O agronegócio brasileiro precisa de capital de longo
prazo para crescer, mas o próprio setor o rejeita. Nossos concorrentes vão
utilizá-lo e expandir
Mais uma vez volta à baila a discussão sobre estrangeiros
poderem adquirir, ou mesmo simplesmente utilizar (via arrendamento), terras
rurais brasileiras. É um tema recorrente, que dá as caras de tempos em tempos,
formando uma novela interminável e irracional.
Desta vez o tema ressurge com o PL 2.963/2019, em discussão
no Congresso Nacional, que “ameaça” flexibilizar mais uma vez a possibilidade
de estrangeiros terem propriedade ou posse das nossas terras.
Essa tem sido uma trajetória de idas e vindas desde o início
dos anos 70, inaugurada com a Lei 5.709/71, que impôs restrições aos
estrangeiros, depois complementada por outras leis e “reinterpretada” por
sucessivos pareceres da Advocacia Geral da União (AGU), ora flexibilizando e
ora restringido, sendo que o último deles, de 2010, impôs restrições bastante
severas à propriedade e posse de terras por estrangeiros, mesmo quando operando
no país mediante empresas nacionais, com CNPJ nacional.
O atual PL em discussão propõe nova flexibilização,
basicamente permitindo a propriedade e posse por empresas estrangeiras
autorizadas a operar no Brasil ou por empresas nacionais detidas por estrangeiros,
mas com as mesmas limitações por município que a lei de 1971 já estipulava (1/4
da área do município, sendo no máximo 10% para pessoas da mesma nacionalidade).
Adicionalmente, para certos casos será necessária a aprovação do Conselho de
Defesa Nacional (CDN), em especial para a aquisição por certos tipos de ONG,
Fundações externas, fundos soberanos e empresas estatais estrangeiras. Há,
ainda, restrições quando se tratar de Bioma Amazônico e faixas de fronteira. Em
outros casos também se prevê a necessidade de aprovação pelo Congresso
Nacional, o que, além de extremamente moroso e complicado, eleva o receio do
surgimento de burocracias intermináveis e cartórios.
De toda forma, trata-se de flexibilização não tão radical e,
como se vê, cercada de cuidados para com os temas mais sensíveis. Mesmo assim,
nota-se, como também já ocorreu no passado, surgir a gritaria dos inconformados
com esse projeto fundamentado nos princípios constitucionais da atividade
econômica: propriedade privada, livre concorrência, liberdade de mercado e
livre iniciativa. As críticas, mais uma vez, vêm sobretudo dos setores à
esquerda e – por incrível que pareça – de parte de importantes lideranças
ruralistas, que hoje se alinham contra o livre mercado, outrora arduamente
defendido pelo setor.
No caso dos setores à esquerda, provavelmente as críticas
decorrem do simples fato de que o projeto se fundamenta na liberdade de mercado
e iniciativa. Adiciona-se a isso a falsa ideia de que a maior procura por terra
(agora por estrangeiros) pode provocar a “expulsão” de inúmeros pequenos
produtores, muitos dos quais já vivem em condições precárias e de subsistência.
Parece incrível que um processo de entrada de capital no setor para aquisição
de terras que jamais sairão de onde estão, e que irão provavelmente valer mais,
possa prejudicar o pequeno produtor, que, aliás, tem o livre arbítrio de fazer
o que quiser com suas terras.
Também são comuns, nos grupos de esquerda, críticas
associadas ao risco de perda de soberania e ao possível desrespeito a
exigências ambientais e trabalhistas. Entretanto, essas importantes questões
não são determinadas por quem controla o ativo terra, mas sim pela capacidade
de impor a quem o detém o ordenamento nacional, amplamente protetivo dos
recursos naturais e dos direitos sociais, sem qualquer distinção entre
brasileiros e estrangeiros ou benesse a estes.
Já no caso de alguns dos ruralistas, há os que veem a
aquisição de terras por estrangeiros como uma ação antipatriótica que afronta a
soberania nacional, apesar dos vários mecanismos de controle do projeto. Sobre
esse ponto, aliás, vale lembrar a ironia de negar a própria origem do sucesso
do agro nacional. Nossos produtores são quase todos filhos, netos e bisnetos de
estrangeiros que aqui encontraram terras para adquirir e trabalhar e ajudaram
assim a construir uma história de enorme sucesso. Desde o século XIX, o
principal capital estrangeiro do agronegócio brasileiro foram os agricultores
“gringos”’ acolhidos no país, que puderam realizar seus sonhos ajudando a transformar
o Brasil num celeiro do mundo. Por exemplo, a possibilidade de vender terras no
Sul e comprar lotes maiores no centro-oeste foi um fator absolutamente
determinante para a incrível transformação tecnológica e social da agricultura
brasileira, por meio da qual migrantes que chegaram pobres da Europa e da Ásia,
para trabalhar como colonos no Sul e Sudeste do País, se transformaram nos
grandes produtores que fizeram a revolução tropical agrícola brasileira.
Há, ainda, produtores mais capitalizados que buscam expansão
“barata”, para a qual é conveniente que haja pouca concorrência na aquisição e
arrendamento de terras, mantendo preços mais baixos do que seriam num cenário
de demanda (por terras) fortalecida pela competição de capitais estrangeiros.
Enfim, como esses grupos são todos bastantes vocais e
organizados, possivelmente a tendência será, mais uma vez, o projeto de
flexibilização naufragar. Contudo, vale a pena refletir sobre quem serão os
“perdedores” caso este naufrágio venha a ocorrer: é principalmente o próprio
país, que abrirá mão de um capital saudável, pois de longo prazo e voltado à
produção, gerando empregos, renda e impostos, além da evidente contribuição do
capital estrangeiro para a melhoria dos padrões de ESG no agronegócio brasileiro,
pois a maioria destes investidores está sujeita a critérios rígidos de
investimento nas áreas ambiental, social e de governança corporativa.
Na impossibilidade de ser investido no Brasil, país onde
provavelmente faz mais sentido a alocação, esse capital poderá se direcionar a
países que serão futuros concorrentes do Brasil, minando vantagens comparativas
que hoje possuímos. Um capital que, na forma de financiamentos – que requerem a
possibilidade de constituição de garantias imobiliárias com segurança jurídica
-, pode ajudar muitos dos pequenos e médios produtores a expandir e
intensificar suas operações. E, ainda, um capital que, ao permitir a operação
de seus players nacionais, pode contribuir para a redução do
protecionismo viesado imposto por países do primeiro mundo, preocupados com a
ameaça que significa nossa produtiva e pujante agropecuária tropical.
Contudo, como de costume, a maioria de agentes econômicos
dispersos e desorganizados não tem voz nem capacidade de fazer frente aos
interesses de grupos organizados. E assim, mais uma vez, uma boa ideia que
ajudaria o setor a crescer e se capitalizar poderá ser descartada.
Fonte: Veja