A íntima relação entre a ocupação do território, a exclusão
social e os impactos ambientais decorrentes do processo de urbanização [1] são
traços característicos importantes da história de urbanização no Brasil.
Fernandes (2000) [2] aponta
que a exclusão social tem correspondido, na maioria dos casos, a um processo de
segregação territorial, uma vez que os excluídos da economia formal urbana
são forçados a viver de forma precária nas periferias das cidades ou em áreas
centrais degradadas e sem infraestrutura.
O binômio exclusão social e segregação territorial foi fator
determinante para a baixa qualidade de vida nas cidades, bem como contribui
diretamente para a degradação ambiental e para o aumento da pobreza na
sociedade urbana (Fernandes, 2000).
Ao mesmo tempo, a produção de moradia regular no Brasil
também sofreu de enorme déficit histórico, sendo que um dos grandes produtores
irregulares foi o próprio poder público.
A partir dessas constatações, ao longo dos últimos 20 anos,
houve um esforço da sociedade brasileira para atuação em regularização
fundiária no país, com significativos recursos públicos investidos em
infraestrutura, visando à regularização de áreas ocupadas pela população
vulnerável.
A regularização fundiária é uma das formas de expressão do
direito à moradia e este integra o feixe de direitos do direito fundamental à
cidade, juntamente com a gestão democrática, a política urbana e o meio
ambiente.
O Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/01) e a
Resolução Conama nº 369/06 foram diplomas legais que trataram do tema, o
primeiro, criando institutos e estabelecendo as diretrizes gerais, o segundo,
tratando da regularização em áreas de preservação permanente.
Por sua vez, a Lei Federal nº
11.977/09 — conhecida como Programa Minha Casa, Minha
Vida — foi a primeira a cuidar da regularização fundiária como um
microssistema, com institutos e diretrizes próprios, possibilitando tratar, de
modo compreensivo e integrado, o âmbito urbanístico, ambiental, administrativo,
social, jurídico e registral das áreas envolvidas.
A Lei Federal nº 13.465/17 [3],
que revogou a Lei Federal nº 11.977/09, consiste atualmente no microssistema
jurídico que trata da regularização fundiária no Brasil. Define como
regularização fundiária as medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e
sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento
territorial urbano e à titulação de seus ocupantes , tendo, além disso, criado
modalidades de regularização fundiária urbana — Reurb (artigo 9º
e artigo 13, incisos I e II, da Lei Federal 13.465/17).
A Reurb-S é destinada àqueles que são vulneráveis
socialmente, definidos como núcleos urbanos informais ocupados
predominantemente por população de baixa renda, e que na lei anterior também
eram tutelados.
Já a Reurb-E contempla qualquer área, independentemente da
vulnerabilidade social dos ocupantes, sendo definida como núcleos urbanos
informais ocupados por população não qualificada na hipótese de Reurb-S.
A Reurb-E, portanto, abrange todos os que não cumpriram os
requisitos urbanísticos previstos nas leis de ordenamento do solo e nos planos
diretores das cidades brasileiras de alta, altíssima e média renda. Assim,
podem ser objeto de regularização núcleos urbanos, loteamentos de alta, média e
baixa renda, bem como condomínios, desde os de luxo até os mais simples, construídos
irregular ou clandestinamente.
À vista dessa explanação necessária, adentra-se agora o
objeto precípuo desta breve reflexão, designadamente a controvérsia jurídica
relativa ao marco temporal para aplicação dessa lei. Dito de modo mais
concreto, o que se indaga é até que data os beneficiários da lei precisam
demonstrar que estavam ocupando a área objeto da regularização para naquela
serem enquadrados e fazerem jus aos respectivos benefícios.
A controvérsia, de ampla repercussão, envolve também a
circunstância de que, diferentemente dos diplomas legais anteriores que
trataram do o tema [4],
a lei ora em comento não estabeleceu uma data a partir da qual se constitui o
direito à regularização das áreas daqueles que demonstrarem que as vinham
ocupando.
Vale destacar que a técnica legislativa usual para as leis
de regularização, sejam elas de que natureza forem, é a de estabelecer uma data
retroativa a partir da qual se tem por reconhecido o direito, o que se deve ao
fato de a regularização ser sempre uma exceção à regra, voltando-se para os
fatos já do passado, não podendo, em hipótese alguma, operar como um incentivo
ao descumprimento das regras existentes, o que se agrava ainda mais quando em
causa direitos humanos e fundamentais, como é o caso daquilo que se tem já
designado de um direito a uma cidade sustentável.
Nesse contexto, resulta altamente problemático que a Lei
Federal nº 13.465/17, à exceção do dispositivo que trata do reconhecimento da
legitimação fundiária nos casos de Reurb-S para os que residiam no local até 22
de dezembro de 2016 (artigo 23) e da regulação da áreas de preservação permanente
que se refere a alteração do Código Florestal, não contemple previsão expressa
de aplicação do reconhecimento da possibilidade de regularização, desde que a
ocupação ocorra até uma data determinada.
Note-se, nesta quadra, que a inexistência de um marco
temporal previamente estabelecido tem levado alguns (de modo equivocado!) a
defender a tese de que com isso se tornam viável, do ponto de vista jurídico, a
regularização de situações novas, ou seja, ocorridas em 2018, 2019 e 2020,
portanto, posteriores à publicação da lei, em julho de 2017. Não bastasse isso,
há também os que pensam que a nova legislação garante uma regularização de
ocupações que sequer ocorreram na data de hoje.
O problema se agudiza, contudo, quando se está diante de
graves denúncias da atuação das milícias no âmbito urbanístico, com construção
recente e em andamento, de bairros enormes, de modo manifestamente ilegal.
Por tais razões, a discussão do problema alcança caráter
emergencial, porquanto necessário equacionar, na perspectiva jurídico-constitucional,
o problema, que, ao fim e ao cabo, é o de analisar se a legislação ora
comentada criou um microssistema permanente, viabilizando a regularização
permanente, tanto relativamente a situações formadas no passado, quanto no
presente e no futuro, ou seja, um direito à regularização de forma permanente
ou até que outra lei estabeleça de modo diverso?
A resposta, por razões que deveriam soar elementares, é não,
porquanto se a lei tem por escopo permitir a regularização, inexiste outra
hipótese legítima senão a de aplicar-se tão somente a situações preexistentes.
No âmbito das normas urbanísticas, as leis de ordenamento do
solo e os planos diretores são as leis que estabelecem as normas gerais a serem
observadas. Assim, cogitar um direito à regularização de modo permanente
fulmina a ordem urbanística. As leis de regularização surgem periodicamente e
com a finalidade de contemplar situações excepcionais.
Por sempre oportuna e atual, colaciona-se, neste contexto,
lição de Carlos Maximiliano (1984, p. 228) [5], que,
ao trata das leis excepcionais, assim se expressa:
Além disso, é mediante uma análise sistemática e
constitucionalmente conforme da própria Lei Federal nº 13.465/17 que
encontramos o caminho para indicar que o que está em causa é tão somente a
regularização do passado.
Note-se que tanto o conceito contido no artigo 9º, quanto os
objetivos da Reurb previstos no artigo 10, referem a necessidade de
identificação de núcleos urbanos existentes, a saber:
Não deveria ser muito difícil compreender que só se
identifica aquilo que existe, no caso, em sinergia com a excepcionalidade de
instrumentos de regularização, de que se trata de ato ou fato preexistente à
lei, ou seja, que a lei protege porque reconhece a sua existência, tendo, nesse
sentido, efeito declaratório de um direito já existente [6].
À vista disso, qual será então a data limite para a
aplicação da lei?
Nesse sentido, calha recordar que a própria lei tem regras
próprias a respeito das áreas de preservação permanente (APPs) e da legitimação
fundiária em Reurb-S, embora essas não sejam objeto desta análise.
Importa anotar, em primeira linha, que para os institutos
relativamente aos quais inexiste regra expressa na Lei Federal nº 13.465/17, há
que aplicar as diretrizes estabelecidas pela teoria geral das normas jurídicas,
ou seja, a data de publicação da lei.
De acordo com o disposto no artigo 108, a Lei Federal
13.465/17 entrou em vigor na data de sua publicação, designadamente, em 12 de
julho de 2017. Portanto, estar ocupando as áreas delimitadas no âmbito do
perímetro da Reurb em 12 de julho de 2017 é requisito intransponível, não
cabendo sua aplicação para casos de loteamentos/condomínios/ocupação/construção
posteriores. Nessas hipóteses, aplicam-se os planos diretores e leis de uso e
ocupação do solo de cada município, para o fim de verificar o que é permitido,
sendo que o que não é deve se adequar a legislação municipal.
Além disso, não bastassem os argumentos aqui sumariamente
deduzidos, a tese de que a Lei 13.465/17 permite de modo permanente a
regularização também para situações posteriores à sua publicação viola
frontalmente o princípio da proibição de retrocesso, visto abrir literalmente
as porteiras para o ilícito, em especial podendo configurar, em diversas
perspectivas, uma violação do direito fundamental à cidade sustentável.
Fonte: Consultor Jurídico