Podemos observar que a dignidade da pessoa pode superar a
própria vida, sendo aplicada inclusive à morte. Basta ter em mente que a morte
é a última fase da vida, e de certa forma, o momento mais delicado pelo qual o
ser humano passa. Não se pode assentir que a proteção jurídica ignore a farta
relação existente entre vida e a morte
Tutelado pela Constituição Federal, o direito à vida estabelece-se
como alicerce de outros direitos e garantias para o ser humano. A carta magna
conserva os valores da pessoa humana, dentre outros, por meio dos princípios da
dignidade, da autonomia e da liberdade. A dignidade da pessoa humana, é um dos
fundamentos do Estado brasileiro e tem como propósito a tutela de todo e
qualquer cidadão que venha a se sujeitar às normas brasileiras, mesmo que
estrangeiro.
Deste modo, sendo impreterível o acatamento aos valores
constitucionais assegurados, é indubitável que o princípio da dignidade da
pessoa humana é a orientação máxima da axiologia instituída pela ordem
constitucional de 1988. A incorporação aos valores constitucionalmente
assegurados é tão incisivo, que possuem a prerrogativa de serem aplicados de
forma direta, sem que haja a necessidade de intercessão de uma norma ordinária,
sempre que essa não existir ou for de encontro com o quanto preceituado no
ordenamento1.
Partindo deste entendimento, podemos observar que a
dignidade da pessoa pode superar a própria vida, sendo aplicada inclusive à
morte. Basta ter em mente que a morte é a última fase da vida, e de certa
forma, o momento mais delicado pelo qual o ser humano passa. Não se pode
assentir que a proteção jurídica ignore a farta relação existente entre vida e a
morte. A partir do momento em que não se pode mais viver de maneira digna, tem
o cidadão a prerrogativa de possuir uma morte que corresponda às suas
expectativas, tendo a conclusão de sua jornada da forma menos dolorosa e mais
íntegra possível.
O grande empecilho para a aplicação dos métodos medicinais,
como eutanásia, para se pôr fim a vida de alguém, é que estes são vedados pelas
normas brasileiras. Em contrapartida, e se caso o paciente demandasse a forma
pela qual fosse tratado, no caso de, por exemplo, sofrer acidente ou ser
atingido por uma enfermidade em que a cura fosse dubitável? Tais circunstâncias
são as primícias das discussões sobre a possibilidade de implementação do
testamento vital no Brasil. Esse tipo de declaração já é amplamente utilizado
em país como Estados Unidos, (“living will”)2; Espanha (testamento vital)3;
Itália (testamento biológico); e França (“testament de vie”)4.
Como bem preceitua Flávio Tartuce, o “testamento vital” pode
ser definido a partir de um documento escrito, onde uma pessoa especifica qual
a forma que deseja ser tratada, quais os tratamentos que aceita ou recusa,
frente a uma doença que a impossibilite de manifestar plenamente sua vontade5.
Ainda, importante ressaltar que o instituto é espécie do gênero diretivas antecipadas,
que segundo Sanchéz, são um termo general que se refere a instruções feitas por
uma pessoa sobre futuros cuidados médicos que ela receberá quando esteja
incapaz de expressar sua vontade6.
Cumpre trazer à tela que, embora utilizado o termo testamento
vital, este desassemelha-se do popularmente conhecido testamento. Isto porque,
testamento é o ato pelo qual a vontade de alguém é declarada para o caso de
morte, com efeitos de reconhecer, transmitir ou extinguir direitos. Caio Mário
da Silva Pereira traz que o testamento é um negócio jurídico, unilateral,
personalíssimo, gratuito, solene, revogável, com disposições patrimoniais e
extrapatrimoniais e que produz efeitos post mortem7.
A nomenclatura “Diretivas Antecipadas de Vontade, ou DAV”, é
utilizada uma vez observado que o interessado, em um único documento, dispõe
sobre uma série de assuntos relacionados a tratamentos médicos (que recusa ou
aceita, em qual hospital deseja se tratar, onde deseja passar os últimos dias
de vida no caso de doença terminal ou irreversível, dentre outros relacionados)
e também pode dar outras instruções como cláusulas de representação ordinária e
empresarial, inclusive, especificar como deseja suas exéquias.
Observado o quanto disposto, é importante se atenta ao fato
de que, para a elaboração das diretivas antecipadas de vontade, não é
necessário que a pessoa encontre-se com doença terminal no momento da
declaração; basta que disponha no documento sobre como quer ser tratada no
futuro caso encontre-se inconsciente por motivo de doença sem possibilidades de
cura ou por decorrência de acidente cujo trauma acarrete situação de morte
iminente e irreversibilidade do quadro clínico (chamada morte encefálica).
Passado este ponto, ressaltamos que ainda não há uma
legislação especifica no país que trate sobre o testamento vital. Mesmo com
essa lacuna legislativa, o instrumento é utilizado, isto porque os particulares
possuem liberdade para instituir categorias de negócios não contemplados em
lei, desde que não ofenda o ordenamento jurídico. Sobre a ótica dessa
liberdade, o Conselho de Justiça Federal, na V Jornada de Direito Civil, com o
enunciado 527, que assim estatui: “é válida a declaração de vontade,
expressa em documento autêntico, também chamado ‘testamento vital’ em que a
pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não
tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a
sua vontade”.
O Conselho Federal de Medicina também já se manifestou sobre
o assunto, ao aprovar no dia 30 de agosto de 2012, a resolução 1.995/12 que permite ao paciente registrar seu
testamento vital na ficha médica ou no prontuário. O mecanismos veio como um
grande avanço, uma vez que vincula o médico à vontade do paciente.
Nesse momento de fragilidade, em meio a pandemia mundial de
covid-19, as palavras do médico norte americano Jeffrey Miltstein, tornaram-se
publicas ao direcionar carta à população americana. Traz ela que "Além da
urgência, o covid-19 transformou os cuidados no final da vida. Pacientes
gravemente enfermos em hospitais sobrecarregados com menos pessoal ideal e
políticas de não-visitantes podem ser excluídos do advogado que pode ter
certeza de que seus desejos são realizados. Especialmente agora, o seu advogado
mais seguro é o seu documento de planejamento avançado, que deve fazer parte do
seu prontuário eletrônico. Você pode ter a sorte de pedir a um médico,
parceiro, filho, parente ou amigo que lhe pergunte sobre seus desejos de
cuidados caso você fique gravemente doente e não possa falar em seu próprio
nome. Eu imploro, porém, que você aja agora, induzido ou não. As discussões
sobre o fim da vida podem parecer mórbidas, quase como se você estivesse
convidando um infortúnio. Na verdade, eles são uma maneira de reconhecer o modo
como você vive, para que seus valores e prioridades possam ser comemorados e
respeitados, mesmo que você não consiga se comunicar. Essas conversas têm maior
urgência agora, enquanto o covid-19 coloca todos nós em um risco mais
imprevisível de doenças graves. Iremos sair dessa pandemia de feridos, mas com
maior sabedoria. Mover as conversas e diretrizes em fim de vida para o
mainstream seria um presente duradouro nascido da adversidade.8"
Neste cenário, dialogar sobre a expectativa de mortes na
pandemia, iria auxiliar as pessoas sobre a importância da manutenção do
isolamento, bem como sobre os benefícios de um testamento vital. Pode-se,
então, certificar que para ser realizado a DAV, em especial no contexto de
covid-19, o cidadão necessita ter a consciência de poderá ficar em estado
grave, sendo necessário abordar as expectativas/desejos para com o futuro.
A relevância do testamento vital se faz presente nesse
momento, sob o entendimento do direito à autodeterminação, podendo este ser
positivo ou negativo. Flávio Tartuce elucida que, a partir da autonomia
privada, que decorre dos princípios constitucionais da liberdade e dignidade,
admite-se a disposição de vontade no sentido de recusa a tratamentos que gerem
sofrimentos físicos e psíquicos, tratando-se de exercício admissível da vontade
humana9.
A fim de trazer uma maior segurança ao mecanismo, tramita
junto ao Senado Federal, o projeto de lei 149/18. A proposição, de autoria do senador Lasier
Martins - PSD/RS, visa estabelecer a possibilidade de toda pessoa maior e capaz
declarar, antecipadamente, o seu interesse de se submeter ou não a tratamentos
de saúde futuros, caso se encontre em fase terminal ou acometido de doença
grave ou incurável. Nas palavras do autor, a matéria é a concretização do reconhecimento
da autonomia dos pacientes, especialmente daqueles que se encontram em situação
de maior vulnerabilidade – os pacientes em fase terminal de doença e que não
estão em condições de expressar a própria vontade10.
Com isto, deve-se resguardar que o princípio da dignidade da
pessoa humana fundamenta o direito a uma morte íntegra para qualquer pessoa.
Aquele que se encontra doente e esteja em sua plena consciência pode determinar
onde e como deseja passar seus últimos dias de vida. Ainda assim, a regulação
do testamento vital é mais um passo para validar o entendimento de que o a
autodeterminação das pessoas é inalienável e que é imperioso que as discussões
acerca da declaração prévia de vontade do paciente ocorram de forma efetiva.
Assegurar a oportunidade de escolha de cada um é conferir a
este o benefício de continuar a executar os valores que o mantiveram em vida,
garantindo-lhe a autonomia para definir os seus padrões de uma boa transição
para morte. Nesta seara, o testamento vital é fortalecedor de um mecanismo que
deve urgentemente ser debatido, de modo a se tornar, junto ao mundo jurídico,
uma norma eficaz, estabelecendo caminhos para lograr a almejada dignidade da
pessoa humana.
Fonte: Migalhas