O atual Código Civil brasileiro virou realidade com
a sanção da Lei 10.406, em 10 de janeiro
de 2002. Foi a conclusão de duas décadas de discussões entre juristas e o
Congresso Nacional para modernizar uma legislação que datava de 1916.
Ao longo dos 20 anos de existência do novo código,
coube ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) dar a última palavra na
interpretação dos seus 2.046 artigos. Nessa tarefa, a corte pôde contar com uma
contribuição valiosa. Antes mesmo de a nova lei entrar em vigor – o que só
ocorreu em janeiro de 2003 –, o Centro de Estudos Judiciários do Conselho da
Justiça Federal (CEJ-CJF) passou a promover as Jornadas
de Direito Civil, eventos que reúnem magistrados, acadêmicos e
outros especialistas para debater e aprofundar a compreensão de seus
dispositivos.
Nas primeiras oito edições, 644 enunciados foram
aprovados. Neste ano, em 19 e 20 de maio, o CJF realiza a IX Jornada de
Direito Civil, comemorando os 20 anos do código. Sete comissões de
trabalho, dedicadas a áreas específicas do direito civil, avaliarão as
proposições de novos enunciados submetidas por participantes de todos os cantos
do país. As
propostas podem ser encaminhadas até 7 de março, por meio de formulário
disponível no site do CJF – onde o leitor encontra outras
informações sobre o evento, incluindo o Regimento
da IX Jornada de Direito Civil.
A orientação doutrinária produzida nas jornadas tem
auxiliado o STJ na aplicação do Código Civil, como mostram os exemplos
apresentados nesta reportagem sobre a presença dos enunciados na fundamentação
dos acórdãos da corte. Nesses 20 anos, os enunciados das jornadas contribuíram
para a solução de um número incalculável de processos em todo o Brasil, em
todas as instâncias, trazendo mais previsibilidade e segurança jurídica às
decisões.
Regras de transição
As próprias regras de transição entre o Código
Civil de 1916 e o atual foram objeto de enunciados nas jornadas. Na quarta
edição, foi aprovado o Enunciado 299, que trata da
contagem do prazo de prescrição.
O enunciado, que interpreta o artigo
2.028 do atual código, foi citado pelo ministro
Villas Bôas Cueva ao relatar o REsp 1.363.574 na Terceira Turma. O recurso discutia
a contagem do prazo prescricional para pleitear indenização do seguro DPVAT.
Ao justificar o não provimento do recurso da
seguradora e permitir o prosseguimento da demanda, o relator afirmou que,
"como houve diminuição do lapso atinente à prescrição, para efeitos de
cálculo, deve ser observada a regra de transição de que trata o artigo 2.028 do
CC/2002 (Enunciado 299 da IV Jornada de Direito Civil)",
resumiu o magistrado.
Outro exemplo de adoção do enunciado se deu no julgamento
do agravo interno na Reclamação 5.017 pela Segunda
Seção, sob a relatoria do ministro Antonio Carlos Ferreira.
Danos coletivos e ações coletivas
A V Jornada
de Direito Civil, realizada em 2012, marcou os dez anos da
promulgação do código. Na ocasião, foram aprovados quatro enunciados referentes
ao artigo 944. Um deles, o de
número 456, foi utilizado várias vezes na fundamentação de decisões do STJ.
No REsp 1.598.709, a Quarta Turma citou esse entendimento ao
rejeitar a pretensão de condenação por danos morais coletivos em demanda
individual, ajuizada por um hospital. Relatora do caso, a ministra Isabel
Gallotti invocou o enunciado para dizer que os danos sociais, difusos,
coletivos e individuais homogêneos somente podem ser pleiteados pelos
legitimados para propor ações coletivas, de modo que é incabível a sua fixação
em demanda individual.
A compreensão também foi aplicada nos
colegiados especializados em direito público, como no julgamento do AREsp 1.413.621, relatado pelo ministro Francisco Falcão
na Segunda Turma.
Partilhas e inventários
Na VII
Jornada de Direito Civil, realizada em 2015, ao interpretarem o texto do
Código Civil combinado com o artigo 610 do
recém-aprovado Código de Processo Civil (CPC), os participantes aprovaram o
Enunciado 600, que abriu caminho para a possibilidade do inventário
extrajudicial mesmo na existência de testamento, contribuindo com o
desafogamento da Justiça.
No REsp 1.808.767, o ministro Luis Felipe Salomão, relator,
citou essa compreensão para reforçar a posição amplamente aceita na doutrina e
na jurisprudência.
"O processo deve ser um meio, e não um
entrave, para a realização do direito. Se a via judicial é prescindível, não há
razoabilidade em proibir, na ausência de conflito de interesses, que herdeiros,
maiores e capazes, socorram-se da via administrativa para dar efetividade a um
testamento já tido como válido pela Justiça", comentou.
Salomão destacou posição semelhante firmada em
outras jornadas, inclusive nas de direito processual civil.
Reprodução assistida após a morte
Aprovado na VIII
Jornada de Direito Civil, o Enunciado 633 sintetizou importante
entendimento a respeito da possibilidade da reprodução assistida póstuma.
Os participantes da jornada apontaram que, apesar
do silêncio do inciso III do artigo
1.597 a respeito do assunto, deve-se exigir o
consentimento expresso da mulher falecida para que o marido ou companheiro
realize o sonho do casal de ter um filho, por meio do uso de material
fecundante congelado e da maternidade de substituição (quando outra mulher
empresta seu corpo para a gestação). A conclusão levou em conta o princípio da
igualdade entre os cônjuges.
Neste ano, ao julgar um caso sob segredo de
Justiça, a Quarta Turma mencionou o enunciado. O autor do voto vencedor,
ministro Luis Felipe Salomão, destacou que, de acordo com o entendimento da
jornada, a técnica de reprodução assistida póstuma por meio da maternidade de
substituição é possível, condicionada ao expresso consentimento manifestado em
vida pela esposa ou companheira.
Segundo o magistrado, a decisão de autorizar a
utilização de embriões após a morte, "para além dos efeitos patrimoniais,
sucessórios, relaciona-se intrinsecamente à personalidade e dignidade dos seres
humanos envolvidos".
Ao longo de seu voto, o ministro salientou a
contribuição das diversas Jornadas de Direito Civil para o
tema, incluindo a aprovação dos Enunciados 103, 105, 106, 111 e 267, além do
633.
"Com base nas novas disposições normativas
constantes do Código Civil de 2002 acerca da temática ora em foco, inúmeras
discussões jurídicas foram travadas, dando ensejo, inclusive, à aprovação de
importantes enunciados nas Jornadas de Direito Civil promovidas
pelo Conselho da Justiça Federal", afirmou.
Dupla paternidade
A Terceira Turma seguiu o entendimento do Enunciado
111, da I Jornada
de Direito Civil, no julgamento de um recurso especial sob segredo
de Justiça que discutiu a dupla paternidade no contexto de criança concebida
mediante técnica de reprodução assistida heteróloga (que envolve a doação de
material biológico por terceiro).
Segundo o relator, ministro Paulo de Tarso
Sanseverino, o recurso discutia a inclusão de dupla paternidade no registro de
nascimento de filho gerado com o auxílio da maternidade de substituição, e não
a destituição de um poder familiar reconhecido pelo pai biológico. No caso, um
casal homoafetivo buscava a inclusão da dupla paternidade no registro.
Sanseverino destacou que a questão foi debatida
na I Jornada e que, na justificativa do Enunciado 111, os
especialistas diferenciaram a adoção, na qual há um desligamento de vínculos,
da reprodução assistida heteróloga, em que sequer se estabelece o vínculo de
parentesco entre a criança e o doador do material fecundante.
"A mãe biológica, irmã de um dos autores, não
possui vínculo de parentesco com a criança, filha do pai biológico e filha
socioafetiva do seu companheiro", afirmou o ministro ao rejeitar o recurso
do Ministério Público contra a decisão que permitiu o registro da dupla
paternidade.
Aplicação em direito tributário
Realizada em 2002, a I Jornada aprovou
137 enunciados. O de número 19 tratou da aplicabilidade do novo regramento
civil em questões tributárias.
Em 2010, ao julgar um recurso especial sob o rito
dos repetitivos (Tema 381), os ministros da Primeira Seção destacaram o
entendimento desse enunciado para solucionar a demanda de natureza tributária (REsp 960.239).
No processo, uma empresa buscou a compensação de
tributos, citando como referência legislativa a Lei 4.414/1964 e dois
dispositivos do Código Civil, os artigos 354 e 379.
Ao apresentar seu voto, o ministro Luiz Fux (hoje
no Supremo Tribunal Federal) destacou que, logo no primeiro ano de vigência do
novo Código Civil, a Lei
10.677/2003 revogou o seu artigo 374. "O próprio
legislador excluiu a possibilidade de aplicação de qualquer dispositivo do
Código Civil à matéria de compensação tributária, determinando que esta
continuasse regida pela legislação especial", comentou o ministro, apontando
que o Enunciado 19 consolidou esse entendimento antes mesmo da revogação da
norma.
No restante do voto, Fux afirmou ser inviável a
aplicação dos demais dispositivos citados, pois estes igualmente não se aplicam
às hipóteses de compensação tributária.
Direitos de imagem e dano moral
Relatando o REsp 1.594.865 – um caso de indenização por danos morais em razão de exposição indevida de imagem –, o ministro Luis Felipe Salomão citou dois enunciados na fundamentação de seu voto: o Enunciado 4, da I Jornada, e o 274, da quarta edição do evento.
Estava em discussão se a publicação de foto de uma atriz em revista masculina, sem a sua autorização, seria capaz de gerar dano moral indenizável. No voto em que manteve a indenização, o relator citou ainda um terceiro enunciado, o 279, também da IV Jornada, relativo à ponderação entre direitos protegidos pela Constituição.
Salomão concluiu que, mesmo nas situações em que há alguma forma de mitigação, "não é tolerável o abuso, estando a liberdade de expressar-se, exprimir-se, enfim, de comunicar-se limitada à condicionante ética do respeito ao próximo e aos direitos da personalidade".
O Enunciado 4 também já foi citado diversas vezes
pela Terceira Turma – como no julgamento do REsp 1.630.851, de relatoria do ministro Paulo de Tarso
Sanseverino.
Negócio jurídico simulado
Em abril do ano passado, ao julgar o REsp 1.927.496, a Terceira Turma acompanhou o voto do
relator, ministro Moura Ribeiro, cuja fundamentação considerou um enunciado
aprovado na IV Jornada.
Nesse recurso, o centro da discussão foi a possibilidade de reconhecimento da nulidade do negócio jurídico simulado no julgamento de embargos de terceiros.
"É desnecessário o ajuizamento de ação
específica para se declarar a nulidade de negócio jurídico simulado, não
havendo como restringir o seu reconhecimento em embargos de terceiros",
comentou Moura Ribeiro.
O magistrado lembrou que o Código Civil colocou a
simulação como causa de nulidade do negócio jurídico; dessa forma, como regra
de ordem pública, ela pode ser declarada até mesmo de ofício pelo juiz da
causa.
"Nesse sentido, o artigo 167 do CC/2002 é
claro ao prescrever que é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o
que se dissimulou, se válido for na substância e na forma", anotou Moura
Ribeiro, ao reforçar que este é o mesmo entendimento do Enunciado 294.
Usucapião e ausência de
registro
No acórdão do REsp 1.584.447, julgado pela Terceira Turma, o relator,
ministro Villas Bôas Cueva, citou o Enunciado 86, da I Jornada,
para fundamentar o voto em que deu provimento ao recurso da parte interessada
na usucapião de um imóvel.
O ministro mencionou esse entendimento ao afirmar
que não havia impedimento para o reconhecimento da usucapião meramente pela
ausência de registro.
"A falta de registro de compromisso de compra
e venda não é suficiente para descaracterizar o justo título como requisito
necessário ao reconhecimento da usucapião ordinária", resumiu.
Reserva de quinhão de herança
O Enunciado 527, aprovado na quinta edição das
jornadas, foi adotado pela Terceira Turma na solução de uma disputa por
herança, discutida no REsp 1.617.650.
Relator da demanda no STJ, o ministro Paulo de
Tarso Sanseverino considerou que a melhor interpretação a ser dada ao artigo
1.832 do Código Civil era aquela produzida pela V Jornada.
"A interpretação restritiva do enunciado
normativo do artigo 1.832 do Código Civil garante, a um só tempo, além do
respeito à mens legis, uma divisão que atende à igualdade entre os
herdeiros e, ainda, preserva o interesse dos filhos exclusivos sobre o
patrimônio do ascendente falecido, cujo direito, aliás, não pode ser combalido
com base em interpretação extensiva de uma norma a restringir direitos de
terceiros", declarou.
Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):
AREsp 1413621
Fonte:
STJ