De símbolo da morosidade burocrática a referência
internacional em eficiência e capilaridade, os cartórios brasileiros evoluíram
juntamente com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ao longo dos últimos 15
anos. Ciente da importância dessa prestação de serviço à população brasileira e
da necessidade de profissionalizar o atendimento, o CNJ começou a reorganizar o
sistema cartorial logo no primeiro ano de seu funcionamento. Hoje, a ampliação
das atribuições das serventias extrajudiciais repercute positivamente na vida
do cidadão e das instituições públicas e privadas brasileiras.
Os cartórios têm a incumbência de dar publicidade, atestar a
autenticidade e garantir a segurança e eficácia a todos os atos jurídicos
praticados no país. É um cartório de registro civil que emite, por exemplo,
certidões de nascimento e casamento, acordos pré-nupciais, adoção, registro de
óbito, reconhecimento de paternidade, interdição, opções de nacionalidade e
emancipação de menores. A vida de empresas e outras sociedades civis, religiosas,
morais, científicas e literárias e, ainda, fundações e associações de utilidade
pública também é registrada por cartórios. Nesses casos, são os cartórios de
registro civil de títulos e das pessoas jurídicas que registram
contratos, atos constitutivos, estatuto e outros compromissos.
Já os cartórios de notas dão fé pública a documentos por
meio da emissão de escrituras, procurações e testamentos e pelos procedimentos
de reconhecimento de firma e autenticação de cópias. Outro tipo de cartório,
também regulado pelo CNJ, é o de registro de imóveis, responsável pela
matrícula, registro e averbação de atos relativos a terrenos e
construções em todo o Brasil. Nos tabelionatos de protestos, é dada publicidade
sobre a inadimplência de uma obrigação e são protocolados os documentos dessas
dívidas, intimados os devedores, recebidos pagamentos, lavrado o protesto em
caso de não quitação e expedidas certidões relativa a dívidas.
A despeito de sua importância, em 2005, a realidade
cartorial brasileira era bem diferente da atual. As serventias extrajudiciais
que funcionavam no país eram consideradas, na prática, bens de família
passados, na maioria das vezes, de pai para filho. Sem a centralização do
controle e com investimento tecnológico aquém do necessário, os cartórios
também eram muitas vezes apontados como cúmplices de ações fraudulentas e
desvios de dinheiro.
O primeiro passo tomado pelo CNJ nesta área foi a edição
da Resolução n.
7/2005, que proibiu donos de cartório de contratar parentes de
magistrados que exerçam atividade de fiscalização dos serviços extrajudiciais
e parentes de qualquer desembargador de tribunal de Justiça do estado onde
se localizam os serviços extrajudiciais. Garantia-se, assim, a fiscalização
idônea e caminhava-se rumo à profissionalização do sistema.
Da herança aos concursos
Outro obstáculo enfrentado pelo CNJ foi a hereditariedade
das serventias, algo que começou ainda na época do Brasil Império. Porém, em
1988, a Constituição Federal apresentou, no parágrafo 3º do artigo 236, novo
caminho para o ingresso na atividade notarial e de registro: a aprovação em
concurso público. Isso porque, de acordo com a Carta Magna, os serviços
notariais e de registro são exercidos em caráter privado, mas por delegação do
poder público.
Somente em 2009, por determinação do CNJ, a norma se concretizou.
Naquele ano, a Resolução
CNJ n. 80 declarou a vacância de todos os serviços notariais e de
registro ocupados em desacordo com as normas constitucionais. A medida resultou
na destituição de 5,5 mil dos 14 mil cartorários de suas funções. A Resolução n. 81, em
seguida, já trouxe as regras para a realização dos concursos para outorga de
cartórios extrajudiciais.
“Naquela época, ano de 2008, as serventias extrajudiciais
eram uma bagunça”, relembrou o ministro aposentado do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) e ex-corregedor nacional da Justiça Gilson Dipp. Ele foi o
relator da Resolução n. 80 e da n. 81 do CNJ. “Era um tal de tio passar o cartório
para o sobrinho, para primo, para quem quisesse. Não tinha nenhum regramento”,
contou. De acordo com o ex-corregedor, a mudança era necessidade urgente e foi
um trabalho em equipe de todos os conselheiros do CNJ na época, com especial
apoio do então presidente do CNJ ministro Gilmar Mendes.
Na época, cerca de 80% dos processos que tramitavam no CNJ
eram relacionados a problemas cartoriais. “Pegamos a Constituição Federal e
outras leis e redigimos as resoluções. Houve muita resistência não apenas dos donos
de cartórios, mas também de alguns tribunais”, afirma Dipp, lembrando que,
quando declarou a vacância das serventias, sofreu mais de mil mandados de
segurança. “No final, prevaleceu a moralidade, a impessoalidade e o interesse
público”, avaliou.
Para ampliar a transparência para a sociedade e expor a
realidade das serventias extrajudiciais brasileiras, desde 2008, o CNJ publica,
em sua página na internet, os dados financeiros e administrativos dos cartórios
por meio do Sistema Justiça
Aberta. Essa decisão permitiu ainda afinar políticas públicas
destinadas ao segmento.
Informatização
A informatização e uniformização das serventias
extrajudiciais também teve a participação do CNJ por meio da Corregedoria
Nacional de Justiça. Entre 2017 e 2018, uma equipe especializada realizou
vistorias em todos os estados e observou que alguns cartórios operavam sem
nenhum sistema de segurança de dados. Alguns usavam, por exemplo, softwares piratas
e internet intermitente, além da vulnerabilidade ao ataque de hackers em
busca de informações preciosas.
Este trabalho subsidiou a edição do Provimento n. 74 de 2018,
que traz os padrões mínimos de tecnologia exigidos para a prestação dos
serviços de notas e registros e a garantia da segurança da informação e de
atendimento ao cidadão. “Levamos em consideração desde o preço dos equipamentos
até o avanço tecnológico e a necessidade de se uniformizar a manutenção dos
arquivos eletrônicos, de forma a permitir que, no futuro, os dados sejam
compartilhados entre os cartórios com segurança”, destaca o ex-juiz auxiliar da
Corregedoria Márcio Evangelista Ferreira da Silva, que coordenou os trabalhos.
Os avanços proporcionados pelo Provimento 74 permitiram que,
hoje, com a pandemia da Covid-19, os cartórios consigam cumprir a exigência de
trabalharem remotamente, por meio de ferramentas on-line. “Nada do que
está sendo feito hoje seria possível se não tivéssemos publicado o provimento.
Hoje temos um serviço on-line seguro para os atos eletrônicos”,
afirmou.
O presidente da Associação dos Notários e Registradores
(Anoreg), Cláudio Marçal Freire, cita ainda a instituição dos provimentos
nacionais que regulamentaram as Centrais Eletrônicas como pilar da
transformação dos cartórios pela atuação do CNJ. As centrais congregam serviços
de Registro Civil, de Notas, de Títulos e Documentos e Pessoa Jurídica, de
Protesto e mais, recentemente, de Registro de Imóveis, por meio do ONR –
Operador Nacional do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (SREI). “A
criação das centrais foi o grande impulso para a migração dos serviços de notas
e de registros para o meio eletrônico, que se transformaram, como no caso do
Protesto, em uma atividade 100% digital”, relata.
Para Marçal Freire, os cartórios tiveram sua atividade
transformada com o advento da tecnologia, da desburocratização e da gestão da
qualidade na prestação de serviços e os resultados continuam a ser incorporados
ao segmento. Entretanto, ele destaca que alguns ainda enfrentam os desafios
impostos pela disparidade de realidades e a magnitude continental do Brasil.
O cumprimento do Provimento n. 74 por cartórios de menor
porte, por exemplo, esbarrou na pouca infraestrutura municipal de algumas
localidades, baixa tecnologia e rendimento que, muitas vezes, impede o titular
da unidade de fazer os investimentos necessários. “O CNJ e a Corregedoria
Nacional de Justiça possuem grande parcela na construção desse atual modelo notarial
e registral, por dialogarem diariamente com as entidades de classe dos setores
e, a partir disso, tomar as decisões regulamentadoras que libertaram muitas
amarras que engessavam a atividade”, completou.
Serviço social
A função social dos cartórios brasileiros também foi
aperfeiçoada e ampliada a partir da atuação do CNJ. Um exemplo disso é a
vigência, desde 2010, do Provimento n. 13, que
permitiu a emissão de certidão de nascimento nos estabelecimentos de saúde que
realizam partos. A medida contribuiu para reduzir o número de registros tardios
no país. “Para mim, foi uma facilidade enorme poder registrar a minha filha já
dentro do hospital, sem precisar ir a um cartório”, contou Silvania da Silva
Barros, que teve sua filha Joana – hoje, com quatro anos – no Hospital Regional
da Asa Norte (HRAN), em Brasília.
Também com o intuito de garantir direitos e o exercício
pleno da cidadania, o Provimento n. 16, de 2012,
disciplinou a recepção, pelos oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais,
da indicação de supostos pais de pessoas já registradas sem paternidade
estabelecida, bem como do reconhecimento espontâneo e tardio de paternidade. Já
em 2017, o Conselho editou o Provimento n. 63,
para disciplinar o reconhecimento e a averbação, em cartório, de paternidade e
maternidade socioafetiva. Isto permitiu, por exemplo, a inclusão de padrasto e
madrasta em certidões de filhos. Também, em cartório, passou-se a se realizar a
troca de nome e gênero de pessoas transgêneros, conforme o Provimento n. 73/2018.
Antes, a opção só era garantida para aqueles que tivessem em mãos uma sentença
judicial.
Referência internacional
Mais profissionalizado e sob regras claras de gestão e
controle, o sistema de serventia extrajudicial brasileiro foi reconhecido
internacionalmente como uma referência. Em 2019, o Brasil sediou, pela primeira
vez, uma edição do International Forum on the eletronic Aposlile Program
(e-APP) da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado
(HCCH). A recepção internacional foi fruto do trabalho desenvolvido pelo CNJ e
pelos cartórios brasileiros para desburocratizar o serviço de apostilamento de
documentos.
Antes da regulamentação do CNJ para a aplicação da
Apostila da Haia, um documento seria aceito por autoridades estrangeiras apenas
depois de seguidas legalizações em diferentes órgãos públicos no Brasil. Em
2016, a Resolução
CNJ n. 228/2016 delegou às serventias extrajudiciais a tarefa de
autenticar a documentação a ser usada no exterior e, ao CNJ, o controle desses
atos.
Para executar a tarefa da “legalização única”, o CNJ criou
um sistema digital chamado SEI-Apostila: basta ao interessado dirigir-se a um
cartório habilitado e solicitar a emissão de uma apostila para um documento.
Com a mudança, o prazo para legalização passou de meses para apenas alguns
minutos. “O apostilamento trouxe a desburocratização. O processo, que era
moroso, oneroso e concentrado em apenas poucas cidades, agora é mais barato,
fácil e está acessível em todas as capitais e em várias cidades do interior”,
afirmou o juiz Márcio Evangelista.
De agosto de 2016 a abril de 2020, foram apostilados 5,2
milhões documentos no Brasil. Somente em 2019, foram mais de 1,8 milhão de
documentos apostilados, com destaque para os estados de São Paulo, Santa
Catarina, Distrito Federal e Rio de Janeiro. Em 2020, com a publicação
do Provimento n.
106, da Corregedoria Nacional de Justiça, o SEI Apostila foi
substituído pelo Sistema Eletrônico de Apostilamento (Apostil), desenvolvido
pelo CNJ e que despertou o interesse de outros países.
Em março de 2020, o conselheiro do CNJ Henrique Ávila
representou o Conselho no Council of General Affairs and Policy of the Hague
Conference on Private Internacional Law, na Haia, e confirmou o prestígio
brasileiro na implantação do apostilamento. “As delegações estrangeiras ficaram
muito impressionadas com o número de apostilamentos que atingimos no Judiciário
brasileiro. A verdade é que a nossa experiência ao lidar com o vultosíssimo
número de 80 milhões de processos, jamais visto em qualquer lugar do mundo, nos
dá também a expertise de desenvolver técnicas que os outros países
ainda não têm”, afirma.
Combate à corrupção
Também foi em 2019 que os cartórios ingressaram na rede de
instituições envolvidas na prevenção e no combate à corrupção e à lavagem de
dinheiro e ao financiamento do terrorismo. O Provimento n. 88 da
Corregedoria Nacional determina que operações registradas em cartório que
levantem suspeita de lavagem de dinheiro e de financiamento do terrorismo sejam
comunicadas ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF).
A inclusão da atividade extrajudicial nesse combate era
imprescindível, já que, na maioria dos negócios realizados, os registros
públicos podem ser utilizados para dar aparência de legalidade a atos ilícitos.
O envio de informações ao COAF contribui para a elaboração de relatórios de
inteligência financeira mais precisos. Esses relatórios, por sua vez, ficam à
disposição dos órgãos de persecução penal, para uso em investigações e ações
penais instauradas contra os que praticam esse tipo de crime: informações essas
que, antes da regulação pela Corregedoria Nacional, sequer chegavam ao
conhecimento dos órgãos de controle e de investigação nacionais.
A nova norma do CNJ foi um importante avanço
no combate à corrupção no Brasil e colocou os cartórios no
mesmo patamar que seus pares internacionais em países como França, Alemanha,
Portugal, Itália e Espanha.
A Corregedoria Nacional de Justiça atua como órgão
responsável por regular toda a atividade extrajudicial brasileira. Segundo o
atual corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, essa
normatização é de fundamental importância, uma vez que muitos desses serviços
devem ser oferecidos por todos os cartórios, nos mais distantes rincões de
nosso país. “O papel dos notários e registradores brasileiros não se restringe
apenas aos atos protocolares, mas assumem, cada vez mais, uma posição de
destaque na atividade econômica e social”, afirma o ministro.
Exemplo claro das múltiplas áreas de atuação pode ser
verificado com a participação ativa de todos os notários e registradores
brasileiros na prevenção e combate à lavagem de dinheiro. “Com a edição do
Provimento n. 88/2019, da Corregedoria Nacional de Justiça, nós,
definitivamente, incluímos os cartórios brasileiros no protocolo internacional
de prevenção e combate à corrupção e a lavagem de dinheiro. Um ato
administrativo tão importante para o país que teve destaque na Convenção das
Nações Unidas contra a Corrupção (UNCAC), no ano de 2019”, enfatizou o
corregedor nacional.
Fonte: Conselho Nacional de Justiça