, nota-se adrede referência aos vulneráveis e as agruras por estes
enfrentadas no evolver do caótico quadro vivenciado. No entanto, como será
explicitado nesta coluna, infelizmente, o novel arcabouço normativo não
consagra a proteção, a priori, almejada e amputa relevantes dispositivos
do prospecto preliminar. Deixou o País de aproveitar a oportunidade de
normatizar aspectos que evitariam conflitos que escoarão para o aparato
jurisdicional e acentuarão, ainda mais, a sobrecarga dos magistrados.
Dividir-se-á esta exposição em duas essenciais partes, para se compreender os
motivos pelos quais, conquanto seja uma vitória dispor-se de uma urgente
estrutura para a regência das relações privadas, omissões legislativas
inaceitáveis são detectadas. Inicialmente, de forma breve, será exposto o
arquétipo legal, transpondo-se, em seguida, para as principais críticas às
supressões efetivadas.
A Lei, em epígrafe, instituiu normas que incidirão sobre as
relações jurídicas oriundas dos eventos derivados da pandemia a partir da
publicação do Decreto Legislativo nº 6, qual seja, 20 de março de 2020. Há a
suspensão de normas, explicitamente, mencionadas no diploma legal, até 30 de
outubro do ano em curso, mas sem qualquer revogação ou alteração do seu
conteúdo. Todos os prazos prescricionais e decadenciais encontram-se impedidos
ou suspensos, consoante o art. 3º, mas este não se aplica enquanto perdurarem
as hipóteses específicas de eliminação dos lapsus temporais de
fulminação de direitos e de prerrogativas, previstos no ordenamento jurídico
nacional. Os dispositivos 52, 53 e 54 da Lei n.º 13.709/18 tiveram a sua
vigência postergada para 1º de agosto de 2021, ou seja, conquanto as normas
sobre proteção de dados pessoais comecem a produzir efeitos antes, restam
inócuas. As penalidades estarão obliteradas e os brasileiros continuarão a ter
as suas informações pessoais aviltadas de modo ilícito, como já de costume5.
Além da parte geral, notam-se normas sobre as obrigações, o direito das coisas,
os núcleos familiares e as sucessões, eis que o PL denotava a manutenção da
tradição do Corpus Juris Civilis6.
Dado o confinamento compulsório em curso, as pessoas
jurídicas de direito privado estão autorizadas à realização de assembleia geral
por meio eletrônico. Não se exige, para tal mister, previsão estatutária, mas
impõe-se a identificação do participante e a segurança do seu voto. Ao vetar o
art. 4º do PL, deixou-se de atender à premissa essencial de se evitar situações
que contribuam com a disseminação do lúgubre agente viral, posto que este
impunha a necessária observância das determinações sanitárias, evitando-se
congregações presenciais. Quedou-se inerte o Brasil quanto à rejeição das
interessantes normas sobre o regime societário presentes na sua redação
preliminar, que fixavam regras sobre a dilatação de assembleias e reuniões,
assim como acerca da sua consecução eletrônica. Outra regra, assaz proeminente
neste momento de tantas perdas para os agentes econômicos, fixava que os dividendos
e outros proventos poderiam ser declarados durante o exercício social de 2020,
independentemente de previsão estatutária ou contratual e aprovação dos
responsáveis. Poder-se-ia também propiciar a suspensão do dever de requerer
insolvência ou falência, nos termos da legislação alemã7,
propugnando-se, inclusive, pela valorização da boa-fé que, segundo Jossef
Esser, deverá primar nas relações jurídicas8.
No que concerne aos ramos jurídicos atinentes às famílias e
às sucessões, vislumbra-se que não houve uma dissonância com o substrato
proposto, mas poderia ter avançado mais, tutelando-se melhor as relações entre
aqueles vinculados por laços sanguíneos e por afinidade, mormente marcadas por
tensões e conflitos devido à reclusão forçada. Estabeleceu-se que a prisão por
dívida alimentícia deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade
domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações. As
sucessões, abertas a partir de 1º de fevereiro deste ano, terão seu termo
proemial dilatado e suspendeu-se o termo de 12 meses, para a finalização dos
inventários e das partilhas iniciados desta data. O homem, lecionava Eduardo
Espínola, não só por considerações atinentes à sua própria pessoa, “como um animal
com exigências suas, materiais, morais e intelectuais, mas também, como membro
da família e do agrupamento”, tende a satisfazer “necessidades múltiplas e
complexas, para o que se dirige aos bens da vida”9.
No âmbito do direito das coisas, restaram suspensos os
prazos concernentes às diversas espécies de usucapião. Quanto aos condomínios
edilícios, previu-se que a assembleia e a respectiva votação poderão ser
efetivadas por sistemas virtuais. Equiparou-se a manifestação de vontade de
cada participante à assinatura presencial e não sendo viável a seleção do
síndico, naquela modalidade e cujo mandato tenha vencido, ficará
automaticamente prorrogado, mantendo-se obrigatória a prestação de contas.
Inaceitável, sob a ótica da imprescindível prevenção e do combate do letárgico
agente viral, que já ceifou milhares de vidas, o veto ao dispositivo que lhe
atribuía poderes para evitar o uso de áreas comuns por terceiros e a realização
de eventos e reuniões, exceto para as hipóteses estritamente necessárias.
Omitiu-se o governo federal sobre a sua obrigatória responsabilidade diante do
nefasto quadro instalado10.
Vultosas omissões são identificadas nas searas das
obrigações e dos contratos, reverberando a falta de preocupação do nosso País
com a situação dos efetivamente mais fragilizados. Todas as normas referentes
aos contratos agrários foram extirpadas e perdeu-se a oportunidade de serem
regulamentados os arrendamentos rurais disciplinados pela Lei n.º 4.504/20. O
Brasil, em um momento tão delicado como o atual, jamais poderia deixar de zelar
por aqueles que estão explorando os recursos das nossas terras e que servirão
para a alimentação e a sobrevivência de muitos. Silenciou-se quanto às questões
do Estatuto da Terra que vão originar inúmeras lides e assoberbar as vias
judiciárias. No campo das locações, vislumbra-se ausência total de qualquer
norma, vetando-se literalmente a coibição de liminares sobre a desocupação de
imóveis urbano nas ações de despejo e a suspensão dos alugueres, para aqueles
que sofreram alteração econômico-financeira. Como asseverava Orlando Gomes, o
direito deveria ser ditado com “o superior propósito de mitigar desigualdades
sociais, impregnando-se, dia a dia, de essência moralizadora” 11.
Onde ficarão abrigados milhares de brasileiros que não consigam arcar com o
pagamento das locações residenciais? Ao relento, suscetíveis ao novo
coronavírus?
Nada foi regulamentado sobre resilição, resolução e revisão
contratual, rejeitando-se os profícuos esforços da comissão quanto à proposta
de que as consequências da pandemia não teriam efeitos retroativos nas
execuções, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil. Para os fins
exclusivos dos seus art. 478, 479 e 480, o aumento da inflação, a variação
cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário não seriam considerados
fatos imprevisíveis. Salienta-se que havia expressa previsão de que esta regra
não incidiria sobre as questões de natureza consumerista e as locações,
podendo-se, assim, reforçar e complementar a proteção existente, evitando-se
litígios que, ipso facto, vão se multiplicar. Suspendeu-se o direito de
arrependimento presente no art. 49 do CDC na hipótese de entrega domiciliar de
produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos. No entanto,
ressalta-se que, havendo vício de tais bens, dúvidas não pairam que os
destinatários finais podem e devem buscar os seus direitos. Para Orlando Gomes,
o direito teria que ser vocacionado para a proteção dos mais fracos e
“compensar a inferioridade econômica dos pobres com uma superioridade jurídica,
limitando a liberdade de contratar”12.
Coadunando-se com a liberdade
econômica pleiteada pelos agentes mercadológicos, a recente Lei acatou todas as
estipulações do PL, demonstrando intensa preocupação com o setor de produção.
Restaram sem eficácia as regras da Lei n.º 12.529/1113 sobre
a coibição de venda de mercadoria ou a prestação de serviço abaixo do preço de
custo e a cessação de atividades empresariais. Também não configurarão atos de
concentração o fato de duas ou mais pessoas jurídicas celebrarem vínculos e na
apreciação das condutas ilícitas elencadas, considerar-se-ão as circunstâncias
extraordinárias. Não obstante os esforços empreendidos, a nova estrutura
normativa revela retrocessos diante de outras leis mais avançadas e sobrepuja
os interesses e os direitos das pessoas físicas e jurídicas que urgem de
proteção no espectro privado.
Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede
de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra,
Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF,
UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
Fonte: Consultor Jurídico