Não é novidade para ninguém que o acesso à Justiça no Brasil
é problemático. Dada a notoriedade do problema, há décadas são discutidas
estratégias para que se viabilize uma melhoria na referida atividade e são
famosas as chamadas "ondas de acesso". Recentemente, não se pode
ignorar a tentativa de agilização dos procedimentos pela utilização de um
sistema de precedentes, bem como o desenvolvimento de ferramentas tecnológicas
para servir de apoio de servidores e magistrados, cogitando-se até mesmo a
criação de algoritmos de IA com finalidade decisória [1].
Além dessas iniciativas, uma das propostas de incremento do
exercício da atividade jurisdicional é, paradoxalmente, o enxugamento da
atividade jurisdicional. Explica-se: como o Judiciário não dá conta de decidir
milhões de casos com a celeridade que se espera, intenta-se transferir para
outras esferas, como os cartórios, a responsabilidade pelo desenvolvimento de
atividades até então desempenhadas de forma exclusiva pelo sistema de Justiça
estatal.
As técnicas já implantadas são numerosas: 1) divórcio,
inventário e usucapião extrajudiciais; 2) procedimento de execução
extrajudicial de retomada e leilão de imóveis, como previsto na Lei 9.514/97;
3) incentivo às técnicas alternativas de resolução de conflito, como a mediação
privada ou arbitragem; e 4) procedimento de regularização fundiária, que
permite a titulação coletiva de centenas e até milhares de imóveis de uma só
vez, independentemente do ajuizamento de inúmeras ações de usucapião.
As iniciativas não param por aí e a tendência é fortalecida
por propostas que consagram a tônica de desjudicialização, como os recentes
projetos de lei envolvendo o "despejo extrajudicial" e a
"execução extrajudicial".
Perceba-se: nesse cenário, o acesso à Justiça se daria pela
ausência de acesso à Justiça, na medida em que atos jurídicos que impactam na
esfera de direitos passam a ser praticados não por um juiz, mas por um
registrador ou tabelião. Para que tal proposta seja implementada, é necessário
que haja o fortalecimento do papel das autoridades administrativas no que diz
respeito ao desempenho de tarefas jurisdicionais e meramente executivas [2].
Pode-se elencar algumas justificativas para a
desjudicialização:
— A atividade jurisdicional é demorada, cara e pouco
efetiva, enquanto os serviços desenvolvidos pelos cartórios costumam ser
rápidos, de custo acessível e podem ser considerados efetivos, na medida em que
os atos praticados por registradores são dotados de fé pública;
— É alta a taxa de congestionamento no Judiciário;
— Pesquisas indicam que a população confia muito mais
nos cartórios do que no Judiciário [3];
— Não haveria, na realidade, uma proibição de acesso à
Justiça.
A tentação de desjudicialização é grande e qualquer um que
se depare com as estatísticas do Judiciário tende a concordar com a repartição
de funções.
Ocorre que a busca por máxima eficiência e celeridade pode,
por vezes, representar prejuízos aos jurisdicionados, embora não se defenda,
aqui, que o exercício das funções estatais deva ser demorado ou oneroso.
Certamente que não!
Alguns exemplos dessa "tendência" podem ser
elucidativos.
A Lei 9.514/97 dispõe sobre o Sistema Financeiro Imobiliário
e institui a alienação fiduciária de imóvel, que é o tipo de garantia para o
financiamento imobiliário mais praticado no Brasil, uma vez que a hipoteca caiu
em desuso [4]. Quitado o financiamento, resolve-se a
alienação fiduciária, com a consequente emissão de carta para baixa do gravame.
A complicação surge nos casos de inadimplemento. É que a
referida lei traz a possibilidade de execução do contrato exclusivamente na
esfera extrajudicial, junto ao Cartório de Registro de Imóveis. Uma vez
verificada a dívida, após solicitação do agente fiduciário, o cartório
encaminha uma notificação extrajudicial. Não quitada a dívida, a propriedade é
consolidada em nome do banco, com ulterior realização de leilão, também
extrajudicial.
O que mais chama a atenção na Lei 9.514/97 é ter criado uma
espécie de escudo ao processo de execução e alienação do bem, pois de algum
modo tenta neutralizar as ações judiciais em que se pretende discutir cláusulas
contratuais.
Isso porque o parágrafo único do artigo 30 da
mencionada lei prevê que uma vez averbada a consolidação da propriedade
fiduciária, "as ações judiciais que tenham por objeto controvérsias
sobre as estipulações contratuais ou os requisitos procedimentais de cobrança e
leilão serão resolvidas em perdas e danos e não obstarão a reintegração de
posse".
No trecho destacado, a ideia é: ou há um vício grotesco de
procedimento (ausência de notificação do devedor) ou o processo de execução
extrajudicial é presumidamente válido e qualquer outra questão deve ser
decidida em forma de perdas e danos, ainda que se invoque outros vícios.
Trata-se, em nossa visão, de um exemplo contundente dos
possíveis efeitos envolvendo essa nova "onda da desjudicialização".
Outro exemplo que contribui para o reforço da cruzada de
aceleração dos procedimentos para a recuperação de imóveis de inquilinos
inadimplentes sem intervenção do judiciário, é o Projeto de Lei 3.999/2020.
Referida proposta dispõe sobre a possibilidade de despejo e consignação
extrajudicial de chaves.
Seguindo os passos da lei de alienação judiciária, acima
citada, a proposta de lei pretende delegar para os cartórios o poder de
promover o despejo compulsório, nos casos de rescisão motivada por falta de
pagamento. O projeto prevê que o locador, constatando a inadimplência do
locatário, deve acionar pelo tabelionato de notas e solicitar a lavratura de
ata notarial, da qual constarão todas as etapas do procedimento.
O inquilino inadimplente será notificado para purgar a
mora ou desocupar voluntariamente o imóvel, no prazo de 30 dias corridos,
sob pena de desocupação compulsória. Encerrado o prazo, diante da inexistência
daquelas condutas, está autorizado o despejo compulsório, a ser executado por
oficial de justiça do tabelionato de notas, podendo o ato ser acompanhado de
força policial.
Como visto, a proposta delega às serventias notariais o
poder de realizar atos de desocupação forçada, transferindo aos locatários
inadimplentes, o ônus de recorrer ao judiciário apenas nas situações de
comprovada "irregularidade no procedimento ou erro na planilha
apresentada pelo locador".
A proposta argumenta que a desjudicialização representaria
uma alternativa para a morosidade na tramitação das ações judiciais de despejo,
que estariam trazendo graves consequências para o mercado, ao supostamente
impossibilitarem a reassunção imediata da disponibilidade econômica dos
imóveis [5].
O projeto bem como sua justificativa seguem a mesma esteira
de raciocínio da Proposta de Lei 6.204/2019, que prevê a possibilidade de
desjudicialização das execuções civis [6].
Ambas as propostas partem da mesma vertente: repartir as
competências do judiciário para que se alcance maior celeridade na resolução
dos problemas, em especial daqueles que têm grandes impactos no mercado.
Todavia, é preciso indagar qual seria o custo dessa "transferência".
Como último, e talvez mais atual exemplo dessa toada, estão
os smart contracts, que alinham a desjudicialização às facilidades da
tecnologia.
Os smart contracts são contratos digitais
autoexecutáveis e inadulteráveis que se valem de códigos de programação para
definir as regras da relação contratual, suas consequências e sanções [7].
São criados a partir de uma forma de programação
computacional condicional do tipo "se a, então b", ou seja, se
realizada determinada condição, implementa-se, de forma automática, a
consequência prevista. O conjunto de instruções digitais contendo regras,
consequências e penalidades convencionadas é inserido em um programa, em
linguagem computacional e as partes fecham o acordo por meio de um clique.
A validação das regras é realizada por blockchain, o
que garante a segurança do processo, permite atualizações automáticas,
viabiliza comunicação direta e criptografada, além de evitar fraudes [8]. Os smart contracts automatizam
a execução das cláusulas contratadas, na medida em que as exigências são
impostas logo que a avença é celebrada e, caso não cumpridas, a aplicação da
sanção é automática.
As aplicações pensadas para os smart contracts são
das mais variadas.
Em transações imobiliárias envolvendo locação, por exemplo,
os smart contracts poderiam controlar a adimplência de locatários,
impondo sanções automáticas no caso de inadimplemento. Ao invés da determinação
de despejo, advinda de uma decisão judicial, o contrato inteligente poderia
bloquear a entrada do inquilino do imóvel alugado, seguindo à risca as
instruções inseridas em sua programação. Também é possível pensar na
programação inteligente para o bloqueio de dinheiro do locatário.
Tudo isso sem intermediários. Sem a necessidade de se
delegar ao Judiciário ou a qualquer pessoa o encargo de remediar as coisas,
caso algo dê errado.
A execução das consequências acordadas é o que torna os
contratos inteligentes poderosos e, a princípio, pode-se pensar que este fato
traz apenas vantagens: redução de custos, precisão, eficiência, confiabilidade
e ausência de conflitos.
Contudo, é justamente neste ponto em que os contratos
inteligentes podem acentuar os perigos que a "onda de
desjudicialização" traz consigo.
Explica-se: em todas as iniciativas citadas, percebe-se um
nítido movimento em direção ao um suposto fortalecimento do "sistema
multiportas" com a transferência da competência de uma série de atos — que
estão intimamente ligados à preservação de direitos fundamentais — à esfera das
serventias notariais. Tudo isso ao argumento de que o sistema de Justiça estatal
se encontra mergulhado numa profunda crise.
Os dados referentes a milhões de demandas em tramitação são
apresentados como um quadro patológico, cuja recuperação exige como remédio a
eliminação do processo de garantias processuais.
Não importa se as questões são de grande importância como
alienação fiduciária, despejos ou expropriação de bens, ou se tocam direitos
fundamentais como o direito à moradia e à garantia de dignidade. Não importa se
o conteúdo de um contrato inteligente se apresenta contrário ao sentido
normativo da função social. O que importa é criar mecanismos procedimentais
amigáveis ao mercado.
A tônica de pacificação ofertada pela desjudicialização
vende a promessa de que, com a delegação de tarefas aos cartórios e a
impossibilidade de que fatores externos alterem a lógica de contratos digitais
estabelecidos em plataformas inteligentes, haverá um ambiente favorável a
investimentos e à circulação do capital. Mas a que preço?
A lógica mercadológica que se orienta pela redução dos
custos e métricas de eficiência não se preocupa com o desequilíbrio contratual,
onerosidade excessiva, desigualdade material ou jurídica ou com fatores de
ordem social que podem estar por detrás da inadimplência.
Tampouco se preocupa em assegurar um espaço discursivo para
que os litigantes em contraditório, exerçam ampla defesa, em condições de
igualdade, buscando influenciar a construção de uma decisão que seja
argumentativamente justa para o caso. Afinal, para o mercado, conflito é
sinônimo de custo e mais custos importam em redução dos lucros, num cenário
refratário a novos investimentos.
O que interessa às iniciativas de desjudicialização é que
conflitos sejam eliminados: as soluções devem ser econômicas e eficientes. O
acesso à justiça substancial passa a ser sinônimo de resultados rápidos
alcançados às custas da supressão da intervenção estatal.
Nesse cenário, afinal, onde fica o processo?
Há muito, a percepção de processo-garantia vem cedendo lugar
às exigências impostas pelo neoliberalismo. O modelo de processo democrático
compreendido como instituição viabilizadora da participação e controle
incessantes do povo (destinatário e construtor normativo) nos atos de poder
estatal em todas as esferas, tem sido relegado a segundo plano.
As garantias processuais do contraditório na acepção
dinâmica, isonomia, ampla defesa como ampla argumentação e dever de
fundamentação racional e legítima das decisões, essenciais à implementação de
direitos, na "onda de desjudicialização", estão deixando de ditar as
regras do jogo. Promete-se eficiência e economia em troca da renúncia ao
processo como espaço de implementação técnica de direitos fundamentais.
Anuncia-se o fim de acesso à Justiça enquanto garantia
fundamental de um procedimento jurisdicional constitucionalmente adequado.
Todo esse movimento, ovacionado por muitos, tem de ser
percebido com reservas. Em consideração, sobretudo, da necessidade de
preservação da função social dos contratos — em especial, aqueles que tenham
relação estreita com o direito fundamental à moradia — como os de locação e de
alienação fiduciária. Deve-se também observar a advertência constitucional de
que a privação da garantia fundamental de "gozar do que é seu" ainda
está reservada à necessária observância do devido processo.
Isso porque o que se notabiliza nas propostas apresentadas,
não é a disposição de que sejam criadas novas ferramentas procedimentais que
possam, de fato, resolver problemas ligados à litigiosidade multifacetada; ou o
excesso de tempo na tramitação dos processos.
As alternativas cogitadas apenas transferem o problema de
lugar. Reduz-se o número de procedimentos, limita-se o acesso ao Judiciário,
privando indivíduos do exercício de garantias processuais, com a transferência
dos mesmíssimos atos para os cartórios.
A alternativa pode até, a princípio, parecer um grande
negócio... Mas a conta de quem? De milhares pessoas necessitadas, pequenos
litigantes que, diante da inadimplência em contratos de locação ou de alienação
fiduciária em garantia serão arrancados de suas moradias, sem direito adequado
à ampla defesa, ao contraditório ou a um processo constitucionalmente justo.
Tudo isso em nome da eficiência.
A ver. Observemos até onde a "onda de
desjudicialização" presta-se a fornecer "acesso à Justiça".
Fonte: Consultor Jurídico