“Quando o espírito mercantil predomina, quando se avalia
cada ação como mercancia, vendem-se os talentos e as virtudes: todos são
mercadores e ninguém é homem.” José Bonifácio de Andrada e Silva, o
Patriarca
A tragédia brasileira é a ignorância, que nada tem a ver com
a educação escolar ou doméstica, mas tem muito com a falta de cidadania. E a
construção da cidadania jamais foi, nem para engodo, um projeto político. Não
saberíamos dizer quem proporia tal projeto. Não por incapacidade cognitiva, mas
pela forte oposição do poder colonizador, que lhe fecharia todas as
possibilidades.
Há a repetição setecentista da separação dos poderes que,
embora visualizada por Montesquieu na Grã-Bretanha, não correspondia à
realidade institucional desse país, como bem observou George Sabine
em História da Teoria Política. Se já naquela época esse modelo não se
ajustava às condições concretas das nações, após as duas revoluções provocadas
pela Teoria de Sistemas Gerais e pela Cibernética (controle e comunicação nos
animais e máquinas) este modelo apresenta ainda outras falhas.
Primeiro, o poder, como o próprio Montesquieu entendeu, é um
único, que se materializa no que denominamos expressões do poder.
Consequentemente, a democracia não teria sentido num sistema em que um dos
poderes, em princípio, é meritocrático. E que outro, o legislativo, não teria
conhecimento (ou até consciência) da extensão de seus votos parlamentares, de
sua adesão a projetos.
Caímos muitas vezes num regime, independente do sistema
econômico, onde há a prevalência do segmento que é o mais capaz, seja de
representar o interesse geral, ou seja, para operacionalizá-lo.
Assim, para que possamos implementar os projetos nacionais
de Soberania e de Cidadania, também precisamos nos dedicar à organização, às
estruturas do Estado e instituições que os garantirão e os ajustarão/alterarão
conforme vá se transformando a sociedade.
Cidadania significa ser par, ser um igual, compartilhar, no
mesmo status de pertencimento, idênticas obrigações e garantias cívicas, isto
é, relacionadas ao corpo coletivo. Paridade é estar no mesmo nível de todos, em
pé de igualdade. Está aí a grande falácia da competitividade neoliberal; não
haver igualdade entre os competidores, principalmente quando o “incentivo à
competitividade de mercado”, que nos impõe o Consenso de Washington, junta
pequenas empresas nacionais com poderosas multinacionais estrangeiras.
Sob a Cidadania temos também dois pilares: a construção da
cidadania e a garantia dos direitos.
A construção da cidadania é um processo permanente que
possibilita a existência, a consciência e a vocalização de todos os habitantes.
Destes milhões de pessoas que são os brasileiros.
A existência na cidadania fica hoje, com a epidemia de
Covid-19, ainda mais visivelmente necessária. São atividades do âmbito da
existência a saúde e a moradia. Para saúde, seria tornar o Sistema Único de
Saúde (SUS) o verdadeiro e universal sistema brasileiro, dotado de todos os
recursos para a prevenção e tratamento de enfermidades, físicas e mentais.
Ações privadas na saúde não contariam com a proteção nem estímulo público, pois
a saúde da população não pode ser objeto de comércio.
A habitação contempla, além da construção, a urbanização, o
saneamento básico, o transporte urbano grátis, permitindo a descentralização
residencial. Forma com a saúde a existência sadia da população.
Outra área da formação da cidadania é a consciência. Assim a
denominamos pois deve ir além dos letramentos, deve buscar as reflexões e o
entendimento da diversidade humana, culturais e espirituais, vontades e
respeito ao seu par.
Também na construção da cidadania temos a vocalização. É a
viabilização de o cidadão poder se manifestar, inquirir, propor, criticar,
apoiar, enfim ter uma vida efetivamente participativa. Se foi difícil no
passado, restrita a comunicações escritas ou a grandes investimentos, a
comunicação virtual, a disponibilidade de equipamentos que colocam todos em
condição de dialogar, receber e emitir mensagens, abre a efetiva possibilidade
da vocalização.
Todos as entidades estatais, todos serviços públicos deverão
ter, com a dimensão adequada ao pronto atendimento, canais de comunicação com o
cidadão.
O outro pilar é a garantia dos direitos, que também pode ser
denominado segurança cidadã.
Quando se pergunta a qualquer pessoa qual sua preocupação
maior, a resposta cairá em algum tipo de segurança: dos filhos, da saúde, do
emprego, enfim, a vida segura é um desejo geral e normal.
Pesquisa recente realizada na Europa, em países ricos como
a Finlândia, sobre a renda mínima, encontrou ampla
aceitação das pessoas. O motivo mais apresentado foi a garantia da existência
que a renda mensal trazia e que possibilitava até realizar trabalhos
voluntários, que sempre fora o sonho de alguns (Monitor Mercantil, Marcos de
Oliveira, Fatos e Comentários, 12/5/2020).
O primeiro direito a ser garantido é o da existência digna,
de não ter que se sujeitar a imposições do poder financeiro ou do arbítrio de
quem quer que seja para continuar vivendo. Cabe ao poder público definir os
quantitativos mínimos mas suficientes para manter a existência. E ao órgão do
Estado Nacional responsável pela garantia dos direitos prover a execução.
Outros segmentos da garantia dos direitos estão na
capacidade do cidadão de movimentar o sistema policial e judiciário para que
lhe garanta. A garantia dos direitos é uma solução democrática para o cidadão
pôr em ação o Estado para defendê-lo por duas entidades hoje meritocráticas.
Denominamos Delegacia de Direitos onde profissionais da polícia e da justiça
atuarão na defesa da cidadania.
Dada a grandeza territorial do Brasil e a necessidade de
atender a todos os cidadãos, imaginamos, por exemplo, duas delegacias que se
desmembrariam de acordo com as demandas pelas áreas do direito: Delegacia do
Direito Público e Delegacia do Direito Privado, onde estaria o Registro Civil.
O amigo leitor estará perguntando pela manifestação popular.
Criticamos o que se denomina democracia e que é tão somente
um ritual que não espelha a vontade das pessoas mas sua catequização pelas
mídias comerciais.
Filósofos contemporâneos como Nancy Fraser, Axel Honneth,
Charles Taylor entre outros tratam da cidadania como paridade participativa.
Fraser afiança: “A paridade participativa é o padrão próprio para garantir as
reivindicações” (“Reconhecimento sem ética?”, palestra em 1996).
Precisamos colocar nossa criatividade para estruturar estes
projetos numa organização nacional, capaz de suportar as agressões e ameaças
coloniais, de que natureza sejam. É preciso combinar a representação popular.
Este trabalho apenas apresenta o objetivo do planejamento.
Cabe agora o aprofundado estudo do Brasil, em todas as dimensões, para concluir
e efetivar um Projeto Nacional. Algo que José Bonifácio de Andrada e Silva nos
apresentou quando de nossa Independência e lhe valeu um exílio, e o Brasil
nunca ficou Independente.
Fonte: Monitor Mercantil