Ao longo de 2020, os ministros do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) decidiram importantes questões no campo do direito privado, em
temas como adoção por avós, prisão de devedores de alimentos durante a pandemia
da Covid-19 e a contagem do tempo de atividade para a recuperação judicial do
empresário rural.
Em fevereiro, a Terceira Turma estabeleceu que, nas ações de
alimentos em favor de crianças ou adolescentes, não é possível condicionar a
concessão de gratuidade de Justiça à demonstração de insuficiência de recursos
do representante legal.
De acordo com os ministros, o direito à gratuidade tem
natureza personalíssima, nos termos do artigo 99, parágrafo 6º, do Código de Processo Civil (CPC), sendo
notória a incapacidade econômica dos menores de idade.
Na mesma decisão, entretanto, o colegiado ressalvou a
possibilidade de que o réu demonstre a eventual ausência dos pressupostos
legais para a concessão da Justiça gratuita, como previsto também no artigo
99, parágrafo 2º, do CPC.
"É evidente que, em se tratando de menores
representados pelos seus pais, haverá sempre um forte vínculo entre a situação
desses dois diferentes sujeitos de direitos e obrigações, sobretudo em razão da
incapacidade civil e econômica do próprio menor, o que não significa dizer,
todavia, que se deva automaticamente examinar o direito à gratuidade a que
poderia fazer jus o menor à luz da situação financeira de seus pais",
afirmou a relatora do recurso especial, ministra Nancy Andrighi (processo sob
segredo judicial).
Adoção avoenga
Em março, a Quarta Turma concluiu que,
embora o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) proíba a adoção pelos avós
(adoção avoenga), ela é possível quando for justificada pelo melhor interesse
do menor.
Segundo o relator, ministro Luis Felipe Salomão, a
flexibilização da regra prevista no parágrafo 1º do artigo 42 do ECA exige a
caracterização de situação excepcional. Entre as condições que autorizam essa
flexibilização, ele apontou a necessidade de que o pretenso adotando seja menor
de idade; que os avós exerçam o papel de pais, com exclusividade, desde o
nascimento da criança; que não haja conflito familiar a respeito da adoção e
que ela apresente reais vantagens para o adotando (processo sob segredo
judicial).
Prisão domiciliar
O mês de março marcou o agravamento da pandemia da Covid-19
no Brasil, quando foram necessárias diversas medidas – inclusive no âmbito do
Judiciário – para adaptar o país à nova realidade. Em uma das decisões de caráter
urgente tomadas pela Justiça, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino deferiu pedido
da Defensoria Pública do Ceará e determinou que os presos por dívidas
alimentares do estado passassem para o regime domiciliar.
Posteriormente, a pedido da Defensoria Pública da União, o
ministro estendeu a
decisão a todos os presos do país por dívida alimentar.
Ao deferir o regime domiciliar, Sanseverino determinou que
as condições de cumprimento da prisão fossem estipuladas pelos juízes estaduais
– inclusive em relação à duração –, levando em conta as medidas adotadas para a
contenção da pandemia (processo sob segredo judicial).
Digital em testamento
Por maioria de votos, ainda em março, a Segunda Seção admitiu como
válido um testamento particular que, mesmo não tendo sido assinado de próprio
punho pela testadora, teve o registro de sua impressão digital.
Na visão do colegiado, o principal objetivo da sucessão
testamentária é a preservação da manifestação de última vontade do falecido.
Dessa forma, para a turma, cada situação deve ser analisada individualmente,
para que se verifique se a ausência de alguma formalidade é suficiente para
comprometer a validade do testamento.
"A regra segundo a qual a assinatura de próprio punho é
requisito de validade do testamento particular traz consigo a presunção de que
aquela é a real vontade do testador, tratando-se, todavia, de uma
presunção juris tantum, admitindo-se a prova de que, se porventura ausente
a assinatura nos moldes exigidos pela lei, ainda assim era aquela a real
vontade do testador", afirmou a ministra Nancy Andrighi.
Juros máximos
No mês de abril, a Terceira Turma fixou que
as lojas dedicadas ao comércio varejista não podem, na venda por crediário,
estipular juros remuneratórios superiores a 1% ao mês, ou 12% ao ano.
Segundo o colegiado, esses estabelecimentos, por não se
equipararem a instituições financeiras e não estarem sujeitos à fiscalização e
à regulação do Conselho Monetário Nacional, devem respeitar o limite fixado
pelos artigos 406 e 591 do Código Civil.
"Excetuadas apenas as situações submetidas às leis
específicas do crédito rural, habitacional, industrial e comercial, somente as
relações jurídicas constituídas no primeiro campo [relações obrigacionais
firmadas com instituições financeiras, isto é, em que ao menos uma das partes
seja integrante do Sistema Financeiro Nacional], por serem regidas pela Lei
4.595/1964, não se sujeitam aos limites da taxa de juros moratórios e
remuneratórios inscritos no atual Código Civil, conforme entendimento
consolidado na Súmula 596/STF", explicou a ministra Nancy Andrighi.
Exame de DNA
Em maio, a Segunda Seção estabeleceu que,
para quebrar a resistência das pessoas que, como as únicas capazes de esclarecer
os fatos, se recusam a fornecer material para exame de DNA, o juiz pode impor
as medidas coercitivas autorizadas pelo artigo 139, inciso IV, do Código de Processo Civil – e não só contra
quem seja parte passiva na ação de investigação de paternidade, mas contra
outros familiares do suposto pai.
Com base na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a
ministra Nancy Andrighi, reconheceu não ser possível conduzir coercitivamente
os investigados para a coleta do material genético, por se tratar de medida que
viola a liberdade de locomoção.
Entretanto, para a ministra, isso não significa que a parte
ou um terceiro possa colocar o juiz de "mãos atadas", desrespeitando
injustificadamente a ordem judicial de comparecimento ao local da perícia,
"sem que haja nenhuma espécie de instrumento eficaz para dobrar a
renitência de quem adota postura anticooperativa e anticolaborativa, sobretudo
quando a inércia se revela apta a gerar o non liquet instrutório
justamente em desfavor de quem coopera e de quem colabora para o descobrimento
da verdade" (processo sob segredo judicial).
Pornografia de vingança
Também no mês de maio, a Terceira Turma condenou um
provedor de aplicações de internet a pagar indenização por danos morais de R$
20 mil a uma mulher que teve fotos íntimas divulgadas em rede social pelo
ex-companheiro – situação conhecida como pornografia de vingança.
Ao contrário do que entendeu o Tribunal de Justiça de São
Paulo – para o qual a rede social agiu corretamente ao retirar do ar apenas as
fotos em que a vítima estava nua, mantendo as imagens em que ela aparecia
vestida ou sem o rosto à mostra –, o colegiado decidiu que o fato de o rosto da
pessoa não aparecer nas fotos é irrelevante para a configuração dos danos
morais, tendo em vista que a vítima da pornografia de vingança sabe que sua
intimidade foi desrespeitada, com a consequente violação de seus direitos de
personalidade.
"Como consta dos autos, mesmo nas fotos em que estaria
enroupada, segundo o tribunal de origem, a recorrente encontra-se sumariamente
vestida, em posições com forte apelo sexual, tipicamente feitas para um
parceiro por quem ela nutria confiança", afirmou Nancy Andrighi (processo
sob segredo judicial).
Exoneração de alimentos
No campo do direito de família, em junho, a Terceira
Turma considerou possível
a realização de acordo com o objetivo de exonerar o devedor de pensão
alimentícia do pagamento das parcelas vencidas. Para os ministros, a solução
consensual não viola o caráter irrenunciável do direito aos alimentos.
O relator do recurso, ministro Villas Bôas Cueva, explicou
que o artigo 1.707 do Código Civil permite concluir que o
direito aos alimentos presentes e futuros é irrenunciável, mas essa regra não
se aplica às prestações vencidas, pois o credor pode deixar de exercer seu
direito.
"Ademais, destaca-se que, especialmente no âmbito do
direito de família, é salutar o estímulo à autonomia das partes para a
realização de acordo, de autocomposição, como instrumento para se alcançar o
equilíbrio e a manutenção dos vínculos afetivos", apontou (processo sob
segredo judicial).
Imóvel irregular
Em uma ação de divórcio, no mês de setembro, a Terceira
Turma admitiu a
possibilidade de que imóveis em situação irregular também fossem submetidos à
partilha.
Segundo o colegiado, não apenas as propriedades construídas
formalmente compõem a lista de bens adquiridos pelos cônjuges na constância do
casamento, mas também tudo aquilo que tem expressão econômica e que, por
motivos diferentes, não se encontra legalmente regularizado ou registrado sob a
titularidade do casal.
Além disso, a turma considerou que, em muitos casos, a falta
de regularização do imóvel que se pretende partilhar não ocorre por má-fé ou
desinteresse das partes, mas por outras razões, como a incapacidade do poder
público de promover a formalização da propriedade ou, até mesmo, pela hipossuficiência
das pessoas para dar continuidade aos trâmites necessários à regularização.
Nessas situações, para os ministros, os titulares dos
direitos possessórios devem, sim, receber a tutela jurisdicional (processo sob
segredo judicial).
Fundo Partidário
Ainda em outubro, a Quarta Turma estabeleceu que
os recursos do Fundo Partidário não podem ser objeto de penhora, nem mesmo por
causa de dívida oriunda de propaganda eleitoral.
A regra da impenhorabilidade está prevista, entre outros
dispositivos, no artigo 833, inciso XI, do Código de Processo Civil, sendo válida,
segundo o colegiado, mesmo que a dívida tenha origem em uma das formas de
aplicação expressamente previstas pelo artigo
44 da Lei dos Partidos Políticos – a exemplo dos serviços de
propaganda eleitoral.
Segundo o ministro Luis Felipe Salomão, essa impossibilidade
é justificada pela natureza pública dos recursos repassados ao fundo, cujo
patrimônio é protegido de qualquer constrição judicial.
Recuperação do ruralista
No campo da recuperação judicial, em 2020, as turmas de
direito privado do tribunal formaram jurisprudência no sentido de que, embora o
produtor rural tenha de estar registrado como empresário para requerer o
benefício, a comprovação do prazo mínimo de dois anos de atividade exigido
pelo artigo 48 da Lei 11.101/2005 pode incluir o período
anterior à formalização do registro na Junta Comercial.
Na Quarta Turma, em julgamento realizado em
fevereiro, o ministro Raul Araújo explicou que a legislação brasileira prevê
que o produtor rural tem a faculdade – e não a obrigação – de solicitar a sua
inscrição. Por isso, continuou, o empreendedor rural, diferentemente do
empresário comum, não é obrigado a requerer o registro antes de começar a
produzir. "Desse modo, o empreendedor rural, inscrito ou não, está sempre
em situação regular; não existe situação irregular para ele, mesmo ao exercer
atividade econômica agrícola antes de sua inscrição, por ser esta
facultativa", esclareceu o ministro.
Na Terceira Turma – que debateu o
mesmo tema no mês de outubro –, o ministro relator, Marco Aurélio Bellizze,
rechaçou o argumento de que a recuperação judicial do produtor rural frustraria
a legítima expectativa dos credores, que acreditariam ter firmado uma relação
jurídica de natureza civil.
Para Bellizze, os credores, quando negociam com o produtor
agropecuário, sabem que o acordo está sendo firmado com um empresário rural,
conceito relacionado ao modo profissional pelo qual exerce sua atividade econômica,
e não à existência de prévio registro na Junta Comercial.
"Exercida a faculdade de se submeter ao regime jurídico
empresarial – o que se dá por meio da inscrição –, o superveniente pedido de
recuperação judicial efetuado pelo empresário rural, caso deferido seu
processamento, há de abarcar todos os créditos existentes na data do pedido,
ainda que não vencidos, nos expressos termos do artigo 49, caput, da Lei
11.101/2005", concluiu o ministro.
Repetitivos e IAC
A Segunda Seção também fixou teses importantes no âmbito do
sistema de precedentes qualificados.
No IAC 5, com julgamento concluído em março, a seção definiu
que compete à Justiça comum julgar as demandas relativas a plano de saúde de
autogestão empresarial – exceto quando o benefício for regulado em contrato de
trabalho, convenção ou acordo coletivo, hipótese em que a competência será da
Justiça do Trabalho, ainda que figure como parte trabalhador aposentado ou
dependente do trabalhador.
Ao julgar o Tema 1.035 dos recursos repetitivos, em outubro, o
colegiado estabeleceu que a pretensão de cobrança de valores relativos a despesas
de sobre-estadia de contêineres (demurrage) previamente estabelecidos em
contrato de transporte marítimo unimodal prescreve em cinco anos, como previsto
no artigo 206, parágrafo 5º, inciso I, do Código Civil.
Em dezembro, no julgamento do Tema
985, a seção definiu que
o reconhecimento da usucapião extraordinária, mediante o preenchimento de seus
requisitos específicos, não pode ser impedido em razão de a área discutida ser
inferior ao módulo estabelecido em lei municipal.
Em relação ao tema Tema
1.022, a Segunda Seção entendeu ser cabível agravo de instrumento contra
todas as decisões interlocutórias proferidas nos processos de recuperação
judicial e nas ações de falência, por força do artigo 1.015, parágrafo único, do CPC.
No julgamento, o colegiado decidiu modular os efeitos da
tese, que deve ser aplicada às decisões interlocutórias proferidas após a
publicação do acórdão que fixou o precedente qualificado e a todos os agravos
interpostos antes da fixação da tese e que ainda se encontrem pendentes de
julgamento na data da publicação do acórdão, excluindo-se apenas os agravos que
não foram conhecidos pelos tribunais por decisão transitada em julgado.
Ainda em dezembro, no Tema
1.032, a seção definiu que, nos contratos de plano de saúde, não é abusiva
a cláusula de coparticipação expressamente ajustada e informada ao consumidor,
à razão máxima de 50% do valor das despesas, nos casos de internação superior a
30 dias por ano decorrente de transtornos psiquiátricos, preservada a manutenção
do equilíbrio financeiro.
No Tema
1.051, os ministros estabeleceram que, para o fim de submissão aos efeitos
da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada
pela data em que ocorreu o seu fato gerador.
Por fim, no Tema
1.034, a seção definiu as seguintes teses sobre condições assistenciais e
de custeio do plano de saúde para beneficiários inativos, nos termos do artigo
31 da Lei 9.656/1998:
a) Eventuais mudanças de operadora, de modelo de prestação
de serviço, de forma de custeio e de valores de contribuição não implicam
interrupção da contagem do prazo de dez anos previsto no artigo 31 da Lei
9.656/1998, devendo haver a soma dos períodos contributivos para fins de cálculo
da manutenção proporcional ou indeterminada do trabalhador aposentado no plano
coletivo empresarial.
b) O artigo 31 da Lei 9.656/1998 impõe que ativos e inativos
sejam inseridos em plano de saúde coletivo único, contendo as mesmas condições
de cobertura assistencial e de prestação de serviço, o que inclui, para todo o
universo de beneficiários, a igualdade de modelo de pagamento e de valor de
contribuição, admitindo-se a diferenciação por faixa etária se for contratada
para todos, cabendo ao inativo o custeio integral, cujo valor pode ser obtido
com a soma de sua cota-parte com a parcela que, quanto aos ativos, é
proporcionalmente suportada pelo empregador.
c) O ex-empregado aposentado, preenchidos os requisitos do
artigo 31 da Lei 9.656/1998, não tem direito adquirido de se manter no mesmo
plano privado de assistência à saúde vigente na época da aposentadoria, podendo
haver a substituição da operadora e a alteração do modelo de prestação de
serviços, da forma de custeio e dos respectivos valores, desde que mantida a
paridade com o modelo dos trabalhadores ativos e facultada a portabilidade de
carências.?
Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1807216REsp 1720656REsp 1891644REsp 1800032REsp 1811953REsp 1819826REsp 1823911REsp 1799343CC 165863CC 167020REsp 1667843REsp 1667842REsp 1707066REsp 1717213
Fonte: Superior Tribunal de Justiça