Há pouco mais de dois anos, em 26 de junho de 2018, o
plenário do CNJ decidiu que os cartórios de notas de todo o país não poderiam
lavrar escrituras públicas de reconhecimento de relacionamentos poliafetivos
como uniões estáveis. O motivo: a suposta falta de respaldo jurídico no
ordenamento brasileiro.
Na ocasião, o relator do processo, ministro João Otávio de
Noronha, chegou a justificar que as escrituras públicas serviriam apenas para
manifestações lícitas de vontade.
Ocorre, entretanto, que integrar núcleo afetivo composto por
três ou mais pessoas, embora esteja fora dos padrões sociais em vigor,
naturalmente não importa em ilícito de qualquer natureza, por absoluta falta de
previsão legal nesse sentido.
A questão central do reconhecimento das uniões poliafetivas
em cartório não tem a ver, portanto, com a validade do ato. Em que pese a
decisão do CNJ, tal escritura, a nosso ver, seria válida, por ter um objeto
lícito, qual seja: a declaração de que os partícipes constituíram uma entidade
familiar a partir de uma relação conjugal caracterizada como união estável. Não
se viola norma jurídica alguma com isso, pois obviamente não há lei no Brasil
que proíba as relações não monogâmicas. O ponto é outro, referente à eficácia do
ato, já que mesmo tendo lavrado validamente a escritura, tais pessoas não
teriam a garantia de, posteriormente e em caso de conflito, o Judiciário
considerar tal documento hábil a produzir, nas relações poliamorosas, os
efeitos próprios da união estável, como regime de bens, herança e direito a
alimentos, dentre outros.
O artigo 226, caput, da Constituição Federal, pela sua
natureza de cláusula geral de inclusão, ao dispor que "a família,
base da sociedade, tem especial proteção do Estado", tutela não apenas os
núcleos familiares que constam expressamente no texto constitucional, mas todos
os demais. Por tal motivo, a família poliafetiva está implicitamente
recepcionada na norma constitucional, mas, a despeito disso, ainda não recebe
proteção expressa na legislação ordinária, especialmente no Código Civil.
Tais relacionamentos costumam ser duradouros e ostensivos,
em que os seus integrantes se tratam não apenas na intimidade, mas também
publicamente, como "casados" e, mais importante, são baseados no
afeto, na solidariedade mútua e na construção de um projeto comum de vida. Ou
seja, ostentam todos os elementos caracterizadores de uma típica estrutura
familiar.
Entretanto, os partícipes de relações poliamorosas vivem
atualmente grande insegurança jurídica. A elaboração de escritura pública seria
uma tentativa de minorar esse problema, uma forma de buscar a incidência do
direito legislado, especialmente as normas do Código Civil referentes à união
estável, a fim de alcançar certos marcos normativos atinentes ao direito de
família, como forma de tutela de interesses existenciais e patrimoniais dos
consortes.
Conforme foi dito, o CNJ barrou essa tentativa.
Como alternativa, haveria outro caminho além do Direito
legislado? Defendemos que sim! Os consortes de relações poliafetivas podem
criar suas próprias regras de convivência, referentes a questões existenciais e
patrimoniais, através de instrumentos particulares que, por sua natureza, não
são elaborados em cartório. Ou seja, na medida em que o Direito legislado é insuficiente
para oferecer respostas adequadas a esse fato social, uma opção válida e eficaz
será a regulação de interesses mediante o uso de contratos.
Uma questão essencial difere esse novo caminho da tentativa
anterior, baseada na adoção de escritura pública: agora, não se pretende
alcançar os efeitos jurídicos próprios da união estável previstos na legislação
vigente, mas, sim, convencionar todos os efeitos jurídicos da relação afetiva,
com fundamento na autonomia privada dos seus partícipes. Com isso, ganha-se
previsibilidade e segurança, tornando possível olhar para o futuro e realizar
um planejamento familiar, desvinculando-se de questões subjetivas e, portanto,
variáveis. Em outras palavras: não mais depender da interpretação do Judiciário
no sentido de o relacionamento poliafetivo ser ou não união estável.
Por meio de contratos celebrados antes do início ou no curso
da relação, é possível estabelecer regras voltadas às questões não econômicas
da vida conjugal e, ainda, aos aspectos patrimoniais.
Em primeiro lugar, é possível a adoção de contrato que
estabeleça o momento do início da relação, bem como defina a sua natureza
familiar. Ato contínuo, admite-se que sejam estipuladas regras relativas à
divisão dos encargos domésticos, definição do domicílio familiar e até mesmo a
questões que digam respeito a aspectos da intimidade dos seus integrantes, como
as práticas sexuais admitidas e a possibilidade, ou não, de práticas sexuais
fora do núcleo conjugal, com outros(as) parceiros(as).
Na esfera patrimonial, é possível adotar regramento que se
assemelhe à sistemática dos regimes de bens previstos para o casamento ou união
estável. Através de contrato, é lícito convencionar quais bens integrarão o
patrimônio comum do trio ou quarteto e quais pertencerão exclusivamente a cada
um dos consortes. Nada obsta que a disposição seja no sentido de que todos os
bens adquiridos no curso do relacionamento pertencerão em partes iguais a todos
os consortes ou, o inverso, mediante a estipulação de não haver qualquer
patrimônio comum, pertencendo cada bem, de forma exclusiva, ao adquirente.
Outras combinações são possíveis, a depender dos interesses próprios dos
consortes. Nesta toada, é recomendável definir, também, a forma de
administração de eventual patrimônio comum.
Ainda nessa seara, parece muita salutar a estipulação, em
contrato, da obrigação de prestar auxílio econômico ao consorte que demonstrar
necessidade por ocasião do eventual término do relacionamento, através de
construção voltada a substituir os alimentos previstos no Código Civil.
Inclusive, institutos tradicionais do Direito das obrigações
podem ser utilizados para fazer frente ao não cumprimento de tais disposições,
como cláusula penal, astreintes etc. Simplesmente não há qualquer obstáculo à
fixação de multa referente ao não cumprimento de deveres ligados à família.
O rol aqui descrito, dos contratos passiveis de serem
adotadas no âmbito da família poliafetiva, é meramente exemplificativo. As
possibilidades são gigantescas e deverão ser moldadas às peculiaridades do caso
concreto.
Em suma, a contratualização das relações poliafetivas é um
caminho recomendável para, com segurança jurídica, assegurar a construção de um
projeto de vida que traduza com exatidão os anseios e necessidades de cada
pessoa, como forma de resguardar o livre desenvolvimento da sua personalidade.
Questão central: esses contratos são válidos?
Naturalmente, só poderão ser celebrados por pessoas adultas
e civilmente capazes. E, na medida em que não há previsão legal expressa, são
contratos atípicos, logo, não há forma prescrita em lei a ser observada.
Assim, no plano da validade de tais negócios jurídicos, a
questão central diz respeito à análise da licitude do seu objeto.
É necessário destacar que não há norma que proíba a
celebração dos referidos contratos. Na verdade, certa resistência em sua
utilização advém da leitura de que o Direito de Família consistiria em ramo à
parte no âmbito do Direito Civil, centrado na tutela de interesses existenciais
e, portanto, segundo essa ordem de ideias, incompatível com o exercício amplo
da autonomia privada.
O direito à autonomia privada tem fundamento no direito
fundamental à liberdade, conforme disposto no artigo 5º da Constituição
Federal. Embora o exercício da liberdade individual esteja mais associado ao
direito das coisas, direito das obrigações e ao direito contratual, não existe,
de forma apriorística, qualquer restrição à sua aplicação também no âmbito do
direito de família.
Necessário consignar que o exercício da autonomia privada,
nos moldes aqui propostos, não se choca com o solidarismo próprio das relações
de família. A liberdade de fazer as próprias escolhas deve ser concebida à luz
da tábua valorativa da Magna Carta, a qual também está limitada. De modo que
terão validade apenas as convenções que resguardem a dignidade dos consortes e
que não representem violação a seus direitos fundamentais em nome de interesses
egoísticos.
Além disso, assegurar a cada pessoa que decida por si, no
âmbito da sua intimidade, a formulação mais adequada ao seu projeto de vida,
está em absoluta conformidade com o princípio da intervenção mínima do Estado
nas relações de família, expressamente previsto no artigo 1.513 do Código
Civil. De modo que, não havendo interesse de vulnerável nem violação a direitos
fundamentais dos contratantes, a intervenção estatal revela-se indevida.
Ademais, não resguardar uma ampla esfera de autodeterminação
em tais relações acabaria por contrariar a própria sistemática constitucional
de proteção da família. A família constitucionalizada deixou de ter um fim em
si, um valor intrínseco. Merece a tutela constitucional apenas na medida em que
venha a cumprir certa função, que é ser um núcleo propício à promoção da
dignidade dos seus integrantes, o locus adequado à busca da felicidade
e ao livre desenvolvimento da personalidade dos seus partícipes.
A concepção tradicional da família, rígida e
institucionalizada, não atende os mandamentos constitucionais, entre várias
razões, especialmente por não admitir que cada pessoa delimite os contornos e a
dinâmica das próprias relações familiares.
A contratualização das relações de família tem amparo
constitucional porque está assentada na possibilidade de cada um moldar o seu
projeto familiar a partir dos seus desejos mais íntimos, forte na ideia de que
família é meio, e não fim. Especialmente naqueles casos que envolvem entidades
familiares que, embora em conformidade com o direito posto, não estão
expressamente recepcionadas na legislação vigente, como é o caso das famílias
oriundas de relacionamentos poliafetivos.
A contratualização das relações familiares, por todo o
exposto, é um caminho não apenas possível como também necessário para assegurar
a cada pessoa o direito de viver a própria intimidade de forma plena, sem
ingerências estatais, que se justificam nesta quadra da história apenas em
situações muito excepcionais.
E, no caso da união poliafetiva, a adoção dos instrumentos
descritos anteriormente é ainda mais urgente, pois, a despeito de se tratar de
uma típica relação familiar, que entrelaça afeto, solidariedade e uma dimensão
patrimonial, até o momento tem sido relegada a um espaço de "não
direito" e, consequentemente, de marginalização.
Na medida em que a resposta obtida até o momento é de que
tal relacionamento não estaria identificado com qualquer instituto do Direito
de Família legislado, que os partícipes criem suas próprias regras de
convivência. Com base na liberdade assegurada pelo ordenamento jurídico pátrio,
a partir de um planejamento pessoal e patrimonial que expressem exatamente suas
escolhas de vida.
Fonte: Consultor Jurídico