A origem do comodato remonta à história primitiva da
humanidade. O ínclito Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda aponta, inclusive,
que existem referências ao empréstimo de uso antes mesmo de Cristo — não como
uma figura jurídica, mas sim como uma relação social.
Contemporaneamente, o comodato é amplamente regulamentado.
Nos termos do Código Civil, o comodato (espécie do gênero empréstimo) compreende
a cessão gratuita do uso e gozo de bem infungível a terceiro (o comodante cede
a coisa ao comodatário). Em razão da própria gratuidade, cuida-se o comodato de
contrato unilateral, posto que o comodante atribui uma vantagem concreta ao
comodatário, sem estabelecer uma contraprestação equivalente. O comodatário,
por sua vez, assume obrigações que, indiretamente, importarão em benefício ao
comodante, tais como a conservação do bem, o qual deverá ser restituído ao
final do termo estipulado.
Em virtude de suas características, é praticamente uníssono
o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que não é possível a aquisição
da propriedade quando a posse decorre do comodato. Isso porque, segundo tal
vertente, a posse originada em contrato de comodato é precária, por mera
tolerância do proprietário, que tão somente permite o uso do bem, sem, todavia,
dispor do seu domínio. Tal entendimento, entretanto, não é o mais adequado.
Evitar-se-á, aqui, tecer grandes considerações sobre a
posse, em razão do espaço limitado do presente artigo e da extensão da matéria.
Em síntese, a posse, no Brasil, é instituto de fato, tendo sido adotada a
teoria objetiva, de Rudolf von Ihering. O Código Civil, em seu artigo 1.196,
dispõe que "considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o
exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade". Em
outras palavras, basta que o indivíduo use, goze e disponha da coisa, bem como
tenha o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou
detenha.
Como se sabe, havendo posse justa, mansa, pacífica, contínua
e exercida com animus domini, é possível a aquisição da propriedade por
usucapião. A problemática gira em torno do primeiro requisito: posse justa.
O Código Civil, em seu artigo 1.200, dispõe que "é
justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária". A ausência
de violência, clandestinidade e precariedade referidas no dispositivo citado
dão ensejo ao conceito de posse justa e a presença delas, por derradeiro,
perfazem os chamados vícios da posse.
Atenhamo-nos, aqui, à posse precária. É precária a posse
daquele que, tendo recebido a coisa para depois devolvê-la, indevidamente a
retém, quando a mesma lhe é pedida ou solicitada. Segundo o entendimento
majoritário, o vício possessório decorrente da precariedade não convalesce, de
forma que o comodatário, em qualquer hipótese, não poderá adquirir o bem por
usucapião.
Todavia, segundo Henrique Almeida Alves, "(...) nota-se
hoje uma ponderação a esse conceito. Defendem alguns a possibilidade de
transformação do caráter da posse, inicialmente precária, existindo a desídia
do proprietário somado a um aproveitamento econômico exclusivo do precarista,
que passaria a ter exercício pleno, dos poderes inerentes à propriedade,
cumprindo sua função social e legitimando o usucapião. Tal modificação começa a
ser presenciada paulatinamente em nossa jurisprudência (...)".
E, de fato, o entendimento pela possibilidade de
transformação do caráter da posse soa o mais razoável e em consonância com as
disposições constitucionais. Não se pretende aqui desvalorizar o direito de
propriedade, posto que a própria Constituição Federal garante, em seu artigo
5º, o direito de propriedade, concedendo-lhe o status de direito fundamental
inerente aos cidadãos brasileiros.
Contudo, não se pode, da mesma forma, deixar de observar que
o direito de propriedade não é absoluto. O direito de propriedade não pode
exceder o bem estar da coletividade, sendo de rigor uma busca pelo encontro de
um equilíbrio entre o interesse coletivo e o interesse individual.
O exímio Silvio de Salvo Venosa, sobre o assunto, ensina que
"a justa aplicação do direito de propriedade depende do encontro do ponto
de equilíbrio entre o interesse coletivo e o interesse individual. Isso nem
sempre é alcançado pelas leis, normas abstratas e frias, ora envelhecidas pelo
ranço de antigas concepções, ora falsamente sociais e progressistas,
decorrentes de oportunismos e interesses corporativos. Cabe a jurisprudência
responder aos anseios da sociedade em cada momento histórico".
Com o advento da Emenda Constitucional nº 26, o poder
constituinte reformador buscou ratificar o caráter fundamental da moradia em
nosso ordenamento jurídico, enraiando tal interpretação para todo texto
infraconstitucional, dando maior guarda ao direito a moradia.
É justamente neste prisma de efetivação material de direitos
que se propõe a possibilidade, em certos casos, de obtenção da posse ad
usucapionem pelo comodatário, como meio de sanar a hipertrofia de direitos
fundamentais. A concepção de que nada impede que o caráter originário da posse
se modifique soa como a mais acertada. Nesse prisma, cola-se importante julgado
proferido pelo Superior Tribunal de Justiça:
"Usucapião extraordinário. Comprovação dos requisitos.
Mutação da natureza jurídica da posse originária. Possibilidade.
usucapião
extraordinário – art. 550, CC – reclama, tão-somente: a) posse mansa e
pacífica, ininterrupta, exercida com animus domini; b) o decurso do prazo de
vinte anos; c) presunção juris et de jure de boa-fé e justo título, ‘que não só
dispensa a exibição desse documento como também proíbe que se demonstre sua
inexistência.’ E, segundo o ensinamento da melhor doutrina, ‘nada impede que o
caráter originário da posse se modifique’, motivo pelo qual o fato de ter
havido no início da posse da autora um vínculo locatício, não é embaraço ao
reconhecimento de que, a partir de um determinado momento, essa mesma mudou de
natureza e assumiu a feição de posse em nome próprio, sem subordinação ao
antigo dono e, por isso mesmo, com força ad usucapionem. Precedentes. Ação de
usucapião procedente. Recurso especial conhecido, com base na letra ‘c’ do
permissivo constitucional, e provido".
É de conhecimento geral que, muitas vezes, o comodato é
utilizado como uma forma de manter uma propriedade sem custos. O comodante cede
a coisa ao comodatário e, em cristalina desídia, esquece-a, somente se
interessando quando conveniente, a seu bel-prazer e às custas do comodatário.
Frisa-se, na usucapião, os requisitos essenciais a serem
observados são o tempo, a posse mansa e pacífica e o animus domini. Preenchidos
tais requisitos, ainda que o início da posse tenha se dado por meio de comodato
(que, a princípio, sinaliza detenção), o entendimento mais razoável é o de que
não há que se falar em impossibilidade de transmutação da posse, caso haja
desídia do proprietário. Tal entendimento, crescente e já reconhecido pelo
Superior Tribunal de Justiça, consagra a função social da propriedade e o
próprio princípio da dignidade da pessoa humana.
É imprescindível a adoção de princípios constitucionais que
viabilizem a posse ad usucapionem do comodatário, até mesmo como uma forma de
se afastar o enriquecimento sem causa do comodante.
A nova ordem jurídica vigente, que, como se sabe, é pautada
na defesa dos interesses esculpidos na Constituição Federal, torna
imprescindível uma remodelação dos conceitos absolutos face aos novos
princípios estruturais do Estado democrático de Direito. Por isso, a
transmutação da posse precária, de forma que se possibilite a usucapião em
casos de evidente desídia do comodante, é uma forma eficaz de se garantir a
função social da propriedade e a própria dignidade humana do comodatário.
Fonte: Consultor Jurídico