Assunto exaustivamente comentado, fugindo de nichos
específicos da Academia e passando para pautas do Supremo Tribunal Federal, a
proteção de dados pessoais e, consequentemente, a Lei Federal nº 13.709/2018 (a
LGPD) vêm trazendo muito o que falar. A LGPD já pode ser considerada como uma
das Leis de maior Vacatio Legis (ainda em curso, por sinal) do nosso
ordenamento jurídico.
Sobre a LGPD, naturalmente ainda pairam algumas dúvidas a
quem busca estudá-la e também para aqueles que vêm buscando adequar suas
atividades a esta nova realidade. Dentre os desafios relativos a este novo
paradigma da preservação da privacidade e proteção de dados pessoais,
certamente apontar a base legal ideal para cada atividade de tratamento de
dados pessoais vem demandando certo tempo e dedicação.
A despeito das especificidades de cada uma das bases legais
que a LGPD trouxe, buscando outras formas de tratamento de dados pessoais para
além da necessidade de obtenção do consentimento, identifica-se como sendo um
alicerce para isto a base legal do legítimo interesse – a qual será abordada
neste artigo.
Aqui, busca-se apresentar uma visão mais clara sobre alguns
cenários que podem se utilizar do legítimo interesse, bem como questões que
deverão ser levantadas e digeridas pelos agentes de tratamento de dados
pessoais e pela futura Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD),
sobretudo quanto a certos pontos que ainda estão pendentes de regulamentação.
O legítimo interesse (ou interesse legítimo) é encontrado
primeiramente no inciso IX, do artigo 7º, da LGPD, determinando ali que, a
atividade de tratamento de dados poderá ser realizada quando para atender
interesses legítimos do controlador ou de terceiros. Ainda, põe que tal
tratamento só poderá ser feito neste sentido se respeitados os direitos e
liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção de dados pessoais – os
quais devem prevalecer.
Disso, respeitados sempre os direitos e liberdades
fundamentais dos titulares de dados pessoais, faz-se necessário notar que o
legítimo interesse não é deste, mas do controlador ou de terceiros. Esta base
legal permite, por exemplo, o tratamento de dados para apoiar e promover
atividades de tratamento de controladores de dados, bem como para protegê-los,
em relação ao titular, do exercício regular de seus direitos ou prestação de
serviços que o beneficiem.
Também, o legítimo interesse se destaca das demais bases
legais por ser um tanto elástico em sua acepção e por não conter balizas
taxativas, viabilizando atividades de tratamento de dados que estariam
inviabilizadas, seja por um engessamento atinente à obtenção do consentimento
ou pela ausência de insumos, tais como processo judicial em curso,
estabelecimento de vínculo contratual ou cumprimento de dispositivo regulatório.
Isto é: o legítimo interesse não traz consigo um ponto de
ancoragem específico como nas outras bases, permitindo assim que o controlador
dos dados pessoais avalie certas questões para nortear tomadas de decisão
quanto a atividades de tratamentos que venham a se valer desta base legal.
Embora subjetivo em essência e nomenclatura, se comparado
com as demais bases legais, o legítimo interesse não pode ser entendido como
sendo um cheque em branco ou um “Super Trunfo” nas mãos do controlador, para se
legitimar atividades de tratamento. Aqui, não somente devem estar presentes
tons de razoabilidade, mas também devem ser percebidos, os interesses do
controlador (ou de terceiro), como sendo, de fato, “legítimos”.
Logo, atividades de tratamento de dados pessoais em contexto
de ilegalidade, de antieticidade ou de abuso aos direitos e liberdades
individuais dos titulares de dados não poderão ser avalizadas pela base legal
do legítimo interesse, pois aqueles interesses não se mostram como sendo “legítimos”.
São alguns exemplos de aplicação do legítimo interesse:
Uma empresa promove, por meio de sua plataforma de e-commerce (em
formato de marketplace), a intermediação de venda de produtos e serviços
entre consumidores (titulares) e fornecedores (terceiros). Para além das
operações de compra/venda, ela trata dados pessoais ao produzir
relatórios analíticos sobre as vendas (contendo informações e dados pessoais
não necessariamente anonimizados) aos fornecedores da plataforma/parceiros
comerciais, valendo-se quando da vigência da LGPD, do legítimo interesse de
terceiros.
Ao promover eventos e palestras institucionais para
possíveis clientes, determinada empresa recebe e tem acesso a cartões de visita
dos participantes dos eventos. Esta empresa, que não buscou qualquer
consentimento à época da palestra institucional, e busca agora realizar o
primeiro contato com aqueles participantes, pode se utilizar do legítimo o
interesse para contatá-los (tratar seus dados pessoais). Entende-se como
legítimo o interesse do controlador em buscar o primeiro contato com estes
participantes a fim de ampliar seu networking e/ou propor
oportunidades de negócios, vez que os titulares que se inscreveram ou que
forneceram seus cartões de certa forma esperariam um contato neste sentido.
Porém, é necessária a atenção neste caso. Uma vez que o
primeiro contato foi realizado, a finalidade do controlador foi satisfeita, ou
seja, alcançar o titular dos dados. O cadastro do titular dos dados em uma base
de envio periódico de marketing será visto como necessário, à sua realização, a
coleta de seu consentimento, criando assim uma nova atividade com os dados
tratados.
Num contexto de relações de trabalho, determinada empresa,
buscando melhorar o desempenho de seus funcionários, adota políticas de
bem-estar e promove pesquisas de clima com certa habitualidade. Tais práticas
revelam o interesse do controlador como sendo legítimo, vez que busca perceber
de seus colaboradores oportunidades de melhoria estrutural e/ou cultural, as quais
podem ocasionar uma melhora no desempenho ou na redução da taxa de turnover,
por exemplo.
É legítimo também o interesse na a prevenção a fraudes. A
fraude é um ato ilícito que violaria não só os direitos de agentes de
tratamento, como também de titulares de dados pessoais e põe em xeque a
estrutura do nosso ordenamento jurídico, pelo que é válido que o controlador
faça uso de mecanismos que previnam e coíbam tal ato.
Para estas e outras hipóteses que se valem do legítimo
interesse, ressalte-se que os direitos dos titulares de dados pessoais,
incluindo o direito à informação, seriam aplicáveis.
Além disso, é válido frisar que, no artigo 10 da LGPD, o
Legislador se certificou de atribuir o uso do legítimo interesse somente a
situações concretas, prezando-se pela utilização de dados pessoais estritamente
necessários, para atendimento a determinada finalidade, e pela transparência
para com o titular sobre a atividade de tratamento, e sob a sujeição de
eventual pedido da ANPD para apresentação de relatório de impacto à proteção de
dados sobre o tratamento específico.
Assim, quando da vigência da LGPD, o controlador que se
valer do legítimo interesse como base legal para atividade(s) de tratamento de
dados pessoais, precisará ser transparente para com titular dos dados,
informando-o sobre o que é feito com os dados pessoais, resguardando aqui os
segredos comerciais e industriais, e sobre eventuais mecanismos para controle,
segurança e mitigação de danos.
A partir deste dispositivo, pretende-se reforçar que o
controlador não deverá tratar dados pessoais indiscriminadamente, sem um plano
ou finalidade específicos, especialmente quando se valer do legítimo interesse
Disso, para que possam se valer do legítimo interesse, os
agentes de tratamento de dados deverão se pautar principalmente na minimização
dos dados pessoais tratados e na transparência perante os titulares, bem como
na boa-fé e demais princípios de proteção de dados.
Ainda, apesar de não estar expressamente consignado no corpo
da LGPD, é recomendável que os agentes de tratamento de dados realizem uma
avaliação prévia às atividades que vão se valer do legítimo interesse, a fim de
produzir materiais para accountability e para mensurar possíveis
riscos.
Tal avaliação seria pautada em três pontos: i) objetivo
pretendido a partir do tratamento; ii) necessidade do tratamento;
e, iii) ponderação entre o tratamento e os direitos e liberdades
individuais dos titulares de dados pessoais. É necessário perceber as nuances
destes pontos ao promover uma reflexão sobre alguns questionamentos, tais como:
Existe algum conflito de interesse evidente entre
controlador/terceiro e titular de dados pessoais?
Quais os riscos envolvidos neste tratamento?
É esperado pelo titular que o controlador promova esta
atividade de tratamento?
O Legítimo interesse pautado neste tratamento é de fácil
compreensão pelo titular?
Existe a possibilidade de entenderem esta atividade de
tratamento de dados pessoais como uma atividade abusiva?
Partindo desta avaliação prévia, pode-se observar e assumir
certos riscos com relação ao tratamento de dados pessoais pretendido,
valendo-se o legítimo interesse, quando da vigência da LGPD.
A fim de auxiliar na avaliação sobre o uso do legítimo
interesse, elaboramos a equação abaixo, para demonstrar, de maneira um tanto
quantificada, aos agentes de tratamento sobre a adoção desta base legal.
Vejamos:
i) Se (Prp)Propósito > (NT)Necessidade de Tratamento +
(DT)Direitos do Titular ? ao optar pelo legítimo
interesse, há uma assunção de riscos pelo controlador
ii) Se (Prp) = (NT) + (DT) ? há uma
hipótese de tratamento de dados pessoais mais confortável, valendo-se do
legítimo interesse.
Trocando em miúdos:
Caso se verifique, in casu, que o Propósito é maior que
a Necessidade mais os Direito do Titular de dados (Prp > NT + DT), valer-se
do legítimo interesse implicaria um cenário mais frágil ao controlador, com
relação à proteção de dados pessoais, pelo que pode não ser a base legal mais
apropriada para tornar tal atividade de tratamento legítima.
Por outro lado, verificando-se que o Propósito é menor ou
igual à Necessidade mais os Direitos do Titular de dados ( Prp = NT + DT),
valer-se do legítimo interesse não traria tantos riscos relacionados à proteção
de dados pessoais, pelo que pode ser adotado no caso concreto e trazer certo
conforto jurídico e/ou operacional ao controlador.
As hipóteses acima levantadas certamente serão objetos de
avaliação e discussão em âmbito administrativo e judicial, pelo que, para
dirimir dúvidas presentes e futuras acerca do legítimo interesse, faz-se
necessária a formatação e operacionalização da ANPD. Desta maneira,
interpretações tropicalizadas de entendimentos importados da Europa e
exercícios de futurologia podem ser deixados em segundo ou terceiro plano,
dando vez para o endosso pragmático de opiniões e guidelines brasileiras.
Por isso, os novos paradigmas trazidos pela LGPD e as
janelas de possibilidades para tratamento de dados pessoais, que conciliam a
autodeterminação informativa e o respeito à privacidade com o desenvolvimento
econômico e tecnológico, por exemplo, vão permitir que a inovação dê o tom para
as mais variadas formas de relacionamentos e negócios jurídicos no Brasil.