A Constituição Federal de 88 foi o divisor de águas entre um
Brasil que se acostumou a viver com um patrimonialismo histórico e um outro,
pujante líder na América do Sul, cobiçado internacionalmente pela
potencialidade de promissor mercado consumidor.
A partir de 88 despertou o Brasil para um mundo novo,
preocupado em manter boas e seguras relações comerciais e em combater um mal
que, silenciosamente se agigantava com rapidez, o terrorismo, fortalecido
pelos recursos que lhe davam fôlego: a corrupção descontrolada existente nos
países em desenvolvimento.
O novo desenho político brasileiro seguiu as diretrizes da
pós-modernidade, sendo entregue à nação um Judiciário mais independente sob o
ponto de vista administrativo e financeiro; um Ministério Público que
açambarcou, pela primeira vez na história do país, as verdadeiras funções de
fiscalizador das leis e, sobretudo, titular das ações penais mais
significativas para a federação; um Tribunal de Contas, até então relicário de
velhos políticos capazes de cumprir favores políticos prometidos, que evoluiu
para um órgão mais independente pela eficiência técnica, da forma que foi
possível à Constituinte de 88.
O reflexo dessas mudanças estruturais não demorou a se fazer
sentir na legislação; foi notável a produção de importantes leis cujo
endereçamento era o de combater a corrupção endêmica espalhada no país. Assim,
em 1992, dispondo sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos
casos de enriquecimento ilícito, foi editada a Lei nº 8.429/1992, que
regulamentou o estabelecido no artigo 37, § 4º, da Constituição e sepultou
parcialmente a vetusta Lei de Crimes de Responsabilidade – Lei nº 1.079/1950.
Elaborada com a plena participação do Ministério Público
Federal e aprovada sem dificuldade no Governo Fernando Collor, foi possível
acabar com o incômodo de serem mantidos fora do alcance da Justiça Penal
agentes públicos e políticos, acobertados por uma lei inócua, que nunca foi
capaz de punir com eficiência os crimes de responsabilidade. Essa nova lei
tornou-se o principal instrumento do Ministério Público.
Algum tempo depois, em 1998, foi o mundo jurídico nacional
surpreendido com uma lei de vanguarda, a Lei nº 9.613, de combate aos
crimes de lavagem de dinheiro, com a permissão de uso dos registros do sistema
financeiro estatal para identificação dos ilícitos ali previstos. Essa lei,
aprovada no Governo Fernando Henrique, provocou verdadeira revolução – pela
primeira vez o legislador brasileiro debruçou-se sobre uma das piores mazelas
do país: a grande lavanderia onde era limpo o dinheiro sujo vindo do exterior
ou mesmo os valores aqui gerados em empresas de fachada para posterior saída já
branqueado.
A iniciativa dessa lei foi fruto de dois importantes
antecedentes: primeiro, o movimento da comunidade internacional no combate aos
crimes transnacionais, estrangulando a fonte de renda do crime organizado, e,
segundo, a assinatura pelo Brasil da Convenção de Viena em 1988, cujos
signatários comprometiam-se em combater a corrupção interna nos órgãos
estatais, ao tempo em que tipificou como crime a lavagem ou a ocultação de bens
oriundos de crimes geradores de grandes lucros. A Convenção só foi promulgada
três anos depois pelo Decreto 154/1991.
Foi sob o império dessa lei que nasceu o Conselho de
Controle de Atividades Financeiras – Coaf, incrustado no Ministério da Fazenda
com acanhada estrutura, mas capaz de detectar a grande massa de recursos espúrios
que circulava pelo país, sem identificação de origem.
Criaram-se também, dentro do Banco Central, o Departamento
de Combate aos Ilícitos Cambiais e Financeiros e o Departamento de Recuperação
de Ativos Ilícitos e Cooperação Jurídica Internacional, iniciando-se ali
acirrada fiscalização aos doleiros brasileiros que transacionavam livremente em
negócios camuflados.
Com a expansão dos órgãos de controle financeiro,
proporcionada pela nova lei, a Justiça Federal, em 2003, teve necessidade de
especializar varas federais para processar e julgar os crimes de lavagem e de
ocultação de bens, produtos geralmente advindos da corrupção estatal com o
desvio de dinheiro público.
Os órgãos incumbidos de combater a lavagem de dinheiro, ao
abrigo da nova legislação, sofreram potentes ataques por parte de profissionais
em escusos negócios financeiros e dos que se nutriam com os vultosos lucros de
um submundo oculto na desídia estatal. Mas com competência conseguiram vencer
todas as críticas e as acusações, inclusive a de inconstitucionalidade, sendo
capazes de avançar pelos obscuros meandros da corrupção estatal, inserir
providências de maior eficiência na identificação e na persecução dos crimes de
lavagem, ampliando-se com a Lei nº 12.683/2012 no Governo da Presidente
Dilma.
O certo é que, nos últimos vinte anos, outras leis foram
sendo editadas, complementando o cerco em defesa do patrimônio público. Dentre
as mais importantes destacam-se a Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei
Complementar 101/2002, ponto luminoso na administração financeira e
orçamentária do Estado Brasileiro; a Lei da Ficha Limpa – Lei Complementar
135/2010, fruto de reivindicação popular atendida pelo legislador, que exigiu
mais rigor para as candidaturas políticas, retirando do processo eleitoral os
candidatos já condenados; a Lei de Acesso à Informação – Lei
12.527/2011, respaldada na observância ao princípio constitucional da
publicidade (artigo 37 e
incisos XXXIII e XXXIV do
artigo 5º), poderoso instrumento de transparência da administração estatal.
Nesse momento histórico, de grande criação legislativa,
bafejado pelos ventos da pós-modernidade democrática, munida a nação com órgãos
de controle mais independentes e estruturados e profícua legislação preocupada
com a proteção do patrimônio público, o Poder Judiciário pôde despertar do seu
sono letárgico e agigantar-se perante a sociedade brasileira para alcançar
figurões da República, até então praticamente inimputáveis quando achacavam os
cofres públicos. E sem o pecado original de julgamentos antecedentes,
decidiu o Supremo Tribunal Federal, em instância única, a Ação Penal 470, em
2005, o chamado Mensalão.
Esse julgamento mudou a percepção do brasileiro quanto ao
crime de corrupção. O país passou a acreditar ser possível mudar o rumo da
criminalidade que se entranhou no seio dos órgãos públicos de tal forma que era
vista com conformismo, e até com naturalidade, a corrupção política,
jocosamente expressa na frase: “rouba mas faz”.
E foi assim que a população em peso foi para as ruas em
junho de 2013. Sem apoio partidário, sem lideranças ostensivas, sem apelos
corporativistas ou ideológicos, clamava por algo diferente de tudo que até
então fora visto: “QUEREMOS JUSTIÇA, BASTA DE CORRUPÇÃO, QUEREMOS SERVIÇOS
PÚBLICOS DE QUALIDADE”.
Uma das consequências desse movimento foi a aprovação, às
pressas, de uma lei que dormitava há três anos no Congresso, a Lei
12.846/2013. Com ela foi possível desferir um golpe mortal na corrupção,
cujo principal objetivo foi imputar às empresas a responsabilidade pelas
transações que ocasionassem prejuízo ao erário, independentemente de culpa de
seus donos ou sócios. Se de algum modo beneficiou-se a empresa com transação
ilegal ou irregular, auferindo lucro em detrimento do poder público, era
passível de punição com pesadas multas ou sanções outras que iriam da sua
suspensão até seu fechamento compulsório.
Municiados por uma legislação moderna e combativa, foi
possível ao Ministério Público Federal e ao Judiciário realizar um trabalho de
enfrentamento lapidar à corrupção.
E foi assim que se chegou à mais longa e bem-sucedida
operação policial de combate à corrupção, a qual nos mostrou, de forma pontual,
estar em todos os poderes, inclusive na Presidência da República.
O sucesso dessa operação batizada de Lava Jato não pode ser
creditado apenas aos protagonistas e bravos combatentes contra o crime
organizado; deveu-se a uma sequência de atos e fatos ocorridos no curso de
quase trinta anos.
Mais uma vez a Justiça Brasileira mostrou a sua força,
punindo exemplarmente o primeiro escalão de agentes públicos, depois empresários
e até políticos, em decisões chanceladas nos Tribunais de Segundo Grau e nos
Tribunais Superiores, inclusive o Supremo Tribunal Federal.
Os antigos investigadores italianos que trabalharam na
Operação Mãos Limpas, enfrentando a Máfia Italiana, nas visitas que fizeram ao
Brasil, sempre preveniam sobre a possibilidade de um retrocesso e aconselhavam:
é necessário fortalecer a nova realidade com apoio político, porque o
Judiciário não será suficiente para mudar o quadro de uma corrupção endêmica tão
profunda como a brasileira. E arrematavam dizendo: a justiça trabalha com as
consequências, enquanto a política trabalha com as causas.
A euforia dos brasileiros espalhou-se por todo o país, o
Brasil passou a ser cumprimentado pela comunidade internacional; e foi no calor
dessa euforia que marcharam os eleitores em busca da mudança mais profunda: a
renovação nos quadros políticos, para assim se afastarem os fantasmas que se
materializaram e destruíram a tão bem sucedida operação italiana.
Elegemos um Presidente que desenvolveu sua campanha com o
discurso de combate à corrupção, apresentando esse ponto como sua prioridade.
Com o voto foram desbancadas velhas raposas do cenário político, ao tempo em
que se provocou avassaladora renovação no Parlamento: 85% no Senado e 52% na
Câmara.
Pensou-se que a história não se repetiria trinta anos
depois. Afinal, o mundo sofreu profundas mudanças e a democratização das
informações pelos novos meios de comunicação aumentou significativamente o
papel da imprensa, fazendo surgir eficiente e combativo jornalismo
investigativo.
Grande engano político, porque, quando os tentáculos da Lava
Jato chegaram à cúpula dos poderes, a história do combate à corrupção começou a
mudar de forma vertiginosa, com novo direcionamento adotado pelos três poderes.
E a figura central desse poder político, o Presidente da República, desprezando
os compromissos de campanha, declarou para a imprensa “Eu acabei com a Lava
Jato por não mais existir corrupção no meu governo”.
Embora a Lava Jato signifique apenas uma grande e
bem-sucedida operação de combate à corrupção, assiste o país não apenas à
destruição dessa operação: estamos presenciando o desmonte de toda a máquina
preparada nos últimos trinta anos para afastar no Brasil a corrupção mais
severa, e o que é pior, estamos destruindo material e moralmente a
credibilidade dos órgãos incumbidos de fiscalizar e proteger o erário.
O Ministério Público Federal sofreu uma implosão interna de
grande monta, com uma campanha de descrédito sem precedentes e a adoção de
medidas administrativas tendentes a torná-lo um órgão burocrático, como era
antes da Constituição de 88. Já se fala até em ser o Chefe do Ministério
Público escolhido livremente pelo Presidente da República, fora da carreira.
A Operação Lava Jato é ridicularizada por segmentos
sintomaticamente ligados aos que foram punidos por processos penais produzidos
no âmago da operação, sem que se considere o fato de quase todas as condenações
terem o aval das três esferas do poder hierárquico do Judiciário, algumas,
inclusive, bafejadas com a revisão do Supremo Tribunal Federal.
O Poder Judiciário está a sofrer um processo de
desmoralização e desrespeito sem precedentes, na medida em que o próprio órgão
de cúpula censura de forma despudorada as decisões dos magistrados de primeira
instância, principalmente.
O Supremo Tribunal Federal, a cúpula do Poder Judiciário
Brasileiro, tem os seus membros desrespeitados e na boca do povo, que não mais
o aceita como fiador da ordem jurídica, sendo incompreensível para todo e
qualquer mortal o grau de ativismo político que ali aportou.
O Legislativo reúne as poucas raposas sobreviventes, cujo
papel deletério foi formar aprendizes de feiticeiro para, de forma sorrateira,
promoverem o desmanche das leis construídas a duras penas, como conquista da
cidadania.
Com esse propósito, juristas ilustres e brilhantes
magistrados, com sólidos conhecimentos jurídicos, estão sendo cooptados, como
são os pescadores atraídos pelo canto da sereia, como diz a lenda, para
formarem comissões chamadas de alto nível e procederem a um recorte nas leis
mais importantes do país no combate à corrupção.
Por exemplo, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)
está sendo revista, e o presidente da comissão incumbida da revisão, em uma das
últimas entrevistas dadas à Revista Crusoé, declarou: “O grande debate será
quanto nós vamos permitir à Polícia e ao Ministério Público invadir nossas
vidas para investigar crimes”.
Dentre outros recortes, um chama atenção: é o que só permite
sejam enviados ao Ministério Público, a seu pedido, os dados do Coaf, quando
houver autorização judicial
A Lei de Lavagem de Dinheiro está sendo objeto de
revisão por outra comissão formada por 44 membros, muitos deles advogados de
defesa de réus condenados ou ainda processados na Operação Lava Jato.
Entre parlamentares, alguns entendem que a Operação Lava
Jato provocou o alargamento de tipos da lei, como por exemplo o caixa dois, com
aplicação de condenações injustificadas por inexistir tal tipificação na lei,
muito embora tenha o crime de lavagem pena de 3 a 10 anos, enquanto a Justiça
Eleitoral o enquadre como crime de falsidade ideológica, punível com pena de 1
a 5 anos.
Outro ponto que praticamente põe por terra a jurisprudência
firmada há mais de dez anos no STJ é a questão da prescrição. Para a Corte
Superior, o instituto só tem início quando o fato criminoso é descoberto, ou ao
final do mandato, quando é possível ter ciência do que se passou na
administração que se finda.
Um dos integrantes da comissão, também advogado de defesa de
um dos réus no processo de Curitiba, chegou a propor que a ação por lavagem só
possa ser ajuizada pelo Ministério Público depois de uma sentença condenatória
pelo crime antecedente de corrupção. Outro defensor, como membro da comissão de
revisão, propôs reduzir de 10 para 6 anos a pena de reclusão por lavagem de
dinheiro.
A Lei de Improbidade Administrativa, de 1992, é a que
está em estágio mais avançado de revisão, tendo como objetivo declarado
combater o ativismo do Ministério Público, órgão que tem nessa lei seu
principal instrumento de combate à corrupção interna do serviço público.
A Lei de Improbidade, tantas vezes esquadrinhada pelo
Supremo Tribunal Federal, que já fez uma revisão geral da sua
constitucionalidade, e pelo Superior Tribunal de Justiça, que há mais de dez
anos vem firmando a sua jurisprudência, está hoje ameaçada.
A proposta de revisão avança para retirar a forma culposa de
todas as infrações da Lei de Improbidade. E nós já sabemos o que significa
banir a forma culposa dos delitos: é o mesmo que admitir como defesa os velhos
chavões: eu não vi, eu não sei, eu não sabia, eu não tive a intenção.
De todos os órgãos alvejados pela sanha destrutiva que paira
neste momento no Brasil, os mais atingidos são, além do Ministério Público, os
órgãos de fiscalização financeira.
O Coaf, por exemplo, foi o primeiro a ser alvejado pelo
Presidente da República. Saiu do Ministério da Fazenda e tornou-se um órgão
nômade: foi para o Ministério da Justiça, de lá saiu para ser colocado no
Ministério da Economia e dali está agora na estrutura do Banco Central.
A eficiência desse órgão conta hoje, em seu desfavor, todos
terem a varredura do Coaf, até mesmo aqueles que, embora tenham moral ilibada,
não conseguem deixar de se assustar ao mero pronunciamento dessas quatro letras
malditas.
Tenta-se agora desestruturar a Receita Federal, sempre com
acusações de haver nos órgãos perseguições ideológicas ou direcionadas para
essa ou aquela autoridade, faltando às acusações a necessária transparência
capaz de indicar veracidade às alegações. Quinze dias atrás, até o
Diretor-Geral da Agência Brasileira de Inteligência – Abin e o Chefe do
Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República – GSI
reuniram-se com queixosos advogados para discutirem sobre o mal proceder da
Receita Federal.
A Abin é órgão central do Sistema Brasileiro de Inteligência
– Sisbin e cabe-lhe planejar, executar, coordenar, supervisionar e controlar a
atividade de inteligência do país.
A Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, por seu
turno, é órgão específico e singular, subordinado ao Ministério da Economia, e
exerce funções essenciais para que o Estado possa cumprir seus objetivos.
Pergunta-se, então, o que tem a ver a Abin e o GSI para
discutir com advogados de defesa possível vazamento de informação no âmbito da
Presidência da República?
Por último fala-se agora em convocar uma Constituinte para
fazer-se uma reforma constitucional ampla e irrestrita.
E nós, cidadãos que sustentamos um punhado não pequeno de
servidores estatais, onde ficamos com os nossos anseios de democracia e
transparência?
Não combinaram conosco, mas a resposta virá, podem ter
certeza.
Fonte: O Estado de São Paulo