Um dos temas que vem sendo
debatido muito intensamente no âmbito da doutrina brasileira diz respeito à
possibilidade da arbitrabilidade em matérias de Direito de Família. O
assunto foi objeto da tese de doutorado de Ricardo Lucas Calderon, defendida na
Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná no último dia 7 de
fevereiro de 2022, com o título "Ressignificação da indisponibilidade
dos direitos: transigibilidade e arbitrabilidade nos conflitos familiares".
Participaram da banca os Professores Carlos Eduardo Pianovski - orientador e
presidente -, Ana Carla Matos, Anderson Schreiber, Mario Luiz Delgado e
Francisco José Cahali. O trabalho foi aprovado com distinção e deve ser
publicado como livro em breve.
A propósito, o último doutrinador
citado há tempos é um dos defensores da possibilidade de a arbitragem envolver
os conflitos de direitos disponíveis no âmbito familiar, mesmo não havendo
norma expressa o autorizando. Segundo ele, "vedada a arbitragem para
solução de questão de estado (filiação, poder familiar, estado civil etc.) e
para direitos não patrimoniais e indisponíveis, para se colocar os
protagonistas de um conflito envolvendo o direito de família no palco arbitral,
então, indispensável que a matéria pontual respectiva, dentro da amplitude do
instituto, seja exclusivamente de natureza patrimonial disponível"
(CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem. 6. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2017. p. 435). O jurista - alterando posição anterior - é
favorável a que a arbitragem resolva até mesmo as questões relativas aos
valores dos alimentos: "acabamos por nos curvar à admissibilidade, em
princípio, da fixação, da pensão alimentícia no juízo arbitral, sempre no
pressuposto de se verificar a capacidade das partes e a convergente disposição
no sentido de existir a respectiva obrigação". De toda sorte, ressalva,
com razão, que "temos dificuldade em vislumbrar proveito expressivo às
partes nesta situação. E, na prática, preferimos deixar esta matéria ainda aos
cuidados do Poder Judiciário" (CAHALI, Francisco José. Curso de
arbitragem. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 437).
Ainda no campo doutrinário,
superando-se o debate que foi inaugurado na I Jornada, aprovou-se o
Enunciado 96 na II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios,
promovida pelo Conselho da Justiça Federal em agosto de 2021. Consoante o seu
teor, é "válida a inserção da cláusula compromissória em pacto antenupcial
e em contrato de união estável". Como se percebe, a ementa doutrinária
prevê a validade, nos termos do art. 104 do Código Civil, da cláusula
compromissória incluída em acordo de vontades prévio entre cônjuges e
companheiros, como exercício legítimo da autonomia privada.
Quando da plenária final daquele
evento, cheguei a propor à comissão de arbitragem - presidida pelo Professor
Carlos Alberto Carmona - um novo texto para a proposta, com a seguinte redação:
"é possível a arbitragem que envolva questões estritamente patrimoniais de
Direito de Família". A sugestão, porém, não foi acatada, e, após intensos
debates, aprovou-se com pequena margem o enunciado na dicção antes apontada.
Pois bem, este breve artigo visa
a trazer algumas questões de debate a respeito do tema, e que ainda servem como
argumento para as minhas resistências ou ressalvas quanto à arbitragem no
Direito de Família.
A primeira delas diz
respeito ao fato de ser difícil a separação absoluta de interesses puramente
patrimoniais nas disputas de família. Como está previsto no art. 852 do Código
Civil, é vedado o compromisso arbitral - seja judicial ou extrajudicial - para
solução de questões de estado, de direito pessoal de família e de outras que
não tenham caráter estritamente patrimonial. Além disso, o art. 1º da Lei de
Arbitragem (lei 9.307/96) prevê que as pessoas capazes de contratar poderão
valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais
disponíveis.
Não se pode negar que as questões
relativas à partilha de bens entre cônjuges envolvem direitos de cunho
patrimonial que podem ser objeto de disposição ou alienação. Mas o que dizer de
disputas que envolvem bens sobre os quais existe certo apego afetivo,
caso de quadros, livros, obras de arte, veículos, peças de roupas e mesmo
imóveis? E as hipóteses envolvendo os animais, que caminham para um tratamento
legal em separado dos bens e das coisas? Nessas disputas, aspectos subjetivos e
extrapatrimoniais, por vezes, entram em cena, a retirar a patrimonialidade pura
ou a neutralidade patrimonial e objetiva das disputas.
A segunda ressalva está
relacionada ao modo como foi pactuada a cláusula compromissória, sabendo-se
que, em muitas situações concretas, haverá sua imposição por um dos cônjuges ou
companheiros, notadamente em casos de discrepância econômica entre eles. Nesse
contexto, o próprio contrato ou negócio jurídico firmado poderá ter o conteúdo
imposto por uma das partes, caracterizando-se como um contrato de adesão.
Lembro, a propósito de uma necessária diferenciação categórica, que o contrato
de adesão não necessariamente é um contrato de consumo, como se retira do
Enunciado n. 171, aprovado na III Jornada de Direito Civil. A primeira
categoria pode ser definida como o contrato em que alguém, o estipulante,
impõe o conteúdo do negócio, restando à outra parte, o aderente, duas
opções: aceitar ou não. Ora, é perfeitamente possível que tal situação se
revele em pacto antenupcial ou contrato de convivência, podendo atingir todo o
seu conteúdo ou determinadas cláusulas.
Revelando-se tal situação, é
necessário observar, quanto à cláusula compromissória, o que está previsto no
art. 4º da Lei de Arbitragem. Nos termos do seu caput, a cláusula
compromissória é a convenção por meio da qual as partes em um contrato
comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir
relativamente a tal contrato. Como é notório, trata-se de uma previsão prévia
que obriga as partes, que renunciam à jurisdição estatal e passam a se
vincular, necessariamente, à jurisdição estatal, nas hipóteses de litígios
futuros.
Controlando o seu conteúdo, o §
2º desse preceito estabelece que nos contratos de adesão a cláusula
compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a
arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por
escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto
especialmente para essa cláusula. Aplicando a norma, aresto do Superior
Tribunal de Justiça considerou que a cláusula que não preenche tais requisitos
deve ser tida como patológica, o que acarreta a sua nulidade absoluta e
não a mera ineficácia. O acórdão disse respeito a contrato de franquia, tendo
sido assim ementado:
"Recurso especial. Direito
civil e processual civil. Contrato de franquia. Contrato de adesão. Arbitragem.
Requisito de validade do art. 4º, § 2º, da lei 9.307/96. Descumprimento.
Reconhecimento prima facie de cláusula compromissória 'patológica'.
Atuação do Poder Judiciário. Possibilidade. Nulidade reconhecida. Recurso
provido. 1. Recurso especial interposto em 07/04/2015 e redistribuído a este
gabinete em 25/08/2016. 2. O contrato de franquia, por sua natureza, não está
sujeito às regras protetivas previstas no CDC, pois não há relação de consumo,
mas de fomento econômico. 3. Todos os contratos de adesão, mesmo aqueles que
não consubstanciam relações de consumo, como os contratos de franquia, devem
observar o disposto no art. 4º, § 2º, da lei 9.307/96. 4. O Poder Judiciário
pode, nos casos em que prima facie é identificado um compromisso
arbitral 'patológico', i.e., claramente ilegal, declarar a nulidade dessa
cláusula, independentemente do estado em que se encontre o procedimento
arbitral. 5. Recurso especial conhecido e provido" (STJ, REsp
1.602.076/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 15.09.2016, DJe
30.09.2016).
Além da precisa análise técnica,
o aresto traz a correta diferenciação entre os contratos de consumo e os de
adesão, não havendo necessariamente uma coincidência de conceitos, como antes
pontuei. Além disso, sobre a eventual diferenciação entre os termos contrato
de adesão e por adesão, no sentido de que os primeiros exigiriam a
presença do monopólio da atividade, como muitas vezes se sustenta - de
forma equivocada -, a Ministra Relatora pontuou que, "quanto à
diferenciação apresentada pela recorrida segundo a qual contratos 'por adesão'
são distintos de contratos 'de adesão', entendo que essa sutileza sintática é
incapaz de representar alguma diferença semântica relevante, pois o Direito não
trata de forma distinta essas duas supostas categorias". Isso reforça a
possibilidade de se aplicar a ideia nas relações entre cônjuges e companheiros.
Em continuidade de análise do
acórdão, entendo que o enquadramento pela nulidade absoluta da cláusula
compromissória patológica pode se dar pelo que consta do art. 424 do Código
Civil, pelo qual nos contratos de adesão é nula a cláusula de renúncia a
direito resultante da natureza do negócio, no caso à jurisdição estatal. Ainda
quanto a essa minha segunda objeção, vale lembrar o teor do art. 1.655 do
Código Civil, segundo o qual é nula - por nulidade absoluta - a convenção antenupcial
ou cláusula dela que contravenha disposição absoluta de lei, entendida a
última expressão como norma de ordem pública. A norma cogente violada, no caso
de imposição de uma cláusula compromissória em contrato celebrado entre
consortes, é justamente o art. 424 do Código Civil. Todas essas questões, sem
dúvida, merecem ser melhor analisadas quando se tem a sua inserção prévia por
cônjuges ou companheiros em posições econômicas discrepantes.
Por fim, como terceira
ressalva, nota-se que há um problema prático na aceitação da atuação por
árbitros em contendas que envolvam o Direito de Família. Como é notório, toda a
atuação dos árbitros nos procedimentos é efetivada para o fim de se evitar ao
máximo qualquer nulidade da sentença arbitral a ser proferida no futuro. E, nos
termos do art. 32, inc. I, da lei 9.307/96, é nula a sentença arbitral se for
nula a convenção de arbitragem, categoria que engloba tanto o
compromisso quanto a cláusula compromissória. Volta-se ao problema da neutralidade
patrimonial das questões de Direito de Família, sendo difícil, no meu
entender, fazer uma separação absoluta de questões que são patrimoniais
puras, como anotei no desenvolvimento da primeira ressalva.
De toda sorte, não se pode negar
que o tema é polêmico e que existem vozes e argumentos fortes para se efetivar
a arbitrabilidade familiar. O mesmo debate - até com maiores
dificuldades, diante da intangibilidade da legítima - atinge o Direito das
Sucessões. Pretendo desenvolver melhor essas minhas objeções em artigo
científico a ser escrito no futuro.
*Flávio Tartuce é pós-doutorando e doutor em
Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP.
Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de
Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu
em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do
Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto
Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São
Paulo, parecerista e consultor jurídico.
Fonte: Migalhas