Ao tomar posse na Corregedoria Nacional, ministra Maria
Thereza criou plano para modernizar relações da Justiça com esses
estabelecimentos
Menos de uma mês depois assumir a Corregedoria Nacional de
Justiça, órgão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a ministra Maria Thereza de Assis Moura publicou um plano
de trabalho para modernizar as relações entre tribunais de Justiça e cartórios.
Com mais de 50 páginas, a proposta quer, a princípio
estimular ou até mesmo forçar a realização de concursos e a renovação dos nomes
que estão a frente do cartórios em todo o país, já que muitos ainda são
controlados por antigos “titulares”, especialmente advogados com relação muito
próxima a magistrados que atuam em todo o país.
A ideia é assegurar o preenchimento imediato de vagas com
base em critérios impessoais e universais, como manda a lei e,
consequentemente, derrubar os antigos feudos. Atualmente, o Brasil tem mais de
13 mil cartórios, boa parte dos quais controlados ainda por antigos tabeliões.
“A ministra Maria Thereza (na Corregedoria) pediu minha
ajuda e eu pretendo pôr em ordem o setor. Seria arrogante dizer que vamos
organizar 100% (dos cartórios) num biênio. Mas existem providências estruturais
que são possíveis de tomar para viabilizar os concursos em todos os estados”,
afirmou o desembargador Marcelo Martins Berthe, um dos principais auxiliares da
nova corregedora do Conselho Nacional de Justiça.
Além dos novos concursos, a Corregedoria Nacional deve fazer
um pente-fino nos concursos já realizados e, a partir daí, induzir os tribunais
ao preenchimento das vagas com os novos gestores devidamente aprovados. As
medidas são consideradas necessárias porque, em alguns tribunais, alguns
setores ainda resistiriam à chegada ou à ascensão de novos administradores, sobretudos
nos maiores.
Sem a abertura e competição por vagas, prevalece a velha
ordem, que ainda controla os cartórios desde épocas remotas e que ainda tratam
as instituições, de caráter público, como bens particulares. Esses
estabelecimentos oferecem serviços extrajudiciais e, na prática, funcionam como
uma extensão do Poder Judiciário.
Batalhas judiciais
Com essa mistura de interesse público e privado, há relatos
de casos de antigos titulares ou interinos indicados por desembargadores que
promovem longas batalhas jurídicas com o objetivo de atrasar a conclusão de
concursos e, com isso, vão permanecendo nos cargos.
“Tudo é uma questão de caso a caso. Há casos que existem
desvios. Já se fez várias intervenções para evitar isso. Eu mesmo já participei
de casos em que desembargadores que fazem gestões para parentes, amigos ou
advogados que ele conheça sejam designados como interinos”, detalhou Berthe.
O desembargador fez a declaração com base na primeira
experiência que teve no Conselho Nacional de Justiça, ainda na gestão do
ex-ministro Gilson Dipp, entre 2009 e 2010, e em correições
no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), ainda nos
anos 90.
No novo cargo, a ministra Maria Thereza ainda terá de
analisar outras questões. Algumas disputas, por exemplo, se prolongam mesmo
depois da conclusão dos concursos e a seleção dos aprovados. Cartorários
reclamam que, quando obtêm classificação suficiente para ocupar cartórios
maiores, muitas vezes são alvos de processos administrativos arbitrários.
Ligações com magistrados
A Corregedoria Nacional ainda não tem dados específicos
sobre a situação. Mas os feudos e as brigas por cartórios mexem com os nervos e
os bolsos de pessoas em quase todos os tribunais estaduais. Entre os estados
que mais acumulam problemas estariam Alagoas, Maranhão, Piauí, Santa Catarina,
Ceará e Tocantins. São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul iniciaram o
processo de modernização mais cedo e os conflitos mais complexos teriam sido
resolvidos.
Alagoas é considerado um caso emblemático da resistência de
parte do Judiciário à tentativa de modernização. Recentemente, desembargadores
do Tribunal de Justiça se declararam suspeitos ou impedidos de presidir um
concurso para mais de 200 cartórios do Estado. Todos teriam alegado algum tipo
de vínculo com a questão dos cartórios e, por isso, não teriam a devida isenção
para coordenar a seleção dos novos profissionais.
Com o o impasse, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
convocou o próprio Berthe, que é desembargador de São Paulo, para desatar os
nós. O magistrado abriu o concurso, que recebeu mais de 6 mil inscrições de
pessoas de todo o país. O certame só foi suspenso por causa da pandemia de
coronavírus. O desembargador garante, no entanto, que conclui o processo
seletivo em 2021, mesmo com alguns casos já em disputa na Justiça.
A operação pente-fino da Corregedoria Nacional sobre os
concursos deverá mapear outros focos de resistência e, a partir daí, buscar
soluções negociadas ou, em último caso, intervir como aconteceu em Alagoas. O
trabalho estará sob a responsabilidade da Coordenadoria para os Serviços
Notariais e Registrais, criada pela própria ministra Maria Thereza.
A criação da coordenadoria é um dos mais fortes indicativos
da prioridade que o tema terá durante a nova gestão. A ministra do Superior
Tribunal de Justiça (STJ) é discreta e dificilmente fará declarações
retumbantes sobre moralização no setor. Mas com a sinalização inicial, a
expectativa é que enfrente as questões mais espinhosas, mesmo a contragosto de
setores do Judiciário.
Histórico
O primeiro choque de modernização das relações entre
tribunais de Justiça e cartórios foi conduzido pelo ex-ministro Dipp, também
com o auxílio de Bethe. Por ordem do ex-corregedor, hoje ministro aposentado,
mais de cinco mil cartórios foram declarados vagos e, portanto, deveriam ter
suas vagas preenchidas mediante a realização de concursos públicos.
As decisões do ministro provocaram grande rebuliço no setor
e, de fato, alguns tribunais tiveram que abrir os primeiros concursos para cartorários.
Hoje, mais de uma década depois dos primeiros passos, o quadro geral indica
estagnação. A renovação dos cartórios teria sido abandonada ao longo dos anos.
A pandemia do coronavírus também adiou alguns processos seletivos previstos
para este ano. Com isso, muitos cartórios estão sendo administrados por
interinos e aguardam o desfecho de intermináveis batalhas jurídicas.
A diretora-executiva da Associação dos Notários e
Registradores do Brasil (Anoreg), Fernanda de Almeida Abud Castro, considera
a realização de concursos e a revisão das regras do CNJ. Para ela, algumas
lacunas nas medidas gerais dão margem a contestações judiciais de resultados de
processos seletivos. “Tem concurso que dura 12 anos por causa de decisões
liminares. E a coisa não acaba nunca. Isso não pode acontecer”, reclama.
A diretora da Anoreg classifica como essencial a ampliação
do leque de serviços prestados pelos cartórios e argumenta que as instituições
têm grande capilaridade e poderiam assumir algumas tarefas que hoje
sobrecarregam a Justiça. “Os cartórios podem ajudar muito mais, retirando do
Judiciário temas que podem ser resolvidos administrativamente”, disse.
Fonte: Metrópoles