Espera-se avalanche de demandas pautadas em violações à
Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais
Desde que foi sancionada, a Lei Geral de Proteção de Dados
Pessoais (LGPD) sempre enfrentou ceticismo quanto à sua efetividade, com
constantes questionamentos sobre se a legislação iria ou não pegar. A entrada
em vigor repentina da lei sanou completamente essa dúvida. Em menos de uma
semana a partir da sua vigência, a LGPD já foi base para o ajuizamento de ações
civis públicas pelo Ministério Público e de ações judiciais de titulares de
dados.
Recentemente, um caso julgado em primeira instância em São
Paulo deixou claro o que deve vir pela frente: uma avalanche de demandas
judiciais pautadas em violações à LGPD. Ainda que essa primeira sentença não
seja fundamentada primordialmente na LGPD, as menções feitas à nova legislação,
em um caso ajuizado muito antes de sua entrada em vigor, mostram a relevância
da lei no cenário atual e como sua aplicação deve passar a ser constante pelo
Poder Judiciário.
Embora não houvesse dúvidas de que o Judiciário seria
intensamente envolvido na interpretação da LGPD, a precipitação na aplicação da
legislação é preocupante. Na ausência de uma cultura prévia de privacidade e da
regulamentação necessária para preencher as lacunas existentes na LGPD, a
existência de múltiplas decisões ao redor do país, potencialmente conflitantes,
ampliará a insegurança jurídica.
Neste momento inicial, seria vital que já tivéssemos a
Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) em funcionamento. Como prevê a
legislação, esse é o ente que será responsável não só pela regulamentação da
lei, mas também — e principalmente — pela interpretação da LGPD, pela indicação
de diretrizes, de caminhos a serem seguidos e de concepções a serem adotadas.
Cabe à ANPD exercer o papel de órgão central de interpretação da lei.
A falta da ANPD trará problemas concretos e imediatos na
aplicação da LGPD. A decisão judicial referida acima é um bom exemplo dos
desafios de interpretação da legislação, especialmente em relação a dois pontos
controversos e que são abordados sem grande aprofundamento pela sentença: a
responsabilidade civil prevista na lei e a aplicação do dano moral in re ipsa
(quando o dano é presumido).
Diferentemente do que prevê o Código de Defesa do
Consumidor, a LGPD não traz uma disposição explícita sobre a responsabilidade
civil dos agentes de tratamento ser objetiva, na qual a comprovação de culpa ou
dolo é irrelevante. Pelo contrário, a disposição do artigo 43 da legislação dá
clara margem para se indagar sobre a culpa do agente na pretensa violação, a
indicar que a responsabilidade prevista na LGPD seria subjetiva. Caso a
intenção do legislador fosse efetivamente criar uma responsabilidade objetiva,
teria feito essa inclusão de forma literal ao texto, delineando que o agente
seria responsável independentemente de culpa.
Sobre o dano moral in re ipsa, no qual a mera existência do
fato geraria abalo psicológico à vítima, a sua aplicação de forma irrestrita no
âmbito da LGPD traria situações esdrúxulas. Em um cenário hipotético no qual
uma organização sofresse um vazamento de dados cujos únicos dados vazados
fossem o primeiro nome de seus clientes, sem qualquer outra informação,
conceder uma indenização por dano moral na base da presunção desse dano poderia
ser desproporcional.
Esses são só dois pontos polêmicos na interpretação da LGPD,
entre tantos outros que serão enfrentados ao longo dos próximos meses pelo
Poder Judiciário, diante dos hiatos que existem na legislação e que levarão um
bom tempo para serem remendados pela ANPD.
Indiscutivelmente, os tribunais devem ficar agitados nas
discussões relativas à LGPD. Embora tenha sido propagada uma ideia equivocada
de que a legislação só teria dentes a partir de agosto de 2021, com a entrada
em vigor das sanções administrativas da lei, fato é que a aplicação da LGPD já
começou e, a partir de agora, titulares de dados se socorrerão ao Judiciário
caso entendam que seus dados pessoais tenham sido tratados indevidamente. Pelo
andar da carruagem, a LGPD chegou com força total e chegou para ficar.
Fonte: O Globo