O que ainda está por vir na implementação do processo
digital
Empresários e juntas comerciais vem enfrentando, há cerca de
um mês, uma grande dor de cabeça para resolver a seguinte questão: como
verificar assinaturas eletrônicas nos documentos empresariais levados a
registro? Algumas assinaturas são aceitas, outras não. O que tem ocorrido?
No dia 23.9.2020, foi publicada a Lei n. 14.063, resultado
da conversão da MP n. 983, dispondo sobre “o uso de assinaturas eletrônicas em
interações com entes públicos”, dentre outros temas análogos.
A nova norma brasileira seguiu o Regulamento n. 910 do
Parlamento e do Conselho Europeu, o qual instituiu o eIDAS em 2014 (em
inglês, Eletronic Identification, Authentication and Trust Services –
o sistema eletrônico de gerenciamento de assinaturas e transações digitais
entre partes, incluindo a Administração Pública, na União Europeia).
Com isso, além da chamada assinatura qualificada adstrita à
Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil), implementada desde
2001 pela MP n. 2.200, a legislação brasileira passou a contar com duas novas
formas de assinaturas eletrônicas: as assinaturas simples e as assinaturas
avançadas. Basicamente, trata-se de serviço digital oferecido por empresas que
não integram a ICP-Brasil. Uma espécie de certificação privada.
O problema tem sido a confusão entre o que configura
documento digital, documento físico (isto é, o papel) e a reprodução de
documento digital.
Segundo a Lei n. 14.063, assinatura eletrônica é aquela que
“anexa ou associa dados a outros dados em formato eletrônico do
signatário” e, no caso da assinatura avançada, também “está
relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer
modificação posterior é detectável” (art. 3º, inciso II).
Ainda segundo a lei, os entes públicos estão obrigados a
aceitar (apenas) a assinatura qualificada, quer dizer, aquela baseada na
ICP-Brasil (art. 5º, §1º, inciso III). A aceitação dos outros níveis de
assinaturas eletrônicas ficou pendente de ato do titular do Poder, que, no caso
das juntas comerciais, pode ser entendido como o governador do respectivo
estado (art. 5º e 10). O ente público também deverá publicar informações em seu
sítio eletrônico sobre os “requisitos e os mecanismos estabelecidos
internamente para reconhecimento de assinatura eletrônica avançada” (art. 5º,
§4º).
De acordo com o conceito legal, assinaturas eletrônicas são
dados indissociáveis dos correspectivos documentos digitais. No documento
digital, o signatário assina o documento valendo-se de um computador, doravante
transmite o documento por meio digital, o qual é assinado por outros usuários
também de forma digital e, ao final, as assinaturas só poderão ser verificadas
por meio digital, para tanto sendo necessário um instrumento de leitura
adequado (computador, tablet e celular).
Não é possível pensar em assinatura eletrônica em documentos
físicos. Pense-se: antes da lei seria possível reconhecer assinaturas do tipo
ICP-Brasil no papel? Logicamente, não. A nova lei não alterou isso. Para a
verificação de uma assinatura digital, é necessário um meio digital.
A confusão tem início quando as empresas prestadoras do
serviço assinalam o fecho do documento com uma pequena fotografia da assinatura
de próprio punho do signatário, como se a assinatura estivesse escrita à
caneta. É bem-vindo o aspecto gráfico. Todavia, algumas pessoas podem ser levadas
a acreditar que aquela fotografia é a assinatura digital. Mas não é.
A imagem, na verdade, figura no documento como um enfeite,
que, a rigor, nem precisaria estar presente. Porque, como visto, a assinatura
digital é o conjunto de dados armazenados em meio digital que liga o documento
digital à pessoa do signatário, com maior ou menor grau de segurança.
Assim sendo, quando o documento é impresso, ele perde o
suporte digital e com isso também é perdida a possibilidade de verificar as
assinaturas eletrônicas. Ainda que o documento seja digitalizado depois de
impresso, não mais será possível verificar a assinatura, pois os dados terão
sido perdidos.
Por isso, além de distinguir os tipos de assinaturas
eletrônicas, também é preciso distinguir os tipos de documento. Impressão de
documento digital não equivale a documento digital. Pode parecer um truísmo.
Entretanto, tem sido grande fonte de frustração para os empresários, que acabam
por confiar que a imagem da assinatura tem o mesmo valor que a assinatura
eletrônica.
A reprodução física de documento digital está disciplinada
pela Lei n. 12.682/2012, que dispõe sobre “a elaboração e o arquivamento de
documentos em meios eletromagnéticos”. A Lei n. 13.874/2019, chamada Lei da
Liberdade Econômica, introduziu na Lei n. 12.682/2012 o art. 2º-A, §7º, segundo
o qual é lícita a reprodução em papel de documento digital, que
“contiver mecanismo de verificação de integridade e autenticidade”, mas, nesses
casos, “cabe ao particular o ônus de demonstrar integralmente a presença de
tais requisitos”.
E assim sendo, para que a assinatura possa ser averiguada, é
preciso que a junta comercial, primeiro, conte com processo eletrônico e
tecnologia adequada. Ou então, que os prestadores desse serviço sejam capazes
de garantir a terceiros os meios de verificação da assinatura. Caso contrário,
a junta comercial estaria devolvendo ao mercado documentos supostamente
autenticados, cuja autenticidade, a bem da verdade, ela mesma não averiguou.
Outro elemento que se somou à confusão foram os parágrafos
acrescidos pela Lei da Liberdade Econômica ao art. 63 da Lei n. 8.934/1994, que
disciplina o Registro Público de Empresas Mercantis.
Primeiramente, parte do texto incluído na Lei n. 8.934/1994
pela Lei n. 13.874/2019 consistiu em réplica do Decreto n. 84.702 de 1980. Esse
decreto versa sobre a prova de quitação de tributos no âmbito federal. A
reprodução de dois dispositivos do referido Decreto (art. 2º e p. único) na Lei
de Registro Mercantil (§§1º e 3º do art. 63) estava predestinada a causar um acidente
hermenêutico. Com o transplante, o trecho “a cópia de certidão ou de
comprovante de pagamento autenticada na forma da lei dispensa nova
conferência com o documento original” tornou-se “a cópia de documento,
autenticada na forma prevista em lei, dispensará nova conferência com o
documento original”. E o dispositivo que dizia “a autenticação poderá ser
feita, mediante cotejo da cópia com o original, pelo próprio servidor a quem o
documento deva ser apresentado” tornou-se “a autenticação do documento poderá
ser realizada por meio de comparação entre o documento original e a sua cópia
pelo servidor a quem o documento seja apresentado.”
Ocorre que o referido Decreto cuidava de comprovantes de
pagamento, enquanto a Lei n. 8.934/1994 cuida de “documentos” com múltiplos
significados. Dentre os significados da palavra documento empregada pela lei de
registro, está o próprio ato empresarial levado a registro (contrato
social, estatuto etc.). Porém, a apresentação do
instrumento original é da essência do registro comercial (art. 37,
inciso I). Logo, as cópias a que se refere o art. 63 da Lei n. 8.934/1994 só
poderiam ser as cópias dos documentos previstos nos demais incisos do art. 37,
em especial o documento de identidade (art. 37, V) e o comprovante de pagamento
da taxa (art. 37, IV).
Assim é que deve ser entendido, portanto, o §3º do art. 63
da Lei de Registro Mercantil, que diz “fica dispensada a autenticação a que se
refere o § 1º do caput deste artigo quando o advogado ou o
contador da parte interessada declarar, sob sua responsabilidade pessoal, a
autenticidade da cópia do documento.” Na prática, a lei conferiu a advogados e
contadores poderes para autenticar cópias de documentos nos processos de
registro, com a mesma força que tem os cartórios.
Porém, como visto, a reprodução de documento digital é
incapaz de reproduzir a assinatura eletrônica, sendo a assinatura ali um mero
enfeite. E assim, ninguém (advogados, contadores, servidores de juntas
comerciais, nem mesmo os próprios cartórios) seria capaz, ante a impropriedade
material do meio, de dar à impressão em suporte material do documento digital o
mesmo valor do documento digital. E uma vez que a impressão de documento
digital, na verdade, não contém assinatura nenhuma, certificar a declaração de
vontade das pessoas cujo nome figura na cártula equivaleria, salvo melhor
juízo, a praticar ato em nome de terceiros. Ou seja, mandato.
Que fazer, então? Primeiro, as juntas comerciais deverão se
preparar para implementar, nos processos digitais, mecanismos capazes de
identificar assinaturas digitais simples e avançadas. Enquanto isso,
fornecedores de serviço de assinatura eletrônica poderiam oferecer mecanismos
que permitissem a conferência das assinaturas por terceiros, dado que, de
acordo com os próprios termos de uso do serviço, a assinatura só é válida entre
as partes aceitantes. Por fim, os poderes Executivos estaduais devem se
apressar para dar efetividade à Lei nova, disciplinando o quanto antes os
requisitos e mecanismos para conferência das assinaturas eletrônicas avançadas.
Fonte: JOTA